TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO COMO CAMPO EPISTÊMICO DAS REPRESENTAÇÕES RELIGIOSAS

Werner Leber

A questão que envolve a forma acadêmica, dita científica, de estudar e analisar a religião certamente não seria um problema central quando se pensa na elaboração de um plano de aulas de Ensino Religioso para o Ensino Fundamental. Porque não será isso, pelo não de forma direta, um assunto de aula ou de investigação para aquela modalidade de ensino. Porém, o profissional (professor e professora) precisa ter uma bagagem de conhecimento a ponto de não poder ignorar as diferentes formas de se estudar e compreender a religião, ou sua manifestação, sempre chamada de “fenômeno religioso”, como se lê na passagem abaixo:

Há diferenças conceituais fundamentais entre as duas expressões que se vinculam ao Ensino Religioso e que lhe dão estrutura epistêmica e às quais precisa ser feita menção: teologia e ciências da religião. Esta questão é importante porque trata-se de afirmar a concepção de ensino religioso, presente na legislação maior, como originária do campo das ciências da religião e não vinculada aos elementos próprios da teologia, o que remeteria o entendimento para o âmbito das diversas confessionalidades. Para deixar mais claro: é necessário que se perceba que o campo da teologia vincula-se à questão das confessionalidades, na perspectiva da denominação religiosa. Seu papel é de dar regra para a experiência simbólica que se origina das experiências de fé. A teologia, portanto, está sempre vinculada ao pensamento eclesial, ao que se denomina, no âmbito prático, institucional-religioso (MENEGHETTI, 2002 p. 50-51).

Certamente não faltam aqueles que já estão pré-dispostos a endossar em grau, número e gênero a citação acima. E também não estariam destituídos de razões. Mas há algumas ressalvas que deveriam ser feitas. O texto destacado toma como pronto e acabado uma situação política a partir da qual teologia se desenvolveu sem estabelecer juízos mínimos a respeito do porquê de tal situação política. Dizendo de outro modo, o que acima está citado baseia-se numa visão pragmática instituída, vendo na teologia apenas uma espécie de tutora das verdades cristãs reveladas – o que de fato a caracterizou historicamente na cultura cristã. Sob esta ótica, não há dúvida de há muito de verdadeiro no que está dito acima, mas há também nuances que não foram levados em consideração e que merecem uma análise mais criteriosa.

Pois, a teologia pode ter sido utilizada de uma determinada maneira, funcionando como discurso apologético das “verdades” cristãs, mas como campo epistêmico ela não é, necessariamente, uma ciência defensora das verdades do cristianismo. A rigor, a teologia nem surge com o cristianismo, e nem foram os teólogos cristãos que inventaram esse termo. Se a verdade é um ponto polêmico e conflitante para o estudo da religião, aqui o problema não é menor. De um modo geral, portanto, é possível uma teologia sem cristianismo.

A teologia foi sendo destituída de méritos ao longo da história do Ocidente à medida que as ciências particulares foram se firmando como padrão de legibilidade para a compreensão e explicação dos acontecimentos, utilizando-se sempre de nexos causais que se movem dentro do binômio sujeito-objeto. Ou então quando se saiu de um modelo contemplativo para entrar-se no modelo técnico das ciências. O mesmo se deu também com a filosofia, a música, a arte, a magia e a religião. Mas que não se enganem aqueles que, de modo imediato aceitando uma visão cientificista, já se posicionam a favor da ciência e contra a teologia. Pois foi a teologia mesma que anteviu o que se desdobraria com as crises das ciências do século XIX e início do século XX, ao demonstrar que o método teológico não era mais suficiente para açambarcar a totalidade do religioso e suas manifestações. E, de alguma maneira, teólogos como Rudolf Otto e Friedrich Schleiermacher foram os antecessores da fenomenologia religiosa, ao propor um método para a interpretação de questões religiosas, tal qual ela vem sendo descrita e analisada a partir de um paradigma científico como se pretende com a “Ciências da Religião”. Precisamente este processo começa com a modernidade cartesiana e a subjetividade da razão no século XVII, conforme já foi dito. O pensamento ocidental tem suas raízes na Grécia, onde, separando-se do religioso e do mítico, inaugura a possibilidade do conhecimento através da racionalidade natural dos humanos. Em suma, assim surge a filosofia e toda cultural ocidental, sendo esse o seu legado histórico.

O que de modo generalizante nos permite dizer que todas as ciências ocidentais têm uma origem filosófica (inclusive a teologia). Como foi a ciência que triunfou e a religião foi relegada a um grau menor de importância (e com ela a teologia também), entendeu-se que deveria ser a “Ciências da Religião” o referencial epistêmico de análise da fenomenologia religiosa. Como se lê na proposta curricular de 96, (FONAPER: PCNER, 1997, p. 25): “No campo da filosofia e da teologia, o homem busca na razão e na autoridade a legitimação do conhecimento. Já as outras ciências buscam sua legitimação no rigor do método”. Aqui está a resposta: a questão é o método e o rigor. Ideologia típica da ciência moderna de cunho quase sempre positivista.

Como se sabe, August Comte, considerado o fundador do positivismo, havia preconizado que a religião chegaria ao fim, e em seu lugar reinaria a ciência ou a religião científica (ALVES, 1987, p. 105). E veja-se ainda uma outra: “O Ensino Religioso, tendo como objetivo de estudo o fenômeno religioso, busca compreender o seu significado existencial para as pessoas, grupos e culturas através da observação objetiva e não da interpretação pessoal e/ou social” (ENSINO RELIGIOSO, v. 4, p. 10). Nada mais pretensioso, simplista, reducionista e positivista. Assim, volta-se ao velho e tacanho mito da neutralidade científica, denunciada já tantas vezes (JAPIASSU, 1976, p. 147). Pois se engana redondamente quem pensa que a ciência é assim tão rigorosa e objetiva e que seu método é mais perfeito que outras formas de análise. Pois o que seria “significado existencial”? É muito óbvio que foi também essa a busca de toda teologia hermenêutica de BULTMANN, TILLICH e R. OTTO.

Sem poder entrar em pormenores de toda essa questão, utilizar-se-á referências a textos de dois filósofos da ciência para produzir algumas “arranhuras” no edifício “impenetrável, rigoroso e objetivo da ciência”: JAPIASSU (1991, p.189-219). Especialmente no que tange ao sentido, como se a ciência não pudesse e não devesse se preocupar com essas “coisas” simples do senso comum. Veja-se esta passagem:

 

Chamemos atenção para o fato de não serem poucos os cientistas que, em nossos dias, acolhem as tradições místicas orientais procurando metabolizá-las com a racionalidade científica. Eles elaboram uma espécie de sincretismo onde a elucidação racional do homem de ciência anda junto com a iluminação do místico. O Tao da Física de F. Capra e Gnose de Princeton de R. Ruyer constituem apenas dois exemplos ilustrativos. Por isso, diante da tentação atual de muitos de converterem a Ciência em Sistema-global-e-meio-de-salvação, vale dizer, em Gnose; ou de outros, de cientificizarem as experiências e visões místicas do Universo; ademais, diante da tomada de consciência dos efeitos negativos ou destrutivos do progresso técnico e científico, põe-se com certeza aguda a questão: será que o conhecimento científico, em seu sentido moderno galileano, constitui a única e melhor opção para nossas sociedades? Esta questão começa a preocupar muitos filósofos e cientistas. O que se constata, nos dias de hoje, é que a reabilitação da SABEDORIA contra o SABER (científico) e das TRADIÇÕES contra a RAZÃO, deixou de ser um tema dependendo apenas do pensamento conservador e reacionário. (JAPIASSU, 1991, p. 191).

 

MENEGHETTI (2002), afirma que o ensino religioso dialoga com outros saberes, e traz uma citação em cuja se afirma que a ciência não é mais a ciência clássica (Op. cit., nota 7, p.52); menciona ainda que o objetivo é agregar e não separar campos epistemológicos diferentes. Tudo isso parece acertado e correto. Mas de onde se deduziu que, pelo fato da Lei exigir um profissional habilitado, Licenciatura em Ciências da Religião é o campo epistêmico adequado? E quem disse que o teólogo é só um especialista em sua religião de origem, como foi enfaticamente afirmado, (MENEGHETTI, 2002, p. 52)? De onde se retirou tais conclusões? E por que outros campos do saber não poderiam estar habilitados a lidar com o religioso na escola, como a filosofia da religião, por exemplo? Porque, inicialmente, a intenção era ter pessoas – professores e professoras - habilitados para o ensino religioso. Mas não estava, de modo algum, tão evidente que haveria de ser especificamente centrada na “Ciências da Religião”.

É bem verdade que diante das novas possibilidades que a Lei nº 9475 trouxe, uma decisão precisava ser tomada e foi tomada. De modo algum se questiona as capacidades ou não que os Licenciados em Ciências da Religião (as pessoas) têm para o desafio que o Ensino Religioso traz para a dinâmica educacional atual. E muito menos ainda, de questionar as competências das Universidades para oferecer os cursos necessários, ou então ainda condenar a decisão tomada. O que se questiona é só a “Ciências da Religião” tem de fato as capacidades para abordar a questão. Porque toda ciência implica empreender um caráter, um princípio, uma meta e uma ideologia também, ao que se analisa. Em suma, toda decisão leva em consideração alguns pressupostos e até ideologias. E não terá sido assim no que diz respeito às ciências da religião? Parece que, tentando fugir do confinamento que o conhecimento religioso sofria com a teologia, optou-se pelo cientificismo como forma de abordagem. A esse respeito diz DREHER (1993, p. 8):

 

O moderno estudo científico da religião, embasado teoricamente sobretudo em conhecimentos e teorias sociológicas e psicológicas, nasceu em nítido contraste com o saber que tradicionalmente postulou a verdade da religião no Ocidente, a saber, a teologia. Mas se na teologia, por mais rigorosa e racional que fosse, era a religião que ficava com a verdade, no estudo não-teológico da religião a verdade começou a pender para o lado da ciência, freqüentemente entendida conforme o padrão naturalista-positivista.

 

Interessante é que essa opção pelo estritamente científico, do tipo “A ciência não se interessa pelo irracional, pelo sagrado e pelo místico. Nós, os cientistas, nada temos a ver com os teólogos, com os místicos ou com os artistas, porque nosso saber é objetivo e claro” (JAPIASSU, 1991, p. 203), vendo nas Ciências da Religião um centro epistêmico mais adequado para equacionar a relação entre educação pública e religião, foi feita em uma época em que as próprias pesquisas científicas começam a incorporar um discurso mítico-religioso que antes negavam, ou “virtudes do religioso”, como diz nosso filósofo (Op. cit. p. 207).

Entre os cientistas, o mais famoso a produzir reflexões combinando religião, misticismo, cosmologia e espiritualidade, está Frijof Capra, segundo BAGGIO (1994 p. 29-31). Um teólogo muito conhecido entre nós, Frei Betto, escreveu um artigo em cujo aborda as relações entre a ciência, a teologia, a espiritualidade, e a fé. Aponta, entre outras coisas, que a fé - como esperança e crédito - é um pressuposto decisivo em qualquer conhecimento (BETTO, 2001, p. 939-941).

E, na verdade, perceber que a fé é um pressuposto central de qualquer investigação científica já estava presente nos estudos dos empiristas britânicos do século dezessete e dezoito; de um David Hume (1711-1776), por exemplo, quando percebeu que os eventos do futuro só poderão ser controlados se as leis que vierem a regê-los forem iguais as do presente. Como tal garantia não existe, o cientista confia (tem fé, tem esperança) que assim será, e elabora suas teorias a partir de crenças e apostas, como percebeu ALVES (2002 p.131-132).

O mote que vem do campo epistêmico marcado pela “Ciências da Religião” é descrever a realidade das religiões a partir de referenciais que vem, sobretudo, da sociologia, sem adentrar ao ser de cada religião, talvez para evitar polêmicas ou para parecer que a ciência é “neutra” em sua análise. Manter o diálogo e reconhecer o diferente sem entrar nas razões das diferenças, como percebeu REYES (2000), parece que é desta forma que o “conhecimento religioso” deve ser entendido a partir da Proposta Curricular (FONAPER: PCNER, 1997, p. 28-30), e do Referencial Curricular (FONAPER: RCPPE, 2000, p.18).

Nesse sentido, há uma tendência a ser coerente com o que a Ciência da Religião representou historicamente em sua vertente majoritária, ou seja, a preocupação prioritária em concentrar sua epistemologia em explicações ou descrições dos fenômenos religiosos. Ao menos no entender de um dos estudiosos que se ocupou intensamente com o assunto, WIEBE (1998, p. 53-68). Para ele, a simples descrição dos fatores constitutivos de uma religião pode significar o anulamento da importância daquela religião, ou seja, transforma-se no contrário do pretendido. E nesse sentido, o papel de uma ciência que só se ocupa com a descrição contribui decisivamente para manter os assuntos religiosos em um grau menor de importância diante de outros saberes, (Op. cit., p. 53-54). Por outro lado, porém, aquilo que Wiebe percebeu não esgota o assunto a cerca da cientificidade pretendida. Inclusive todo o seu trabalho é uma tentativa de ir além do mero “descritivismo” e apontar que a “Ciências da Religião” pode e deveria ter um outro estatuto. O que o mencionado autor faz são críticas incisivas com as quais pretende mostrar o perigo que se corre com o descritivismo religioso. Porque a leitura de sua obra dá a entender claramente, embora não o afirme enfaticamente, que ele está a buscar um lugar de respeito à Ciência da Religião em meio a outras ciências. 

Uma ciência precisa estabelecer alguns nexos sobre o que afirma para poder ultrapassar a descrição e chegar à explicação, diz ele (Op. cit., p.67). E o que ele chama de explicação não é exatamente o que está na Proposta Curricular ou nos PCNER, entendido apenas como reconhecimento da diferença e estabelecimento de formas de procedência diante desta diferença, como notou REYES (2000). Essa tentativa cientificista-descritivo poderia ser caracterizada como modelo sintético que objetiva harmonizar campos sempre opostos e conflitivos sem ter compromisso com o que está envolvido, no entender de BRAKEMEIER (2002 p. 28). Mas, se espera e se acredita que não foi essa a intenção de quem elaborou a Proposta curricular. Pois é justo supor que se tinha consciência dos fatores implicados, mas também não se podia resolver todas as coisas a uma só vez.   

Explicação, no sentido que Wiebe a concebe, é problematização do religioso como área de conhecimento específico a ponto de lhe dar um padrão autônomo muito além do teísmo ou do ateísmo. E somente a filosofia poderia ser o caminho para produzir um estudo científico da religião, radicalizando e problematizando o conhecimento religioso às suas últimas conseqüências, conclui, surpreendentemente, WIEBE (1998, p. 68). Sob esta ótica, parece que o trabalho de FILORAMO & PRANDI (1999) apontam outras possibilidades, muito embora não divirjam em essência de WIEBE. Em primeiro lugar, o ponto de partida parece não ser a sociologia somente e seu método descritivo. Não que o neguem, mas também não o priorizam. Os autores, igualmente a Wiebe, perguntam-se a respeito das possibilidades de um estatuto autônomo para a “Ciências da Religião”. Porém, percebem que uma cientificização da religião não é possível, ao menos não de forma radical, como na ciência tradicional onde sujeito e objeto estão visceralmente separados. Tal visão é fruto do Positivismo metodológico do século XIX, que acreditava na total isenção do sujeito na observação dos fenômenos, chamados então sempre de fatos. E como tal, o Positivismo asseverou que haveria de existir um único método válido, tanto para as ciências da natureza como para as ciências do espírito – chamadas respectivamente de Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften, (DILTHEY, 1992). Foi justamente contra o aparentemente impenetrável edifício positivista que Karl Popper, com sua famosa obra, A Lógica do Descobrimento Científico, postulou o princípio do falsificacionismo, (WESTHELLE, 1995, p. 261). Segundo ele, só poderia ser considerado genuinamente científico aquilo que poderia ser falsificado.   Na visão dos citados autores, religião não pode ser explicada meramente, mas compreendida. O “não poder ser explicada”, não significa que isso não possa ser feito, mas não deveria sob pena de negligenciar aspectos determinantes de uma religião. Utilizam a expressão alemã Verstehen (compreender) em oposição a Erklären (explicar), também uma expressão alemã, para apontar onde poderiam estar alguns equívocos, (FILORANO & PRANDI, 1999, p. 8-9). Uma explicação científica de uma religião pressupõe que existam duas coisas distintas nela, e que poderiam ser analisadas independentemente: a própria religião e a fé. Mas a pressuposição de que estes dois campos – esses dois entes, como se diria em filosofia – estão de fato separados, é o problema central. A análise religiosa não consegue fugir da subjetividade de quem a analisa e da invasão de campos, ora do objeto sobre sujeito, ora do sujeito sobre o objeto, (FILORANO & PRANDI, 1999, p.11). Por isso mesmo, apontam que uma interpretação (Verstehung) precisa estar em intercâmbio com várias outras áreas, o que evidencia que não se pode abrir mão de uma análise hermenêutica, pois a “Ciências da Religião” possui, por sua própria natureza, uma estrutura aberta e dinâmica, como dizem (FILORANO & PRANDI, 1999, p.13).  Por isso mesmo, entendem eles, que essa estrutura aberta e dinâmica da “Ciências da Religião” é um campo disciplinar e não formaria uma disciplina à parte, pois inter-relaciona-se com outros campos. Essa é também a razão de advogarem uma defesa da expressão “As Ciências da Religião”, sempre no plural, justamente por entenderem que se trata de vários campos formadores de conceituações epistemológicas. Com isso, apontam em uma outra direção do que aquela defendida pelo autor desta monografia, que objetou uma defesa em torno da expressão “Ciência da Religião”, sempre no singular.  

As questões conceituais acima mencionadas não precisam ser consideradas em suas tematizações filosóficas mais agudas. Pois, certamente, traria muitos embaraços para o campo educacional e problemas insustentáveis à prática pedagógica no Ensino Fundamental, sobretudo ao relacionamento dialogal pretendido. Por outro lado, entretanto, está-se diante de um paradoxo que se interpõe dimetrialmente e inexoravelmente. Não é possível resolver o problema somente com menções ou análises genéricas de várias religiões, e também não adianta ter bons métodos pedagógicos, e bem coerentes com determinadas propostas, se faltar o conhecimento sobre o que de fato representam as tradições religiosas na cultura e na formação histórica das sociedades. Ou isso não tem nenhuma importância? Ademais, essas observações acima feitas não deveriam ser entendidas como uma crítica que pretende inviabilizar o que já se conquistou, mas ser um auxílio à reflexão sobre o conhecimento necessário à preparação de professores e professoras ao Ensino Religioso. 

 

A pertinência do problema

 

Primeiramente, é necessário que se diga que a teologia não surgiu com o cristianismo. TILLICH (1987, p. 23) chega a sugerir que a teologia enquanto “lógos” que raciocina sobre o Theós (Deus, Transcendência), é tão antiga quanto a religião. Precisamente para a nossa cultura ela surge com o pensamento grego na mesma época em que se dá o surgimento da filosofia, lá pelo século VI a.C. Assim escrevem os comentadores:

 

A Igreja não tem razão em reclamar para si própria um monopólio da teologia. A palavra ‘teologia’ não foi originalmente uma invenção da fé cristã. Na Grécia Antiga os poetas foram os primeiros a ser chamados de teólogos. Homero e Hesíodo narraram ‘estórias’ a respeito dos deuses usando o veículo especial do mito; a teologia deles era mítica. Vieram então os filósofos Platão e Aristóteles, que criticaram e traduziram a teologia mítica dos poetas para o veículos do lógos filosófico. Esses filósofos foram os primeiros desmitologizadores. Além das formas poética e filosófica, havia uma forma política de teologia na Grécia Antiga. A teologia política lidava com os deuses da religião estatal. Posteriormente, sob Constantino, os deuses políticos foram cristianizados e o Deus cristão tornou-se o cabeça da religião política do Império Romano. (...) Os apologistas do século II foram os primeiros a apropriar-se do conceito grego de teologia e a introduzi-lo no discurso cristão (BRAATEN & JENSEN, Org.,  1990, v.1, p. 32).

 

 

Os embates tratados antes, envolvendo a teologia e as ciências da religião, surgiram justamente por causa do momento novo em que se vive. É inegável a presença de religiões cada vez mais diversas entre nós, (ARAÚJO: 2001 p.163), e as mudanças pelas quais o discurso tradicional das igrejas está passando (GOMES, 2000, p. 974). Não interessam as vantagens e desvantagens de tais mudanças, mas as mudanças em si. São elas que demandam uma outra forma de ver a questão religiosa e fomentam uma discussão específica no que diz respeito ao seu tratamento no âmbito acadêmico. Como a teologia tradicionalmente se julgou a “dona”, por excelência dos assuntos religiosos a nível científico e epistemológico, foram os teólogos que primeiramente se julgaram capazes e suficientemente preparados para o desafio surgido. Mas a herança pesada da teologia foi decisiva para condená-la e julgá-la completamente incompetente em assuntos pedagógicos. Por extensão, os teólogos também foram julgados sem méritos para se envolverem em questões pedagógicas e educacionais. Isso é acertado, em parte, porque os teólogos não são, necessariamente, pedagogos e professores, além de serem tradicionalmente tendenciosos.  Então, há também uma disputa de ideologias pedagógicas e teológicas, tendo de um lado aqueles que evocam pressupostos da educação, e de outro, aqueles ligados aos círculos teológicos. Os primeiros, vêem os segundos como tendenciosos e meros apologetas das “verdades cristãs”; os segundos, vêem os primeiros como meros descritores e “resenhistas” das religiões, sem conhecimento suficientemente amplo e profundo a respeito da fenomenologia e da transcendência religiosa da qual tanto falam e querem defender. Os preconceitos são recíprocos. A questão, porém, não pode ficar resumida às vaidades de cada ciência somente. Polarizada como a discussão ficou, erram ambos. Primeiramente os teólogos por supor que as demandas educacionais abrem um novo campo de trabalho para eles. Em segundo lugar, os defensores da ciência da religião quando não consideram a essência da teologia, mas apenas o seu lado “ideológico negativo” na história cristã. Não seria justo ignorar as contribuições de, por exemplo, Tomás de Aquino, Karl Barth, Karl Rahner, Paul Tillich, Dietrich Bonhoeffer, Leonardo Boff, Rubem Alves, Max Scheler, Rudolf Otto, Max Weber, Santo Agostinho, para o estudo da transcendência no Ocidente. Corrobora para isso o fato de que esses autores são amplamente mencionados em estudos das religiões.

E agora vem o argumento mais contundente: se a teologia não serve por seu passado comprometedor com determinada causa, tampouco a ciência. E é precisamente a ciência, através dos sistemas de ensino (currículo) que legitima uma certa ordem econômica e consagra como verdades absolutas certas questões apenas circunstanciais de uma cultura, (APLLE, 1999). Dizendo de outro modo, se a teologia esteve a serviço de uma ideologia religiosa, a ciência esteve e está a serviço, quase sempre, de uma ideologia econômica e interesseira. E pouco adianta argumentar que a ciência não deveria agir assim, porque historicamente ela não tem conseguido sair desse dilema. E nesse sentido, muitas vezes a ciência deixa de racional, crítica e emancipadora, para tornar-se apenas instrumento de poder e da ordem de uma “tanatocracia” (poder de morte), como definiu o filósofo Michel Serres.

E esse é precisamente um problema e um risco que se corre quando se vê na ciência simplesmente um método melhor e mais adequado sempre, independentemente das circunstâncias. Ao que ALVES (1999, p. 115) respondeu: “A ciência é muito boa-dentro de seus precisos limites. Quando transformada na única linguagem para se conhecer o mundo, entretanto, ela pode produzir dogmatismo, cegueira e, eventualmente, emburrecimento”. Não faz sentido, então, voltar-se contra a teologia por ela ser demais vinculada a um certo dogmatismo se a própria ciência transformar-se em um dogma. E como adverte Japiassu (1996, p.15), “o verdadeiro espírito científico deveria nos precaver contra o rico de cair no dogmatismo das verdades acabadas e definitivas”.

O que importa é perceber que ao se fazer a opção pela “Ciências da Religião”, claramente se fez isto em função de pretender uma isenção no que se investiga - a religião ou fenômeno religioso, conforme termo adotado -, e além disso considerou-se o caráter aparentemente não-religioso daquela modalidade de abordar o conhecimento como mais adequado ou cabível. E o que dizer desta passagem?

 

A mais bela e a mais experiência profunda que o homem pode ter é o sentido do mistério. É o princípio subjacente à religião bem como de todo o empreendimento sério na arte e na ciência. Quem jamais fez esta experiência parece-me, se não morto, pelo menos cego. A sensação que por detrás de toda coisa que pode ser experimentada há algo que nosso espírito não pode atingir e cuja beleza e cujo sublime só nos atingem indiretamente e como uma reflexão longínqua. E isto é o religioso. Nesse sentido, eu sou religioso. (JAPIASSU, 1991, p.197)

 

Se ela tivesse sido dita por Fritjof Capra ou outro cientista místico atual, tudo bem. Acontece que as palavras acima são de Albert Einstein. Embora o cientista alemão não tivesse vocação de profeta, acertou em muitos detalhes. A física quântica hoje está mais perto da teologia, do misticismo, quer dizer do religioso e do provisório, muito longe da seguridade e da certeza que as leis cientificas antes pareciam lhe trazer. “Ao contrário do que pensava Einstein, Deus parece jogar dados com o Universo”, diz BETTO (2001 p. 945). A respeito da certeza, da isenção, da “arreligiosidade” pretendida na “Ciências da Religião”, vale dizer, em nome da boa ciência e da investigação honesta: “(...) a ciência é filha da dúvida” (BETTO, 2001, p. 947).

Considere-se ainda que a teologia passa por mudanças grandes. Por exemplo, neste ano (2004), haverá um grande simpósio a respeito do caráter acadêmico da teologia na universidade do século XXI, na UNISINOS, em São Leopoldo, entre os dias 24 e 27 de maio. A velha teologia está se reformulando e buscando outros rumos, com paradigmas diferentes, até porque não dá para negar que os tempos são outros e a teologia é um conhecimento como outro qualquer e precisa constantemente adaptar-se às circunstâncias históricas.

Igualmente ao aconteceu com a filosofia que, depois de ter ficada toda Idade Média subordinada à teologia e às interpretações dogmáticas da Igreja, libertou-se no século XVI, dando origem, de certa forma, às ciências particulares modernas e suas mais variadas teorias.

Se for correta a interpretação de Donald Wiebe, pode se falar aqui em dogma metodológico, no sentido em que se pendeu para o estudo não-religioso da religião, pretensamente presente na forma como a “Ciências da religião” aborda as questões religiosas, (FILORAMO & PRANDI, 1999).

É bom que se diga que essa foi uma opção de quem esteve encarregado de elaborar uma baliza pedagógica para o Ensino Religioso, mas é bom que não se esqueça que toda opção está também marcada por uma ideologia. E seria assim com qualquer outra opção, pois sabemos da filosofia existencialista que há duas coisas das quais os seres humanos não conseguem se livrar: a) Ter de tomar decisões; b) Não há decisão que não traga riscos.

Talvez a interpretação não seja justa nem correta, porém é possível deduzir que, como o nosso sistema de ensino foi e é ainda fortemente marcado pelo Positivismo Cientificista, fez-se uma opção por esse modelo porque ele é supostamente isento de tendências religiosas e simplesmente “funciona melhor”. Sobretudo porque a proposta era fugir de um modelo catequético-doutrinário, e nesse caso a abordagem não-religiosa da “Ciências da Religião” evita certos embaraços. De certo modo, talvez, pode-se falar aqui de uma estratégia, mas não de uma opção cientificista dogmática. Ademais também não se está dizendo que a teologia deveria ocupar espaço direto no campo educacional, como se tivesse que se consultada a respeito dos assuntos entre educação e religião. Isso seria um absurdo e uma submissão que uma educação responsável, crítica e honesta não poderia aceitar jamais.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos & ALVES, Lenoir Pessate (Orgs.) Processos de ensinagem na universidade: pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. Joinville (SC): UNIVILLE, 2003.

APLLE, Michael W. Conhecimento oficial: a educação democrática numa era conservadora. 2ª edição. Petrópolis (RJ): Vozes, 1999.

ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para reencantar a educação: epistemologia e didática. Piracicaba (SP): Editora Unimep, 1996.

BETTO, Frei. Física, cosmologia, teologia e espiritualidade. Fragmentos de cultura. Goiânia: Universidade católica de Goiás, v.11, n.6, Nov/Dez., (2001), p, 927-966.

BRAATEN, Carl E. & JENSON, Robert W. (Eds.). Dogmática cristã. São Leopoldo: Sinodal, 1990, v.1.

DEMO, Pedro. Pesquisa e construção de conhecimento: metodologia científica no caminho de Habermas. 4ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.

DREHER. Luís Henrique. Religião, verdade e utopia. São Leopoldo(RS): EST/IEPG, 1993. (Série: Ensaios e Monografias, n. 2)

ENSINO RELIGIOSO: Capacitação para um novo milênio.  O ensino no cotidiano da sala de aula. FONAPER – Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso: Caderno de estudos do Curso de Extensão a Distância, v.12.

FILORAMO, Goivanni & PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 1999.

FONAPER: PCNER. Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso:. São Paulo: Ave Maria, 1997.

JAPIASSU, Hilton . As paixões da ciência: estudos de história das ciências. São Paulo, Letras & Letras, 1991.

MENEGHETTI, Rosa Gitana Krob. As contribuições do ensino religioso para a formulação do Projeto Político Pedagógico da escola. In: Ensino religioso e sua relação pedagógica. Petrópolis(RJ): Vozes, 2002. P. 33 - 59

TILLICH, Paul. Teologia sistemática: três volumes em Um. Tradução de Getúlio Bertelli. 2ª edição. São Paulo: Paulinas; São Leopoldo (RS); Sinodal, 1987.

WIEBE, Donald.  Religião e verdade: rumo a um paradigma alternativo para o estudo da religião. São Leopoldo (RS): Sinodal/ IEPG, 1998.

ZABALA, Antoni. Enfoque globalizador e pensamento complexo: uma proposta para o currículo escolar. Porto Alegre: ArtMed, 2002.

 

Este texto é parte de uma monografia de Curso Lato Sensu que escrevi já faz um bom tempo.

 

  A obra é bastante vasta e abrangente. A análise aqui se vale apenas da introdução (p. 5-25), onde os autores, de forma panorâmica, expõem as questões que consideram relevantes a cerca do cientificismo em Ciências da  Religião.

De acordo com STACCONE (1989, p. 21), o termo teria sido criado por Platão e assumido posteriormente por Aristóteles.

Os próprios teólogos já há muito tempo perceberam que existe uma diferença muito grande em ser um profissional de uma Igreja (Padre, Pastor, Missionário, Reverendo?), e ser um pensador sobre a profundidade da religião em vários sentidos. Nesse sentido propuseram interpretações muito além dos limites estreitos em que a teologia foi definida. Por exemplo: WESTHELLE (1990, p. 258-262; 1995, p. 258-278); ALVES ( 1985, p. 13-29); BRAKEMEIER (2002, p. 31-33)

Cf., JAPIASSU (1991,  p. 205)

Cf., DREHER (1993, p. 09).

Por exemplo, páginas 22-23.