Teatro do Desassossego, em busca de um corpo em crise

Por Sidney Guedes | 21/05/2024 | Arte

Teatro do desassossego, em busca de um corpo em crise

De: Sidney Guedes

 

Portanto, a primeira modificação em relação a uma leitura horizontal consiste numa vontade de distinguir as diversas significantes contidas no espetáculo. (GUINSBURG, J. TEIXEIRA, J. e CARDOSO, Reni Chaves (organizadores). Semiologia do Teatro. São Paulo: Perspectiva,  2003, p. 24).

Introdução

Em minha trajetória de 35 anos de vida dedicada ao teatro, tenho transitado e refletido sobre inúmeras linguagens e perspectivas quanto ao fazer teatral e suas consequências estéticas e transgressoras. Muito tem me inquietado tal arte. Não sou do tipo que com o tempo, se acomoda num estágio de organização metodológica, permitindo um arrefecimento da chama intensa que deve impulsionar a complexidade do artista. A arte deve ser perturbadora, desassossegada e gerar constantes lacunas e rupturas para que possa mobilizar a intensidade humana num fazer total, único capaz de produzir, em minha opinião, uma poderosa arte.

 

O teatro continua a viver acima do real, a propor ao espectador um estudo de vida poética que, se impelido ao extremo, só conduziria a precipícios, mas assim mesmo preferível à vida psicológica simples, sob a qual sufoca o teatro de hoje em dia. (Linguagem e vida, Antonin Artaud – São Paulo:  Perspectiva, 2004, p. 75)

 

Em teatro, tenho me debruçado sobre o corpo do ator e a sua complexidade, gerando uma inquietação pesquisadora que me impõe ao inacabamento humano como matéria-prima para tentar gerar um caldo ou quem sabe mesmo um chorume profundamente contagiante e transformador. Um corpo em crise que necessita de potencialidade, de vigor e excitabilidade mas, que no entanto, inacabado como é, carece de transcender os limites musculares para alcançar a plenitude criativa. Um corpo sensorial, a flor da pele tem sido a busca constante de diversos pensadores, atores e encenadores do tecido teatral, no entanto, penso que um aspecto sensorial deve gerar respostas abstratas e efêmeras que novamente corporificadas, impulsionem o processo criativo numa transposição que faz do corpo sem órgãos de Artaud, algo possível para além da mera conceituação filosófica e idealizada. Gordon Craig, grande encenador e cenógrafo inglês, refletindo sobre suas inquietações teatrais nos diz:

Tudo leva a crer que a verdade em breve amanhecerá. Suprimi a árvore  autêntica que haveis posto sobre a cena,suprimi o tom natural, o gesto  natural e acabareis igualmente a suprimir o ator. É o que acontecerá um dia  e gostaria de ver alguns diretores de teatro encarar essa ideia a partir  deste momento. Suprimi o ator e retirareis a um realismo grosseiro os meios  de florescer a cena. Não existirá mais nenhuma personagem viva para  confundir a arte e a realidade em nosso espírito; nenhuma personagem viva em  que as fraquezas e as comoções da carne sejam visíveis. O ator desaparecerá e no seu  lugar veremos uma personagem inanimada que  se poderá chamar, se quereis,  a "Super-marionete" – até que tenha  conquistado m nome mais glorioso." (http://artes.com/reflexoes/ref37.htm )

 

    A teoria da transposição em teatro, que hoje também chamo de Teatro do Desassossego é fruto de longa pesquisa que venho desenvolvendo em espaços de formação de atores onde tenho atuado desde os anos noventa do século passado, onde uma prática desassossegada tem disparado possibilidades criativas e investigativas, no âmbito de um ator sempre presente, intenso e em crise transformadora. As inquietações, que nasceram de uma profunda reflexão sobre um ator capaz de suprimir a si mesmo, idealizado por Craig, bem como o corpo sem órgãos defendido por Artaud, me impulsionaram a procurar alternativas de transgressão criativa que transcendessem o corpo desse mesmo ator, visando atingi-lo intensamente, para que, impactado, porém atento possa manter-se em estado de criação constante até mesmo na repetição, o que chamo de anti-objetivo ou2 Clownterização da personagem, isto é, a busca daquilo que é patético e existencial naquele papel, construindo a partir das lacunas, daquilo que assombra a personagem e não, apenas, os seus objetivos em cena. Dar voz aos espasmos paralisantes, risíveis e patéticos que pululam na complexidade humana e que ainge o corpo de forma contundente.

 

O teatro é antes de tudo ritual e mágico, isto é, ligado a forças, baseado em uma religião, crenças afetivas, e cuja eficácia se traduz em gestos, está ligada diretamente aos ritos do teatro que são o próprio exercício e a expressão de uma necessidade mágica.  (Linguagem e vida, Antonin Artaud – São Paulo:  Perspectiva, 2004, p.75)

 

    O ator, mais do que alguém que precisa ter um corpo educado e um intelecto sistematizado em conceitos e linguagens, carece de ter a capacidade de transpor obstáculos que geram a dualidade mente e corpo, que tanto compromete o teatro, principalmente o ocidental. Ele precisa ver-se na intensidade humana e existencial que demanda seu ofício, cuja mesma humanidade e seus sulcos e ranhuras são o caldo criativo. No estudo da construção e pesquisa cênicas, tenho percebido que há um lugar que somente pode ser alcançado quando realizamos transposições, isto é transformações de informações em estéticas pós-corporais, no entanto, desencadeadas pelo corpo em desconstruções para outras estéticas cênicas que novamente atingirão o corpo pelo caminho do entranhamento cognitivo epidérmico. Um estranhamento que transforma o conceito de supermarionete de Criag, num hiposigno – explicarei mais a frente - que depois de macerado transforma-se em refluxo criativo, decantado e transformador

Um conceito, movimento, sonoridade, nuance ou qualquer outra característica presente na pesquisa de determinado personagem ou texto pode gerar “alquimias estéticas” que transcendem o fazer teatral e arrombam a totalidade da arte, gerando outras criações, que, novamente decompostas, geram no corpo do ator o contágio que desencadeia um sentido para o seu corpo previamente educado, agora, atingido pelo inusitado, seja potencializado por um desassossegado estado de crise. Esse estado não se prende a práticas repetitivas ou condicionamento físico adequado. Para além disso, ele carece de um corpo desassossegado pela crise da criação. Um gesto, pode gerar uma sonoridade, que desencadeia uma criação plástica, que se transforma em massa geradora para uma nova construção física, gerando, agora sim, um gesto decantado e livre!

O teatro como alquimia tem função de libertar sob a forma microscópica as forças que doravante serão apreendidas em plena ação. O teatro retorna sua força viva que já havia esquecido há bastante tempo, porque se tornara apenas ilusão e mentira, habituado, desde o Renascimento, a ser um teatro descritivo e psicológico que deixava o público intacto, sem abalar seu organismo. Fazia somente literatura. (Felício, Vera Lúcia G. A Procura da Lucidez em Artaud.  São Paulo: Perspectiva,  1996, p. 23)

Tenho provocado atrizes e atores a decantar, pequenas nuances de maneira que a reflexão racional não seja a tônica, desencadeando transposições viscerais dos mais diversos matizes, que ao final de um percurso “alquímico”, possibilitam entendimentos corporais e estéticos que brotam no fazer teatral por caminhos inusitados, porém sólidos.

A presente teoria, não tem a pretensão de levantar a bandeira de uma nova descoberta, ou de ser A DESCOBERTA em matéria de teatro. Não teria essa ambição por me perceber incapaz de tal intento. Ela é apenas o primeiro esboço de uma tentativa – talvez vã – de organizar os frutos de um trabalho que venho desenvolvendo a partir de minhas inquietações profundas no campo do fazer teatral. Inquietações que agora tento sistematizar e socializar visando lançá-las no cadinho de outros olhares e campos de experimentação livres da possível contaminação de meu olhar. Pensar num corpo sem órgãos e num teatro da peste passa pela libertação desse corpo da pretensão de reter nele toda a possibilidade de conter a plenitude do fazer teatral, como sonhava Craig, porém, fazendo dessa libertação mais do que uma supermarionete, contemplada e sem poder de contaminação, transformando-a em algo disparador de forças criativas e desassossegadas. Expurgar a criação para fora de si, mesmo sendo ela ainda parte de si, me parece um caminho que permite ao processo criador, se expor ao devido contágio, cuja nascente, por ser cristalina demais, não seria capaz de produzir. Uma criação contaminada pelo sal oceânico que atinge o leito calmo do rio cênico, gerando uma pororoca que por onde passa, tudo transforma.

 

O ator e o corpo transcendente

O ator é o veículo de si mesmo e o seu próprio fantasma. Sua arte e possibilidades criativas são tiradas de suas entranhas e a partir delas, ele é capaz de executar o seu ofício. O corpo do ator tem sido objeto de pesquisa desde que essa atividade existe (não falo da Grécia, mas de toda manifestação teatral que vem de múltiplos lugares), gerando leituras que vão desde um corpo educado e reprodutor de gestos e posições universais até a mais pura transgressão direcionada a um corpo sem órgãos (Artaud) visceral e intenso. De intérprete fiel a performer autônomo o ator vem construindo/reconstruindo o fazer teatral cujas fontes são múltiplas e para o bem dessa arte, conflitantes e contraditórias. Um corpo transgressor é sempre um corpo que desafia suas possibilidades cognitivas, sociais e biológicas, percebendo no cadinho perscrutador de suas vísceras um lugar onde ainda se possa tirar novas camadas de comunicação e renovação (não acredito que tudo já foi dito!).

Neste presente trabalho, me debruço sobre uma inquietação que me assola ao longo dos anos em minha caminhada em direção a utopia do “reconstruir-se” sempre na busca de novas camadas de comunicação e transformação. Em minhas profundas inquietações, tenho refletido muito sobre a possibilidade de um processo criativo ter a capacidade de transcender sua matriz geradora criando algo novo, fora de si, porém, impregnado si, que seja capaz de gerar estranhamento nessa mesma matriz, proporcionando, pelo embate de tal transposição, algo inquietante que gere nesse mesmo corpo, desassossegado por uma crise, novas possibilidades de entendimento e criação. É um lugar que busca fora do corpo, registros lançados por esse mesmo corpo em seu entorno, cuja força de atração os trazem de volta e atingem o seu âmago criativo. A pesquisa da teoria da transposição tem sido um caminho experimental onde tenho percebido respostas que atingem diretamente o corpo do ator de maneira sensorial/epidérmica sem a ingerência racional que a tudo tenta esquematizar e catalogar. O ator lançado da transcendência, percebe sua criação apartar-se de si, porém, por estar impregnada de si, refaz o caminho da criação, no que chamo de refluxo, transformando o corpo criador em corpo atingido pela autonomia de sua própria criação.

 

A consciência do corpo que transcende

O ator tem que perceber, apreender e trabalhar constantemente esse seu instrumento, cuja atividade depende sua arte e seu ofício. O Corpo do ator tem sido objeto de reflexão, discussão e trabalho constante. Dominar esse corpo, perceber suas possibilidades e limites tem sido algo fundamental na construção de sua função: a função do ator. O ator em nossa proposta, não só busca o conhecimento e o domínio de seu corpo, ele procura, mantê-lo em crise criativa e transcendê-lo para que, enfim, no estranhamento desse processo, possa enfim, receber o refluxo da criação.

Tanto Craig – e sob esse aspecto o parentesco entre eles é perturbador ´Artaud sonha com um ator que consiga libertar-se dos imponderáveis circunstanciais e renuncia à sua “liberdade de interprete”, alcançando uma disciplina vocal e um domínio corporal tão totais que se torne capaz de emitir, no momento oportuno, exatamente o “signo” que é solicitado a produzir. (Roubine, Jean Jackes. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 179)

    Tal refluxo, não é algo abstrato ou idealizado na mente de um pensador em busca de respostas teatrais, não! O refluxo é algo concreto, cuja resposta nasce de um corpo que epidermicamente reage a um estranhamento produzido por esse mesmo corpo, numa transposição de suas possibilidades criativas. O corpo, a partir de um estímulo inicial, geralmente saído de seu foco de pesquisa, vê esse estímulo ser transposto em outras linguagens e possibilidades artísticas e estéticas e a partir de tal processo de transcendência criativa e corporal, se vê afetado pelo resultado do mesmo, num refluxo que promove o ouro criativo.

 

Transposição

    Acredito que, mais do que ser livre, o processo criador precisa ser transcendente, isto é, ir além da linguagem matriz que o proporcionou. Ele deve se macerado e conduzido para outras formas potência de retransfomação e transposição. O ator, quando transgride o seu corpo levando a criação para fora de si, sem deixar de estar impregnado de si, resignifica essa criação, potencializando a mesma e gerando múltiplas possibilidades construtivas que não se limitam ao entendimento racional do gesto ou da ação. O entendimento o atinge por outras camadas, por lugares alquímicos que existem em si e para além de si.

O ator deverá combater incessantemente os esteriótipos ou sinais descritivos externos prolongados que, graças ao uso prolongado, já se tornam compreensíveis para todo mundo. Eles servem apenas para representar sentimentos em geral, o que não interessa o artista. (Azevedo, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2008, p.9)

 

    O seu processo criador é decantado por outras linguagens, por outros caminhos proporcionando uma força contaminadora e poderosa. Tal transposição ocasiona um entendimento sensorial/epidérmico, algo indizível porém, de forte poder comunicador. Transpondo-se, o ator macera-se, regurgita e reconstrói-se numa realização intensa, contagiante e pós-corporal que novamente atinge o corpo, só que agora como peste purificadora. É como se a Supermarionete golpeasse o ator, fazendo-o despertar de uma contemplação idealizada para uma contaminação concreta e epidérmica, numa verdadeira crise que lança o seu corpo ao inusitado em cena. Mas para isso, esse corpo precisa ser vigoroso, excitado e devidamente desassossegado para esse embate criativo.

 

Estranhamento cognitivo epidérmico

Da transposição e maceração do hiposigno, surge a nuance potência com grande capacidade de refluxo. Tal nuance, atinge intensamente o âmago do ator, gerando um estranhamento cognitivo epidérmico, isto é, algo que chega por contágio, para além da ação reflexiva que costuma nortear o trabalho do ator. O seu corpo mantém-se num estado de crise que por contaminação inter/externa, mobiliza suas forças criativas para além da idealização e esquematização racional. É um entendimento medular e sensorial, fruto de uma peste avassaladora. Quando falo crise, falo de um corpo que não se contenta em estar apenas educado para o ofício de ator. Trata-se de um corpo que entende que a criação não é privilégio da mente e sim de um grande sistema orgânico que tem a pele com potente fonte de captação. Por isso, um corpo desassossegado, atento e intenso.

Estética pós-corporal

A estética pós-corporal é a transgressão dos limites do corpo como elemento pleno de construção do ator. É disparar para fora de si, petardos contemplativos para que voltem transformados em impactos de criação.

Resta apenas um lugar no mundo, um só, onde podemos alcançar esse organismo e dele nos servir de uma maneira ativa: é o teatro, desde que renunciamos a nossa concepção europeia e consideremos o teatro como o lugar onde se manifesta uma vida consciente e excitada. Essa vida valerá de qualquer modo, mesmo se não aceitarmos essa ideia mais ou menos mágica de captação de forças, que também é admissível (Linguagem e vida, Antonin Artaud – São Paulo:  Perspectiva, 2004, p. 130)

    Mesmo partindo de si, o processo criador quando passa pela transposição, transcende esse mesmo corpo a partir do estranhamento do mesmo no ato de criar. São estéticas que se transformam em lugar de inquietação/construção/desconstrução. Na transposição surge um hiposigno (em minha opinião a supermarionete é um exemplo de hiposigno) que precisa ser macerado e decantado na perspectiva de surgir uma nuance potência.

Alquimia estética

A alquimia estética nasce da transposição do processo criador. É a transformação de uma nuance em ouro cênico, forjado no conflito das transposições. Transformando e resignificando linguagens e experiências, o ator liberta-se de conceitos pré organizados por sua experiência acumulada, transformando essa potência em combustível e não em conceituação sistematizada.

Este é o grau em que o teatro usa a magia da natureza, permanece marcada por uma coloração de tremor de terra e de eclipse, onde os poetas fazem falar a tempestade, onde o teatro enfim se contenta com o lado físico acessível da alta magia (Linguagem e vida, Antonin Artaud – São Paulo:  Perspectiva, 2004, p.76)

 

    Como combustível, tal potência atinge a centelha criativa gerando uma chama/combustão que dou o nome de refluxo, conceito fundamental na teoria que agora desenvolvo. Sem o refluxo o processo criativo se dilui em repetições descaracterizando o artista e transformando-o em mero artesão teatral.

Decantação

    Decantar é transformar o suco criativo em chorume, isto é, purificar o processo criativo pela sua capacidade de contaminar-se e se desprender do lixo da criação. Na decantação, a nuance é lançada para além do esquema corpo disciplinado para proporcionar um além/inter/corpo que refaz o caminho no cadinho da transposição. Quando um ator, faz e refaz o percurso de um gesto, transforma um gesto em música e tal música em potência que mobiliza as forças corporais para um gesto novo, porém de mesma matriz, por exemplo, ele lança o processo criador para fora de si certo de que será atingido pelo seu refluxo.

Ou fazemos com que todas as artes se voltem para uma atitude e uma necessidade centrais, encontrando uma analogia entre um gesto feito na pintura ou no teatro e um gesto feito pela lava no desastre de um vulcão, ou devemos parar de pintar, de vociferar, de escrever (Artaud, Antonin, O teatro e o seu duplo, São Paulo: Max limonad, 1987. p.104)

    O gesto, mesmo desencadeado por um eixo, se permite a ter vazamentos que fazem desse mesmo eixo, algo desencadeante, porém, com forte poder criativo. São os poros ou brechas, conceito fundamental que tratarei com mais a frente.

Massa geradora

Quando transposto, gesto, ação, inquietação ou nuance, transformam-se numa massa geradora, algo que está localizado entre o texto, o corpo do ator e a sua encenação. Da massa geradora, potencializada por um corpo em constante crise, nascem o signos macerados e livres. Livres porque transpõem o corpo e a ele voltam o atingido como algo novo e contagiante. De um hiposigno forjado, surge o signo decantado com grande poder de contaminação.

Hiposigno

A natureza do ator deve estar essencialmente apta a responder à excitação dos reflexos. Quem não possuir essa aptidão não pode ser ator. (CONRADO, Aldomar (tradução). O Teatro de Meyerhold. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 173)

 

    Hiposigno é o signo exacerbado, nascido do primeiro momento da transposição. É quando a transposição gera outra perspectiva estética, no entanto, ainda necessitada de uma maceração. É um esboço sígnico, cuja intensidade determina um princípio de construção e expansão! O Hiposígno é fundamental, por ser o primeiro a lançar-se para além do corpo. Ele desencadeia todo o processo que gerará o refluxo criativo mais à frente. A princípio, parece que o conceito de hiosigno é inadequado, tendo em vista que trato de um signo exacerbado que em tese deveria chamar-se hipersigno. No entanto, o hiposigno, muito embora seja exacerbado, não há nele a riqueza necessária que só acontece após o processo de maceração e decantação. Por ser um signo pobre, resolvi chamá-lo de hiposigno.

 

O Hiposigno no trabalho do encenador

Como conceito relevante na Teoria da Transposição em Teatro, o hiposigno tem papel fundamental no processo de encenação de um espetáculo. Munido desse conceito, o encenador, bem como, todo o elenco que trabalhe em processo colaborativo, deve entender que o momento de “limpar” a cena deve ser retardado, visando uma relação mais consolidada do ator com os signos cênicos que dele emanam. O diretor que imediatamente comece a desenhar a cena tirando as arestas da construção da personagem, corre o risco de pautar o seu trabalho em signos exacerbados sem que o refluxo (que é o impacto de volta no ator da atuação desencadeada no jogo cênico) se consolide. Esses primeiros signos, ainda não estão consolidados, por estar em construção a peripersona do processo em si. Isso pode desencadear atuações personalistas, gerando desequilíbrio no processo como um todo. Retardando a limpeza do ator, o que não significa, retardar o cronograma, o encenador valoriza a consolidação da membrana cênica (peripersona) que dará um entendimento sensorial exalado do jogo singular daquele determinado processo, fazendo com que o ator, possa encontrar o signo puro (falo a partir de Artaud), fruto da contaminação de todos por todos (teatro da peste). Queimar etapas, na limpeza da cena, gera mecanismos repetitivos de construção da personagem, impossibilitando que a crise construtiva e o desassossego permeiem o trabalho do ator. Dentro dessa perspectiva precoce, consolidamos atores artesãos, não artista plenos, o que compromete no teatro em sua característica inusitada e imprevisível. 

Nuance potência

A nunce potência é a crise, fluxo necessário ao hiposigno. É o que impede de haver solução de continuidade no processo criador. O hiposigno em si, se não macerado no cadinho da transposição estagna o movimento externo pós corporal, gerano contemplação e não visceralidade como acredito ser o caso da Supermarionete de Craig. Já a nuance potência propõe conflito ao hiposigno desencadeando o refluxo que é algo fundamental para que todo o processo novamente atinga o corpo do ator, gerando desassossego e força criativa.

Refluxo

    O refluxo é o resultado final da transposição. Nele, o ator é atingido pelo processo de decantação, gerando uma criação sensorial/epidérmica, que comunica ao corpo por caminhos outros para além da reflexão racional. Caminhos cheios de arestas, crises e desassossegos que o lançam num inusitado rico de potencialidades. No refluxo o ator é invadido de forma potente e vigorosa pelo signo decantado, pelo signo potência, proporcionando um entendimento epidérmico que reflete em sua estrutura sensório corporal, cujo estado constante de crise, o recebe com desassossegos intensos. No entanto, isso não se resolve nem se torna estanque. A transposição é sempre ininterrupta e precisa de um constante movimento fluxo/refluxo para continuar atuando e produzindo arte.

Transposição, reconstrução do movimento

    A transposição também se dá na reconstrução do movimento. O movimento reconstruído milimetricamente proporciona no ator um estranhamento sobre o seu processo criador. Reconstruir o movimento é resignificá-lo, transformá-lo em algo novo numa perspectiva de refluxo e afetação no sensorial do ator. Reconstruir o movimento é retransformar o criado; é macerar o hiposigno transformando-o em nuance potência. É, de um eixo comum, encontrar poros por onde o processo criativo possa vazar intensamente. Outro aspecto que visa, em minha teoria, manter o corpo do ator em constante crise, são os exercícios de contraponto, onde a intenção racional do ator se depara com o corpo agindo em tensão oposta. Tais exercícios colocam o corpo sempre em estado de crise e desassossego, condição fundamental para receber o refluxo e dialogar com ele.

Em busca do concreto pós corporal

    Todo movimento corporal é concreto, no entanto por estar impregnado de si mesmo, muitas vezes não desencadeia o estranhamento necessário para que o movimento afete a epiderme e a musculatura em si. O movimento geralmente é armazenado e catalogado racionalmente como partitura memorizada para posterior reprodução e execução.

Continuando nessa perspectiva, Artaud chega, mesmo a falar de uma metafísica da linguagem articulada, quando a linguagem exprime o não habitual, isto é, utilizada de um modo novo e excepcional. Sua função, doravante,  é a de provocar um abalo físico, a partir de sua divisão no espaço, com entonações em oposição a um uso utilitário. (Felício, Vera Lúcia G. A Procura da Lucidez em Artaud.  São Paulo: Perspectiva,  1996, p. 145)

    É uma execução sem afetação epidérmica e sem o devido estranhamento cognitivo, sem desassossego. Quando o movimento corporal é transposto para outras linguagens alquímicas o resultado final é concreto e para além do corpo. Esse resultado concreto e extracorporal, gera no próprio corpo um estranhamento contundente. Uma crise que a ele atinge num refluxo devastador de suas resistências racionais e esquemáticas. Ele é atingido e, como tal, reage com o corpo proporcionando o surgimento do signo decantado, do ouro cênico.

O conceito de “poros”

    O ator, em seu ofício, transita entre o ser criativo, inusitado, transformador e aquilo que em sua atuação é determinado (luz, marcas, texto, partituras, etc...). Como manter a criatividade viva e intensa, após a conclusão de um processo, quando determinado espetáculo entra em temporada? A teoria da transposição, em sua pesquisa, busca o que chamo de “poros” ou “brechas”, no processo criativo, mantendo-o vivo, apesar dos possíveis engessamentos que a repetição de um espetáculo possa ocasionar. É uma busca de encontrar no movimento repetitivo, aquilo que ainda é livre e, portanto, criativo e artístico.

[…] afirmo que há uma poesia dos sentidos e outra da linguagem e que esta linguagem física concreta a que me refiro só é verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que exprime estiverem para além do alcance da linguagem falada. (Artaud, Antonin, O teatro e o seu duplo, São Paulo: Max limonad, 1987. p. 197)

    Um movimento é a soma de vários estímulos corporais que se juntam na construção estética e sígnica e, sendo assim, potencializamos em atividades e exercícios a repetição atenta, percebendo, através da ênfase de cada estímulo que compõe o movimento, minuciosamente entendê-lo para fazer dele uma usina criativa para manter o gesto e toda a composição teatral vigorosa e produtiva. É como desmembrar as diversas potencialidades que são desencadeadas para que, com isso, nasçam “poros”, por onde a arte teatral possa externar todo o seu suor criativo, sem, no entanto, permitir que o movimento perca o seu eixo desencadeador. Quando não há vazamento criativo, acontece o que o Diretor teatral e grande amigo, Gabriel Barros, chama de interpretação precoce, numa clara e divertida ironia sexual. É quando o ator entra em cena e ejacula toda a sua capacidade criativa num só momento, impedindo o prolongamento do prazer cênico que deve durar todo o espetáculo e para além dele.

O Conceito de Eixo

    Na teoria da transposição em teatro, o conceito de eixo tem uma importância relevante. Pensar num corpo criativo e intenso, demanda uma atenção a construção do gesto cênico e suas múltiplas possibilidades criativas e estéticas. O ator quando se movimenta em cena, precisa movimentar também o processo criativo para caminhos de potencialidade e construção. Buscar alternativas que façam com que o instinto de criar não sofra solução de continuidade com os elementos que constituem um espetáculo, tais como, marcas, partituras, posicionamentos na luz, entre outros. É uma tarefa que deve inquietar o ator em sua arte no desenrolar de sua carreira. Acredito que o processo criador precisa vazar, daí, em minha teoria, ter desenvolvido o conceito de poros ou brechas. É quando um mesmo movimento pode sofrer nuances quando repetido. O que busco, é um movimento que se repete sem ser igual. O eixo nasce da atenção do ator para aquilo que desencadeia o movimento. Como na musculatura afetiva de ARTAUD, o ator deve perceber de onde parte a força desencadeante que faz com que o gesto aconteça. Uma vez percebendo e dominando o eixo do gesto e do movimento, automaticamente se abrem múltiplas possibilidades de criação sobre o mesmo movimento ou gesto. A manutenção do eixo garante a organização tão fundamental para a elaboração de um espetáculo, no entanto, permite a liberdade criativa também tão essencial para a construção artística.

    Em minha teoria e suas experimentações, provoco os atores e atrizes a buscarem entender a dinâmica de construção do gesto e do movimento. Com constantes exercícios de construção e desconstrução dos mesmos, o ator percebe o que de fato é essencial para que os mesmos aconteçam, deixando então, que o restante do corpo fique livre para criar a partir de uma mesma base de sustentação.

    Não tenho a pretensão de ser original, no entanto, percebo a importância de disseminar o fruto de pesquisas sérias, visando um teatro dinâmico, intenso e visceral, cuja inquietação no ator deve ser sempre a razão de seu ofício.

Dramaturgia e assombro

    O assombro visa criar elementos que brotam dos poros da dramaturgia. É o elemento vivo presente na obra, gerando inquietações e alimentando novas possibilidades criativas. Todo texto pode ser assombrado, pois o assombro é a reação humana ao processo criativo. No entanto, essa reação carrega em si uma potente carga dramática e quando alimentada, pode gerar desdobramentos novos e indizíveis à dramaturgia de onde tais assombros foram desencadeados.

A dramaturgia, para além de seu cunho literário, carrega em seu bojo sonoridades e prolongamentos provindos dos poros que atingem aqueles que sobre ele se debruçam. O assombro nasce dos elementos que, no desenrolar da leitura e pesquisa do texto, geram “capturas” sensoriais/orgânicas de nuances (palavras, curvas, frases, etc,) que atingem o ator, cujo refluxo, pode gerar um caldo dramatúrgico onde a fervura cozinha novos ingredientes e temperos.

Enfim, o assombro liberta o processo criativo e lança o esforço dramatúrgico no excitante perigo de escorregar das mãos firmes de esquemas autorais e literários, dando lugar a uma “poliautoria”, acrescida por mãos e vozes outras que brotam dos porões assombrados da criação.

 

A transposição na formação do ator

    Trabalhar e formar o ator na perspectiva da transposição é fazer desse ator um pesquisador de suas possibilidades/nuances e nelas, construir estratégias que possam fazer com que ele seja confrontado com a transcendência de sua criação. Fazer com esse ator ou atriz, mantenha-se sempre em estado de crise criativa e desassossego. Desde que comecei a me inquietar com a transposição, procurei me apartar da mera conceituação filosófica e acadêmica para que pudesse me embrenhar num empirismo onde a prática deveria corroborar minha proposta teórica. Minhas experiências têm gerado resultados significativos, quanto a um ator atento e transcendente, cujo refluxo criativo, o incomoda profundamente, direcionando-o para uma criação a partir de si mesmo, agora numa ótica de estranhamento gerado pelo refluxo. O ator se percebe desencadeador de um processo que, transposto, ganha a devida autonomia, suficientemente complexa e geradora de inquietação e transcendência. Tal autonomia, sinaliza para um processo criador complexo e não racional, cuja força atinge profundamente o ator em seu aspecto sensorial e criativo. A transposição se percebe como potência e, como tal, busca na vivência sua resposta e conceituação. Conceituar a transposição é trilhar num solo nem sempre fértil, no entanto, cheio de percalços potencializadores de crescimento e construção. Conceituar talvez seja impedir que a transcendência desencadeie seu mais potente fluxo, no entanto, conceituando, permitimos ser atingidos pelo refluxo e, aí sim, poder constatar a eficácia de tal teoria. A transposição fere a si mesma, mas não tem seu foco na cicatrização. As secreções inflamadas sim, são o seu objeto de pesquisa.

Manifesto da crise

    Trago uma reflexão para o corpo do ator. Uma reflexão que o tire do controle racional de si mesmo; que o impulsione para o indizível e que o faça transpirar desassossego. Trago uma proposta que não é nova, apenas provoco um olhar atento para um processo de tensão e conflito que faça do corpo um cadinho transformador e não um organismo treinado para um ofício, quando esse mesmo ofício carece de transgressão. O que falo é da busca de um lugar intenso, de muitas camadas e de muitos olhares. Um corpo que possa se comunicar com o novo a todo tempo, não permitindo que o novo deixe de ser novidade, quando na repetição.

Hoje, percebo que o corpo do ator precisa ser um corpo em crise, por ser o mesmo um lugar de instabilidades e transformações. O que proponho é que o corpo do ator encontre lugares de excitabilidade e refluxo. Lugares que o façam transcender para se desassossegar. A tarefa passa pelo não treinamento, isto é, um lugar que, muito embora o alimente para o ofício que exerce, provoque claras ranhuras, que chamo de crise, por deixar esse mesmo corpo sem o pleno controle técnico/racional do processo criador. O ator, nessa perspectiva está sempre em estado de desassossego, por enfrentar o papel de maneira epidérmica. Ele encara o papel transgredindo a leitura racional do fazer teatral para receber o refluxo de uma leitura assombrada pelo odor desassossegado provindo de um debruçar-se único cuja raiz é singularidade do processo em curso.

Ao negar o treinamento, este manifesto não pretende relativizar a formação do ator, apenas, contrariando o processo clássico de formação, sinaliza para a necessidade de uma deformação, isto é, de um lugar aberto para o inusitado, para o indizível, para o desassossego. O ator, ao negar uma formação equacionada, possibilita um “não lugar”, para que o teatro possa impregná-lo por tais brechas, gerando um corpo sempre em crise, por não dominar plenamente o processo, mas, que no entanto, possibilita um lugar ao efêmero, ao único, ao irrepetível. Elementos fundamentas que sustentam o teatro.

A presente proposta apoia-se em eixos essenciais:

•Exercícios de contraponto: que fazem com que o ator trabalhe lugares opostos na relação texto/corpo. São exercícios em que o ator é jogado para lugares de incoerência corpórea com relação a intenção textual. No contraponto, o ator, mantém o corpo em crise, apto para receber refluxos intensos;

•Assombro: quando permite uma ingerência sua sobre o texto, fazendo do mesmo um disparador para ecos pessoais. Um lugar que permite um “para além do texto”, que impulsiona um “para além do papel”;

•Transposição: onde novas linguagens estéticas são utilizadas na relação com elementos condutores do papel, para que, uma vez disparados, possam gerar refluxos que atinjam esse mesmo ator em seu processo criativo;

•Sulcos Cenográficos: espaços cênicos transmutáveis, móveis e inquietantes, que levem ao ator desassossegos espaciais, para que ele não contemple o conceitual e nele encontre um norte seguro;

•Cenas Disparadoras: encontrar na dramaturgia elementos disparadores de “energia” para o processo. São cenas com um grau de desassossego maior, por terem em sua construção o DNA do processo como um todo. Descobri-las é fundamentas para se ter um ator em crise;

•Sonoridades: perceber o que manifesta sonoridades no processo em si. Isso não se refere a sonoplastia, muito embora, se comunique com ela. Trata-se de perceber os lugares de movimentos musicais desencadeados pela relação grupo/texto/processo. Tais sonoridades, dão a liga necessária para que o processo seja único e desassossegado. Quando se descobre a sonoridade, se encontra um conceito para o espetáculo;

•Corpo em desassossego: É o estado de crise. O corpo dialoga com o texto numa relação que perpassa todo o processo de construção do espetáculo. O corpo desassossegado, interage com a luz, com a textura, com todos os elementos disparadores do processo em si. Sua construção não se dá apenas na relação racional da personagem ou na visão conceitual da encenação. Ele se deixa impregnar pelo processo e desse desassossego, faz minar sua criação.

Tal perspectiva, busca um lugar para o imponderável no fazer teatral. Não é o lugar do novo, mais do renovável, do transformado, do que brota da crise. Uso a crise com referência, porque ela gera reação, mas não uma reação previsível: na crise, a reação se dá de acordo com as circunstâncias e no teatro tem de haver um espaço para isso. Não trago novidades, mas desassossegos. Não quero ser inédito, mas busco gerar espaços de transformação inusitada. O teatro sem poros, vira artesanato cênico, escravo de repetições que funcionam, mas que deixam de desassossegar.

Sulcos cenográficos: por uma cenografia do refluxo

Em relação a uma proposta cenográfica contaminada pela teoria da transposição, me debruço sobre uma construção que seja fruto das inquietações que atingiram o ator nos vários processos de maceração e decantação. Penso em cenários e acessórios cênicos, cuja relação se dê pela transgressão corporal desencadeando construções e ambientes de estéticas provocadas pelo refluxo. O cenário deve tingir o âmago do ator (neste momento me permito dialogar com Tadeuz Kantor e o seu conceito de palco atravancado) Deve ser sígnico porém pendular, cujo movimento de idas e vindas, perturbam o ator em cena obrigando a reagir e a desencadear um processo intenso com a plateia. O cenário não mais reflete a história ou conceitos ambientais e sim tudo aquilo que o ator vomitou em sua pesquisa de transposição. Ele deve estar construído sobre sulcos criativos, perturbadores e viscerais.

Gromelô Corporal

O teatro ocidental baseia-se em regra geral, na expressividade do gesto. O problema consiste no seguinte: não basta executar corretamente, com exatidão, o  movimento determinado pelo diretor. É preciso ainda que esse movimento participe da interpretação do papel. Um mesmo gesto pode traduzir e suscitar uma emoção intensa ou refletir um desesperador vazio expressivo. (ROUBINE, jean-Jaques. A arte do Ator, Rio de Janeiro:  Jorge Zahar Editor, 2002,  p. 37)

 

Ainda dentro da proposta de um corpo em desassossego ou um corpo em crise, onde se busca tirar esse mesmo corpo do conforto racional harmonizado pelo domínio seguro de técnicas que antecedem todo e qualquer processo de criação cênica, em detrimento de um estado de desassossego tão fundamental para uma arte livre e sempre inusitada, proponho aqui o que chamo de gromelô corporal. No gromelô corpoal, se procura um estado de pré gesto ou gesto cru, onde o ator dispara intenções corporais orgânicas, isto é,  uma espécie de inconsciente da ação física, cujo frisson sensorial põe o ator em estado de excitabilidade pré criativa. No Gromelô Corporal, o ator dispara diálogos físicos livres e intensos. Há um estado de energia contida onde o corpo ganha vigor e não pleno entendimento da ação. Nele o ator se mostra através de um gesto nu e potente para além da ação física que é intimamente ligada ao gesto conduzido pela intenção. No gromelô corporal  busco a intenção gesto sensorial que nasce de um corpo afetado pelo estado de refluxo que a atuação por impulso pode causar. O ator busca estados corporais, não um corpo a serviço da intenção da cena.

Da mesma maneira, é possível distinguir diferentes sistemas gestuais que se liguem ou não ao modo de articulação do papel, pela situação etc. Uma mesma atriz poderá, sem dúvida, representar Berenice e a Dama das Camélias; ela não poderá usar indiferentemente para os dois papéis a mesma linguagem gestual, assim como não recorrerá às mesmas formas de articulação (idem, p. 38)

 

Estado Corporal    

O estado corporal põe o ator no ambiente da cena e não necessariamente no domínio pesquisado da mesma. O ator em estado corporal, permite que seu corpo entre na vitalidade essencial que a ação cênica lhe possibilita. Ele não nega o entendimento racional, no entanto, não permite que o mesmo limite o seu agir em cena. No estado corporal, o ator se afeta mas não organiza plenamente essa afetação. Ele é livre para possíveis nuances que nascem desse mesmo estado corporal. O Gromelô corporal visa potencializar esse estado e dele disparar um processo criativo desassossegado, porém livre de amarras. É um estado que faz da cena um lugar novo a cada instante, onde estados corporais em ação e diálogo, propõem no inusitado seu cadinho transformador. A cena é pesquisada, porém não violentada por marcas definitivas e criações cerceadas. No Gromelô corporal o gesto claro se mostra, porém se mostra efêmero, como deve ser tudo aquilo que diz respeito ao teatro. O efêmero é a essência mesma do teatro!

Construindo o Gromelô Corporal

Um único gesto, plasticamente elaborado, dramaticamente pertinente, terá mais intensidade e eficácia expressivas que um caos de movimentos esboçados, improvisados, que produzem uma sensação de hesitação e de não acabamento. (idem, p. 38)

 

O gromelô corporal nasce de um estado de pesquisa sensorial do ator com relação as suas possibilidades gestuais e excitativas. O ator busca movimentos disparados por seu corpo em estado de excitabilidade, para que daí, entenda toda a dimensão alcançada por um estado de pré organização gestual. O corpo, colocado em estado corporal, dispara movimentos físicos que alimentam esse estado, no que se refere ao seu estado de disponibilidade orgânica, onde a organização gesto/ação é o que menos importa. O fundamental nesse processo é colocar o corpo em estado de reação sensorial a um estado corporal alcançado, para que daí ele possa desencadear novas sínteses criativas. O corpo nesse caso, já não reage ao apelo intelectual da personagem, mas leva essa a um estado corporal de captura e desencadeamento de movimentos sensoriais livres e inusitados. A partir daí é que esse mesmo corpo percebe possibilidades de sínteses criativas. Porém tais sínteses, por estarem impregnadas de elemento inusitado, fazem do inusitado o disparador para novos desassossegos que virão. O ator nessa lógica não consegue entrar em processo de domínio pleno de seu ofício, gerando nele uma crise constante, tão importante para que ele continue produzindo arte em todo o processo em que está envolvido.

O Gromelô Corporal na formação do ator

Se deixamos de lado os gestos determinados pelo texto dramático, que são uma obrigação para intérprete (a bofetada de Cid, por Macbeth indicados no próprio diálogo da famosa cena de sonambulismo: “olhe como ela esfrega as mãos...) cabe considerar a parcela de invenção do ator, ou seja, esse conjunto de gestos e movimentos que o papel jamais determina, mas que o ator de talento sabe tornar fundamental. (idem, p. 38)

O gromelô corporal, muito embora, possa ser alcançado através de estratégias e exercícios, deve ser um conceito a ser perseguido por todo aquele que não se quer ver seguro no fazer teatral. O gromelô corporal é um disparador de nuances, não uma técnica que pura e simplesmente pode ser aprendida. Ele é um olhar sobre o fazer teatral que possibilita processos sempre inacabados, no entanto livres, que fazem do ator um ser sempre em crise, não afeito ao consolo de uma formação sólida e acabada. Ele é o inusitado arrombando as portas da criação fazendo dela um espaço aberto, sem amarras, perigoso, porém único para aqueles que realmente querem estar sob toda a insegurança que só a arte é capaz de proporcionar.

Raiz Potência

    Na teoria da Transposição em teatro, no que tange ao gromelô corporal, há um desdobramento de tal conceito que visa contribuir para que o ator/atriz possa disparar em seu corpo, um estado de desassossego que o mantenha vigoroso, intenso e afetado por um estado de atuação. Chamo isso de Raiz Potência. Na Raiz potência, o ator procura o radical emocional presente em sua atuação, para que possa a partir dele, construir roupagens cênicas que singularizem tal papel. Eu explico: um personagem pode ter como característica marcante sua liderança sobre outras pessoas. Diante disso, buscamos a raiz dessa característica, dialogando com o conceito de pré expressividade de Eugênio Barba, visando buscá-la crua, ainda sem a roupagem da personalidade como um todo. Buscamos, por exemplo, contrapontos para a característica de liderança e a desdobramos em subcaracterísticas: sedução, persuasão, força, etc. Ao desdobrarmos tais características e a exploramos cruas no corpo do ator, buscamos um entendimento sensorial/epidérmicos dos elementos que norteiam e alimentam a característica principal, no caso a liderança. O ator/atriz exercita momentos de imposição, outros de sedução, e outros ainda de força. Isolados, eles se potencializam gerando um maior entendimento e refluxo. O que chamo de roupagem é o que a personalidade do personagem pontua, potencializa ou ameniza em tal característica principal. Por exemplo: um líder ético, tem uma roupagem característica que o diferencia de um líder mau-caráter, no entanto, ambos possuem a mesma raiz e os mesmos atributos inerentes a liderança, que são graduados de acordo com a roupagem geral da personagem. Buscamos encontrar tal condição através de algumas estratégias:

  • Excesso cru – No excesso cru, o ator é colocado diante da ação mais exacerbada. Com base no exemplo acima, ele se vê diante de uma situação de sedução em seu estado mais intenso, assim também com a persuasão, etc. Ele busca uma raiz pré roupagem que gere em seu corpo um entendimento amplo da característica em si.

  • Contraponto extremo – No contraponto extremo o ator busca lugares corporais diferentes da roupagem de seu personagem, no entanto intimamente ligados a sua característica marcante. Potencializando subcaracterísticas ele não corre o risco de relativizá-las em sua atuação;

  • Roupagem singular – Na roupagem singular o ator lança mão de exercício de gradação, onde experimenta todas as potências características de seu papel para, numa confluência de subcaracterísticas, encontrar o lugar adequado e as nuances necessárias. A Raiz Potência visa dialogar com o papel de maneira epidérmico/sensorial. Tem o objetivo de disparar no corpo estados pré-expressivos (conceito de Barba), mas que nascem de um olhar cru do homem/mulher em cena e de suas características marcantes, para que, em contato com as marcas singulares do papel, possa construí-lo e deixá-lo sempre em estado de construção.

 


Peripersona


Na teoria da Transposição, na busca de um signo autêntico que desencadeie uma ação teatral intensa visando um entendimento epidérmico do que seja o processo teatral em si, se busca o que chamo de consolidação sensorial. Tal conceito visa disparar no ator um sentido físico do processo criativo como um todo, através de fragmentos de todas as possibilidades cênicas diluídas nos diversos personagens. Acredito que exista um “inconsciente dramático”, presente em todo novo processo. Comoele se dá em processo colaborativo a partir de exercícios e pesquisas comuns a todos, há um DNA presente em todas as construções de personagens de um mesmo processo. Chamo isso de peripersona, uma espécie de membrana cênica que reveste todos os personagens sem afetar a singularidade de cada um. Essa “membrana cênica” dá a liga necessária a manter o trabalho dos atores e atrizes inéditos sempre, buscando livrar-se de meras repetições de pesquisas já feitas. Ela nasce da contribuição única que ocorre em cada novo processo. Enfim, para se alcançar tal estado de coisas, se constróem exercícios de fragmentos, onde o elenco busca, experimentando gestos e movimentos de vários personagens do espetáculo, uma liga que o faça entender o que há de singular em tal pesquisa. O ator e a atriz aceitam deliberadamente ser contaminados pela pesquisa de seu companheiro(a) de jogo, para juntos capturarem a peripersona.
No entanto, para que ocorra a consolidação sensorial, é fundamental que o processo ocorra de maneira “colaborativa”, com a contribuição coletiva de todos os envolvidos no processo, orientados pelo encenador. Quando o Diretor exacerba o entendimento de sua função, e passa a centralizar todas as ações em si (marcas, elementos da construção, etc.), ocorre o fenômeno contrário, que chamo de egopersona, pele densa, sem poros, que abafa o processo criativo cerceado, fazendo de todos, artesãos, não artistas.

 

A Peripersona no trabalho do ator
 

Na busca pela consolidação sensorial, o ator deve ser estimulado a encontrar em seu corpo refluxos provindos da construção de outros atores que, com ele, jogam no processo de construção de um espetáculo. Mais do que sintonia, ele deve entender que a sua construção passa por fragmentos que nascem na construção coletiva, fazendo com que exista sempre algo do outro (e não falo filosoficamente e sim de maneira concreta), na sua maneira específica de atuar. Ciente disso, ele deve estar atento ao fato de que a substituição de um personagem deve ser "via poros" da construção, isto é, jamais se deve tentar acoplar um novo ator no processo e sim entender que esse novo ator, trará contribuições e precisará se impregnar do processo através de exercícios de consolidação sensorial. Muito embora, isso pareça, a primeira vista, comprometer o andamento de um espetáculo que às vezes carece de prazo ou substituição rápida, atentando para esse aspecto da construção cênica, se ganhará em qualidade artística e sensorial.
 

Exercícios de Consolidação Sensorial:

Exercício 1
Atores aquecidos;
Corrida alternando a maneira de se deslocar a cada sinal;
Corrida com sonoridades do espetáculo (elementos textuais);
Corrida imitando alguém do elenco;
Caminhada no personagem;
Caminhada no personagem com sonorização;
Imitar personagem de alguém do elenco;
Mesclar elementos do outro em seu personagem.
 

 

Exercício 2

Juntar atores que contracenam;
Contracenar ambos com o mesmo personagem, sendo que o texto se mantém o de cada um;
Contracenar alternando a imitação;
Contracenar de maneira certa mantendo um elemento do outro.

Exercício 3

Juntar atores que contracenam;
Contracenar ambos no personagem com o texto invertido;
Voltar a contracenar normalmente, buscando manter uma nuance textual do outro.

Exercício 4
Ambos dizem o texto fazendo o mesmo personagem;
Ambos respondem com o mesmo texto e personagem do outro.
Voltam a contracenar normalmente.
 

Exercício 5
Cada ator conduz o aquecimento a partir de um movimento corporal seguido de voz, que venha da construção de seu personagem. Os outros atores e atrizes imitam. Outro conduz, assim por diante, gerando uma partitura que percorra os diversos elementos criativos dos atores no processo.





 

Clownterizar a personagem

    Clownterizar a personagem é a busca daquilo que é patético e risível naquele processo criativo. Todos nós carregamos lacunas, entrelinhas e lugares outros que o palhaço usa como caldo criativo, a partir do momento que faz disso algo que deve ser exposto e ampliado. Este conceito lança o ator ao antiobjetivo, que significa construir a partir daquilo que a personagem tenta silenciar em toda a trama em que está envolvido naquele espetáculo. É aquilo que o tensiona por dentro, que tenta contê-lo quando ele exacerba e que o quer ver extrapolar quando ele silencia. A clownterização é o mergulho no quarto escuro da personagem, cuja lanterna acesa, dispara momentos singulares da condição humana.

 

Conclusão

A teoria da transposição propõe um ator atento e intenso. Atento por tem em seu corpo as possibilidades de transpor a si mesmo, gerando processos que visem atingi-lo em sua pesquisa cênica para além da contemplação racional. Intenso, por exigir do ator uma pesquisa constante e uma inquietação desassossegada sempre presente. Na transposição, um processo de montagem demanda trabalhar com afinco na busca de elementos que possibilitem transposições que comuniquem diretamente com a proposta a ser encenada. Essa teoria não condiz com enquadramentos, típicos de quem, ao conhecer vivências e exercícios, entende que eles devem ser repetidos em todos os casos e com os mesmos resultados. Não! Os conceitos discutidos até agora, apontam inquietações e não caminhos já sedimentados. O sucesso da teoria está intimamente relacionado com a sua capacidade de oxigenar-se a cada momento. Enquadrá-la em um método pronto é destruí-la em sua matriz.

Um ator para além de si mesmo, que vê o processo criativo transcender os limites técnicos e cognitivos de seu corpo para depois atingi-lo num refluxo devastador, intenso e decantado é o princípio que norteia todo este trabalho, bem como, tem norteado minhas inquietações no campo do teatro já há bastante tempo. Enfim, tais reflexões que agora esboço neste trabalho final da Pós em  Artes Cênicas, são apenas um primeiro escoadouro, pouco acadêmico, no entanto profundamente convicto de ser uma tentativa de clarear minhas reflexões na busca de um teatro que não me permita ficar em paz. È resultado de uma pesquisa séria, desassossegada que dialoga agora, ferramentas resignificadas no espaço de discussão de nosso curso. Por isso, optei, com a autorização da Anja Bitencourt, de trazer para este trabalho final as discussões que tenho travado em minha teoria, pois o espaço no espaço acadêmico ela passara pelo cadinho necessário que transcenda o meu próprio olhar, com certeza contaminado pela minha pesquisa.

 

Bibliografia

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BONFITTO, Mateo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2009.

CARVALHÃES, Ana Goldenstein. Persona Performática. Alteridade e experiência na Obra de Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2012;

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ROUBINE, Jean Jackes. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

ROUBINE, Jean Jackes. A arte do ator. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.