Suzana e seus pais

Suzana sabia que se dissesse para a mãe que suas amigas, Carla e Milene, bem mais velhas que ela, estariam na festa de aniversário de Paloma, sua amiga desde a infância, a mãe não a deixaria comparecer à festa.

Mas como uma mãe é capaz de proibir uma filha de dezesseis anos de ir à festa de aniversário da melhor amiga? O que provocaria a falta de confiança da mãe em sua filha? Ou ela estaria, como sempre achava Suzana, apenas querendo impedi-la de ser feliz? Afinal, pensava ela, os pais são assim mesmo: chatos ao extremo. Não são felizes e não querem que os filhos sejam.

Por isso, Suzana começou a se arrumar escondida para, num determinado momento, fingir que já dormia e, assim, fugir pela janela sem levantar suspeitas. Certamente, pensou ela, sua mãe bateria na porta até se convencer de que Suzana curtia um belo sono prematuro em plena noite de sábado.

O plano estava feito, mas intuição de mãe não se engana e, no momento em que Suzana se vestia para ir à festa, dona Celina abre a porta do quarto e a surpreende. Sem entender a cena, ela exige explicações:

― Mas o que significa isso, Suzana? Por que você está vestida desse jeito?

― Ah, mãe! É claro que eu vou sair, né?

― Sair? Como assim? Pra onde você vai sem me avisar?

― Sem avisar? Qual é, mãe? Eu não sou mais criança, né? Eu preciso avisar que aceitei o convite de aniversário da Paloma?

­― Mas é claro que você tem que avisar e pedir permissão para ir! Você não pode sair sem nossa permissão! E, mesmo não sendo mais criança, você ainda não é responsável por si mesma. Nós já conversamos sobre isso.

― Mas mãe! É só uma festa de aniversário! Eu vou à casa da Paloma e não vou demorar. Que mal há nisso?

― Minha filha, não é o local nem a ocasião o problema. Mas eu preciso saber quem estará nessa festa.

― Já entendi. O problema é a Carla e a Milene estarem na festa.

― Exatamente! Eu não quero que você esteja no mesmo ambiente em que elas estejam, a não ser na escola, que eu não posso impedir, pois vocês estudam na mesma. Além disso, você deve pedir permissão para ir a qualquer lugar que pretenda ir, acompanhada ou não, pois eu e seu pai a criamos assim, mocinha!

― Mas mãe... Eu já tenho dezesseis anos! Quando é que eu vou poder sair sem pedir a vocês? Isso não é justo!

― Justo? O que você entende disso? Por que tanta pressa em não nos dar satisfação e nem pedir permissão para sair? Um dia você terá essa privacidade, pois estará apta a cuidar-se sozinha. Não será mais responsabilidade nossa controlar aonde você vai ou com quem. Mas esse dia ainda não chegou. Você deve obediência a mim e seu pai!

― Tudo isso porque a Carla e a Milene vão à festa da Paloma!

― Essas moças já mostraram que não são de confiança, não são boa influência para você.

― Mas mãe, elas não podem deixar de ir. Foram convidadas.

― Mas você pode. Combine para visitar a Paloma amanhã, quando essas duas não estarão mais lá.

― Quando não terá mais festa, nem diversão, nem amigas, né? Tá vendo porque eu não ia pedir para ir? Eu sabia que não iria deixar.

― Pois então agiu muito mal, pois a mentira é tão errada quanto a desobediência. Você mostrou que ainda não é digna de nossa confiança. Se mentiu agora, quem me garante que não voltaria a falar com essas moças desmioladas na festa?

― Chega, mãe! Não quero ouvir mais nada! – saiu Suzana batendo os passos bem fortes em direção à cozinha.

― Espere, Suzana! – disse, caminhando em direção à filha.

― Você precisa entender, minha filha, que nós fazemos isso para te defender. Você é nossa única filha e precisamos te defender dos perigos da vida.

― Ah, mãe, não vem com esse papo de novo! Quem mal há numa simples festa de aniversário? Nem parece que você e o papai já foram adolescentes. Nem parece que querem que eu seja feliz – disse Suzana, já lagrimando e tremendo de nervosa, quase deixando o copo d’água cair da mão.

― Minha filha, não diga isso, por favor! Nós queremos vê-la feliz sim. Nós amamos você mais que tudo. Fizemos muito sacrifício para você chegar a essa idade bonita e saudável.

― Toda vez que eu tento falar sobre minha felicidade, você vem com essa conversa de se sacrificar por mim. Até parece que eu sou um peso na vida de vocês. Parece que não deixo vocês serem felizes!

― Não Suzana! Eu nunca disse isso! A gente apenas quer que você entenda que tudo que fizemos por você é a prova maior de que te amamos. Se não a amássemos, não nos esforçaríamos tanto para te criar.

― Para, mãe! Não quero mais ouvir nada! Essa conversa nunca me convenceu! Eu vejo as pessoas cuidarem de seus filhos e não reclamarem de nada. Não acho que dê tanto trabalho assim. Isso é uma desculpa que vocês inventam para ter razão em não me deixar sair para me divertir. Vocês não pensam em minha felicidade. Você e papai só pensam em me proibir de fazer as coisas de que gosto! Eu odeio vocês! – disse, correndo para o quarto em seguida, onde se trancou para fugir das próximas palavras de sua mãe.

― Não diga isso, Suzana! Nós amamos você! Por favor, acredite! – disse aflita dona Celina, deixando as lágrimas tomarem seu rosto.

Nesse momento, dona Celina não tem forças para bater na porta. As últimas palavras de sua filha lhe cortaram o coração como uma espada. Ela abaixa a cabeça e pensa dolorosamente que talvez esteja falhando como mãe por não conseguir fazer a filha aceitar suas decisões. Sabia que não era verdade que nenhum pai ou mãe tem dificuldade para criar seus filhos, mas não conseguia fazer Suzana aceitar isso. Sabia que ela e Ronaldo, seu marido, são sim felizes, pois se amam e se respeitam, apesar de uma ou outra discussão, coisa de casal. Sabia que tudo que haviam feito por sua filha foi o melhor que puderam. Porém, as palavras de Suzana “Eu odeio vocês!” iria martelar a noite toda em sua cabeça, pois sabia que isso significava que ela estava muito insatisfeita, não apenas com a proibição de sair, mas provavelmente com a forma como era tratada como um todo, com toda proteção e preocupação por parte dos pais.

Chegou a pensar, então, se não teriam errado em alguma coisa, pois sua filha dava, assim, sinais de que não era feliz. E essa ideia lhe apertava mais ainda o peito.

Foram dormir ambas chorando, pois era nítido que viviam em mundos muito diferentes. Ambas se sentiam incompreendidas. Celina lamentava muito o fato de seu marido estar ausente nesse momento tão difícil, pois se encontrava viajando a trabalho.

Suzana se sentia infeliz, pois não percebia o amor de seus pais em tantas proibições e controle. Não entendia porque eles eram assim. Sentia-se humilhada por não poder fazer as mesmas coisas que as garotas de sua idade. Falavam em beijar, fumar e outras coisas que despertavam sua curiosidade, pois queria experimentá-las. Paloma, sua amiga de infância também já experimentava um pouco mais de liberdade, tanto que convidara as duas moças que desagradavam dona Celina para seu aniversário, mesmo com a desconfiança de seus pais. Suzana contaria tudo no dia seguinte à amiga por celular para se desculpar da ausência e para desabafar sobre os pais “tão incompreensíveis”.

Mas antes disso havia uma noite de sono e Suzana tratou logo de dormir para esquecer a raiva.

Certa hora, sem saber se sonhava ou não, Paloma se surpreendeu com uma forte luz em seu quarto. Atordoada com o clarão, ela percebeu que a luz aos poucos começou a ficar mais suave até revelar uma figura angelical parada em sua frente. Surpreendentemente, Suzana não se assustou com aquele ser em seu quarto, ao contrário, sentiu uma imensa paz e calmaria com sua presença. Sem entender o que acontecia, o ser luminoso deu um sorriso para Suzana e lhe falou:

― Não se preocupe, Suzana, eu lhe falarei o que vim fazer aqui. Meu nome é Gabriel e vim te mostrar algo muito importante que te deixará muito feliz.

Suzana não conseguiu proferir nenhuma palavra. Seu coração palpitava, pois nunca tivera uma experiência dessas na vida. Gabriel continuou:

― Sei que você está muito aborrecida com seus pais e, principalmente, sua mãe, pois nem sempre permitem você fazer o que pretende, mas eu tenho a missão de lhe revelar que precisa conhecê-los melhor para entender por que fazem isso.

Subitamente, começam a aparecer imagens ao lado de Gabriel como numa imensa tela de TV, as quais ele começa a explicar:

― Essa mocinha que aparece é sua mãe quando tinha sua idade. Ela está pedindo a seus pais para ir à casa de uma amiga para conversarem. – fala mostrando três pessoas em uma casa bem simples de cidadezinha do interior, rodeada de matas e fazendas.

― Minha filha, já está escurecendo. Você não pode deixar essa conversa para amanhã de manhã? – disse sua mãe apreensiva.

― Mas mãe, ela vai viajar amanhã cedo pra cidade grande e só volta no outro mês. Eu quero me despedir dela.

― Eu sei filha, mas é que se você vier muito tarde de lá, pode ser perigoso. Dia desses uma moça foi atacada por um tarado na outra vila quando andava sozinha pelo caminho de matagal.

― É verdade filha. Esses tempos agora andam perigosos. Ninguém respeita mais ninguém. Que dirá uma moça de quinze anos. – disse seu pai, sentado no sofá da sala.

― Dezesseis, e três meses, pai. Não se preocupem. Na volta, eu peço para o irmão dela me trazer.

― Está bem, filha. Sendo assim, tudo bem. Mas não me venha muito tarde.

― O senhor também deixa, meu pai?

― Tua mãe já permitiu, não é? Então vai.

― Obrigada! Eu juro que não vou demorar muito.

― Assim, sua mãe foi até a casa de sua amiga para se despedir, mas, na volta, o irmão dela não pôde trazê-la, pois fora dormir mais cedo que de costume, visto que ardia em febre. – disse Gabriel a Suzana.

― E veja o que aconteceu...

Nesse momento, a imagem que passa é da jovem Celina voltando para casa por um caminho escuro e cheio de mato. A cena era tenebrosa. De repente, ela percebeu alguém vindo em sua direção, porém sem identificar se era homem ou mulher. Com medo, Celina seguiu em frente e, quando ele chegou perto, percebendo que Celina era uma bela jovem, segurou seus braços com força e tentou derrubá-la. Assustada, Celina gritou, mas não conseguiu fugir dos braços do homem, que a imobilizou com sua força física superior. Inesperadamente, surgiu um homem, Ronaldo, que também passava por ali, puxou o estranho para si e lhe desferiu vários socos, derrubando-o no matagal. Ao constatar que o homem não mais reagia, Ronaldo e Celina saíram correndo para a direção da casa da jovem.

Chegando lá, seus pais já a esperavam muito preocupados. Quando viram Celina acompanhada por Ronaldo, que não conheciam, ficaram preocupados. Quando ouviram o ocorrido, ficaram muito gratos por Ronaldo ter salvado sua filha. Depois, começaram a conversar para conhecê-lo melhor e descobriram que ele não morava no local. Estava apenas visitando seus tios que moravam a algumas propriedades dali, mas havia notado que a jovem Celina andava só naquela escuridão e a seguiu de longe para ver se chegaria em casa bem. Como estava muito escuro, Ronaldo não percebera a hora do ataque do tarado, apenas quando Celina gritou.

Agradecidos, seus pais o convidaram para passar a noite com eles para não correr o risco de ser pego pelo maluco, mas Ronaldo rejeitou a proposta, pois seus tios ficariam preocupados. Assim, o pai de Celina resolveu acompanhá-lo até certo ponto do caminho. Ambos se armaram com facões para se defender se fosse necessário.

A revelação dessa história fez com que Suzana entendesse por que sua mãe se preocupa tanto quando ela precisa sair sozinha.

Mas ainda não havia acabado. Gabriel voltou a falar.

― Esse ato heroico de seu pai fez com que seus avós aceitassem prontamente, quando ele a pediu em namoro. Mesmo morando na cidade grande, ele sempre os visitava até se formar e conseguir o primeiro emprego na cidade, o que permitiu que se casassem e viessem morar na metrópole.

Depois, a imagem que surgiu foi a de dois jovens que pareciam andar com certa dificuldade. Ela estava grávida de seis meses e se dirigiam para um hospital.

― Calma, querida, eu já chamarei um táxi pra nos levar ao hospital.

― Mas amor... Você vai gastar muito dinheiro com um táxi. Eu vou de ônibus mesmo. – disse Celina gemendo de dor.

― Não tem problema, amor. Pela nossa filha e por você, eu trabalharei o que for preciso. O importante é vocês serem logo bem atendidas.

Naquele tempo, não se fazia ultrassonografia na rede pública de saúde da cidade, mas os seus pais já sentiam que viria uma menina daquela barriga.

Já no hospital, após o atendimento, os dois se confortam:

― Sabe Celina, eu sou o homem mais feliz do mundo, pois você é a mulher da minha vida e está me dando uma filha.

― Eu também, amor. Mas ainda estou preocupada: como faremos para preparar o enxoval do bebê? Você ainda ganha pouco para as despesas.

― Não se preocupe, querida. O pessoal da empresa me disse que fará um chá de bebê pra você. Quando souberam hoje que eu teria, quer dizer, você teria um bebê, eles procuraram arranjar logo essa festinha. Eu não lhe disse antes porque, assim que cheguei em casa, você já estava sentindo dores e eu não pude tocar no assunto.

― Puxa vida, amor. Que colegas legais você tem.

Em outro momento, a imagem deles é justamente no chá de bebê, realizado duas semanas depois. Celina disse, chorando:

― Eu queria agradecer a todos vocês que organizaram esta festa. Obrigada por todos esses presentes. Eu tenho certeza de que deixarão nossa filha muito feliz, assim como eu estou.

― Nós desejamos que vocês três sejam muito felizes!

E todos os convidados os abraçaram e desejaram-lhes felicidades.

Neste momento, Suzana já está derramando a primeira lágrima por esta revelação. Ela não imaginava que seus pais criaram tanta expectativa em torno de seu nascimento. A próxima imagem é a de seus pais pintando e decorando seu futuro quarto. Sua mãe se preocupou com todos os detalhes, desde os enfeites nas paredes até o revestimento do berço.

Em outro momento, Celina pegava as roupinhas já compradas para o bebê e as cheirava suavemente, apertando depois sobre seu peito carinhosamente.

Os olhos de Suzana estavam cheios de lágrimas. Nunca imaginaria tais cenas. Quando somos tão jovens, não pensamos no que significávamos para nossos pais antes de nascer. Mas a mensagem ainda não havia terminado. Gabriel continuou a narração:

― Finalmente, chegou o dia mais esperado na vida de seus pais: seu nascimento.

Ronaldo encontrava-se do lado de fora da sala de parto. Estava muito nervoso, quando chegou uma enfermeira que lhe disse:

― Parabéns, senhor Ronaldo! É uma bela menina!

Chorando, Ronaldo abraçava a enfermeira enquanto agradecia.

As cenas seguiam passando, mexendo cada vez mais com Suzana, que já não mais estava com sono.

Agora, a imagem era de uma pequena casa numa noite chuvosa e um choro de bebê. O casal conversava:

― Aqui está a receita, Ronaldo! Vá logo à farmácia trazer esse remédio!

― Sim, amor! Eu virei o mais rápido que puder! – disse, saindo logo em seguida.

Correndo pelas ruas da cidade, Ronaldo não percebe um buraco numa poça de lama e cai, torcendo o tornozelo. Seu grito de dor é estridente, mas notado por quase ninguém numa noite em que as pessoas preferiam estar em casa àquela hora da noite. Enfrentando a dor, Ronaldo logo nota seu tornozelo inchado, mas não se detém e continua a busca por uma farmácia 24 horas. Encontrando uma, ele logo se vê diante de mais um problema:

― Mas senhora, são só dois reais que faltam! Por favor, deixe-me levar o remédio para minha filha que está chorando muito!

― Infelizmente, não posso pagar por esses dois reais para o dono da farmácia. O senhor terá que procurar outro lugar mais barato.

Nesse momento, outro funcionário se prontifica a ajudar.

― Pode levar o medicamento, meu amigo. Eu pago a diferença.

― Oh! Muito obrigado, meu amigo. Eu preciso muito desse remédio para aliviar as dores de minha filha. Quando tiver o dinheiro restante, eu virei pagar.

― Não se preocupe com isso. Vá logo levar o remédio para sua filha e que ela fique logo bem.

― Muito obrigado!

Em outra cena, Ronaldo chegou em casa apressado com uma lata de leite. Mostrou à sua esposa, que saiu logo com a pergunta:

― Mas como você conseguiu? Nós não tínhamos dinheiro.

― Calma, meu amigo Lúcio me emprestou o dinheiro. Ele disse que não me preocupasse com a devolução.

― Oh, Jesus! Que grande amigo você tem. Graças a Deus.

Na cena seguinte, Celina aparece levando a pequena Suzana para uma creche. Ela se deteve por um instante, quando se abaixou para falar com sua filha:

― Não se esqueça, minha filha: é só por algumas horas. Mais tarde, mamãe já está de volta, tá? Por favor, não chore. Hoje é seu primeiro dia de aula e a tia vai tomar conta de você. Tchau!

Ao sair, Celina disfarçou a lágrima que lhe saía aos olhos.  

As imagens já eram suficientes para fazer Suzana enxergar seus pais de outro modo. Ela estava convencida de que sempre foi muito bem cuidada por eles e em nenhum momento fizeram isso com raiva ou como se o esforço fosse mera obrigação, mas sim movidos por um intenso e autêntico sentimento de amor por ela, sua querida filha. O ser angelical sumira.

Suzana não podia mais se deixar levar por desejos egoístas e de ingratidão. Não dormiu direito, até porque aquelas imagens a fizeram lembrar as vezes em que seus pais a ensinaram a pedir a Deus (Papai do Céu, na época) que protegesse seu sono e a fizesse adormecer em paz.

No outro dia, Suzana acordou e correu para o quarto da mãe, mas não a viu. Foi até a cozinha e encontrou sua mãe de costas, lavando uma louça.

Dirigiu-se a ela e, com um leve toque nos ombros, a fez se virar e abraçou-a longamente até chorar. Sua mãe parecia entender tudo o que havia acontecido e também chorou.