Resumo: Um pronome revoltado,  uma banana apaixonada, uma salada separatista.  

 

Sopa de letrinhas

 O meu almoço mede a exata distância que vai do peixe com salada  à banana-prata. Assim posto, quero dizer, assim  confinado à dimensão espacial,   procura escapar ao visgo da subjetividade.

 Ali estão os alimentos, ali está eu com o gesto de comer.

 E acaba.

Acabado, volto ao campo de batalha.

Alguém soluça.

 – Quem está aí?

– Sou eu.

– Eu quem?

– Sou eu, banana-prata.

– Por que choras?

– De ingratidão.

– Explica-te.

– Vossa Excelência me magoou.

– Como assim? Vamos, explica-te!

– Pensei que Vossa Excelência tivesse notado. Eu não sou mais uma objetividade pura. Já fui um dia, há muito tempo. Hoje, depois de tanta convivência com Vossa Excelência, eu aprendi a sentir, e não me sinto visguenta. Adoro o nome que Vossa Excelência me dá: banana-prata. Não é lindo? Aliás, adoro Vossa Excelência também. Posso beijá-lo?

– Sai daqui. És um caso isolado.

 – Desculpe, doutor, mas a bananinha não está só. Eu também fui subjetivada um pouco e quero mais.

– E você, quem é?

– Eu sou a seqüência peixe com salada  >  banana-prata.

– Subjetivada? Você? Não é o que parece. A mim você me chega objetiva como a escada que me conduzirá em instantes à banana-prata,  e nada mais.

– Doutor, se me apresento nesta ordem – peixe com salada > banana-prata – parecendo natureza, não o faço senão à força do gerenciamento de vosmecê. Natureza, doutor, já era. Se dependesse de mim eu desfilaria de banana-prata > peixe com salada.

– Meu gerenciamento? Você está brincando. Peixe com salada > banana-prata é a ordem  convencional; todo mundo come assim.

– Tudo bem, mas vosmecê também é responsável. De qualquer modo, objetiva é o que não sou. De mais a mais, a imagem da escada que vosmecê colocou entre mim e a  bananinha  foi muito infeliz. Vosmecê esqueceu da Escada de Jacó. Conhece a história da Escada de Jacó? Jacó caminhava pelo deserto. Cansado, deitou-se no chão e recostou a cabeça sobre uma pedra. Aí ele sonhou. Aí...

– Pode parar. Conheço a história. É cheia de mistérios e de mistérios eu ando farto. Quer saber de uma coisa? Você é afiada no reparo das fraquezas alheias, mas não se dá conta das suas. Já parou para pensar no estrago que seria você almoçar comigo vestida de  banana-prata > peixe com salada?  Não seria mais subjetividade, seria delírio romântico. Com dez refeições naquela ordem qualquer um gradua-se em poete maudit.

– Vosmecê está nervoso. Vou-me embora. Adeus.

– Pois vá. Prefiro ficar só.

 – Lamento, meu velho, mas isto é agora uma impossibilidade.

– Não vejo nenhuma impossibilidade. A solidão ainda é o meu refúgio. E antes que eu perca a paciência, apresente-se! Quem é você, que eu nunca vi?

– Aí é que esta, meu velho, vivo a um palmo do seu nariz e você não me enxerga. Eu sou o seu almoço. Estou com você todos os dias e você não me vê, tão fixos tem os olhos naquela gravioleira que o separa do horizonte, que você também não alcança.

– É o que me faltava, um sermão.

– Que que é isso, meu velho? Para você acabaram os sermões do mundo. Resta-lhe um, que eu recomendo.

– Você é o meu almoço, e daí?

– Daí que, como a bananinha e a seqüência peixe com salada > banana-prata, venho protestar. Apreciei o seu esforço impressionista, aquela tentativa de dispor as coisas exclusivamente na dimensão espacial. Se tivesse notado a minha presença, teria percebido que, embora espacial, eu sou um espião do tempo. Note que o meu nome – almoço – soa desde o berço uma nota incoativa, quer dizer, sou uma realidade bi-polar, amarrada a uma dialética implacável. Impossível me evocar apenas no espaço. O relógio é um velho companheiro.

– Bem, na verdade eu...

– Não se vexe, meu velho. Poupe-se. A fila é grande.

– Fila? Que fila?

O almoço apontou com os beiços na direção de uma fila de conceitos, cada um com a sua ponderação.

 Pude ver a  salada empunhando uma faixa : “Exijo autonomia. Fora peixe com salada. Solte-me! Escreva apenas salada, salada, salada.”

Um pouco mais ao fundo (quem diria?), estava carrancudo, com os braços cruzados sobre o peito, ninguém mais que o gesto de comer.

– Qual é a tua queixa?

– Gesto? Eu ? Comer não é um gesto. Comer é a única verdade realmente empírica.

Não retruquei. Respeitei a ingenuidade da expressão. Percebi que ela não conhecia o “Fome Zero”.

Por fim, estava lá, no rabo da fila, eu, indignado com a concordância que lhe impus, flexionando o verbo na terceira pessoa. Era demais. Sua auto-estima estava arrasada.

Nisso, lembrei que ao jantar me prometiam sopa de letrinhas.

 Mandei cancelar. Jantarei chá com torradas.