Soldadinhos de chumbo
Publicado em 29 de maio de 2013 por Osorio de Vasconcellos
Resumo: Como Nero, eu também alimentei, durante algum tempo, fantasias incendiárias.
Soldadinhos de chumbo
Estou de mudança. Nossa! Quanta coisa acumulada nestes dezoito anos! Acreditem. Até gravetos - provavelmente em momento de aguda introspecção - achei de estocar.
Estoquei, perdi de vista e acabei esquecendo.
Vai senão quando, me aparece uma pessoa interessada em comprar os imóveis. Damos um giro pelos quintais e, passando por um galpão, ela exclama: o que é aquilo?
- Aquilo o que?
- Aquilo.
Olhei e lá estavam os gravetos. Seriam em torno de trinta feixes amarrados com estopa de coqueiro.
Estive a ponto de responder ao pé da letra.
– Aquilo? Aquilo são gravetos - mas logo adverti que, respondendo assim, frustraria a manobra metafórica do visitante. A pergunta não cobrava definições. Os gravetos falavam por si: somos gravetos.
O que pedia esclarecimento eram os feixes, o empilhamento, a estocagem, enfim, os traços culturais agregados à matéria inerte. Havia ali, por certo, uma intenção. E era precisamente isso o que o visitante almejava conhecer.
Não é possível precisar o tempo que despendi na tentativa de reencontrar o caminho da verdade, para dar ao visitante uma resposta honesta. Uma coisa parecia certa: a verdade não estava mais ali, na pilha de gravetos. Os gravetos eram como o retrato de uma realidade desaparecida. Digo isso porque os gravetos empilhados pareciam soldadinhos de chumbo preparados para uma guerra que eu declarara ao mundo, alguns anos atrás e que por pouco não acabou comigo.
Eu talvez quisesse como Nero incendiar o mundo e começar tudo de novo. Os gravetos serviriam para atear as chamas iniciais. Uma boca de fumo aqui, um partido político ali, uma igreja mentirosa acolá, pouco a pouco o fogo purificaria a terra.
Seja lá como for, o fato é que o visitante não comprou os imóveis. Parece ter levado um susto com a imagem que usei para explicar o meu arsenal de gravetos. Eu lhe disse: - o que você está vendo ali aponta para a lua, mas não é a lua.
Creio até que chegou a duvidar da minha sanidade mental.
Nem por isso lhe guardo qualquer rancor.