Resumo: Dois amigos de longa data estudam alternativas para evitar que belíssimos boleros românticos  se transformem em meros chiliques de saudade.

 

Sofre a tua dor resignadamente

 

- Que tens aí?

- Um pen-drive com músicas antigas.

- Que tipo de música?

- Boleros.

- O que pretendes fazer com eles?

- Ouvi-los, ora essa, o que mais poderia fazer?

- Tens razão. Na tua idade,  na atual conjuntura seria esquisito dançá-los e cantá-los, como fazias em rapaz.   E estás preparado?

- Preparado pra quê?

- Pra ouvir os boleros, ora essa.

- E é preciso?

- Me dá aqui este pen-drive... É o que eu pensava.

Constavam do pen-drive, dentre outros não menos enfáticos,  os seguintes boleros: Perfídia, Ansiedade, Hipócrita, Angústia, Fracasso.

- O que achas?

- Tens certeza de que estás preparado?

- Qual é o problema, cara? Abre o jogo.

- Sei que foste criado na penumbra dos cabarés. Minto?

- É. Pode ser.

- Sei que viveste intensamente a fase romântica dos boleros, que os dançavas com leveza, que os cantavas com paixão. Minto?

- E daí.

- E daí que tudo mudou. Presta atenção. Todo o território de referencias e relações que homiziava  cada uma dessas canções deixou de  existir. Tens ideia do que levas aí nesse pen-drive?

O amigo olhou para o pen-drive meio desconfiado.

- Eu já disse, são boleros.

- Sim, boleros, mas boleros normativos, esqueletos descarnados, mera virtualidade.

- Estás querendo me dizer exatamente o quê?

- Que tomes cuidado, que descartes a ilusão de que ouvindo esses boleros do pen-drive reviverás as emoções da tua juventude.

- E por que não?

- Ora, meu caro, porque é impossível reconstituir  o cenário que dava às canções o sentido único que elas tinham. O frescor e o perfume da mulher amada, a paixão que te roía, e tudo o mais da  sedução perdeu-se para sempre.  Meu amigo, este pen-drive que ingenuamente levas contigo, leva consigo, além do conteúdo normativo alheio à tua vontade, apenas  pó, cinzas, e nada mais.

- Mesmo assim vou tentar. Não me custa nada.

- Pois tenta, se gostas de sofrer, tenta.

-  Mas, espera um pouco, agora me lembro, tu tinhas uma coleção de boleros antigos e me falavas deles com entusiasmo. Que aconteceu?

- Simplesmente revi os meus conceitos. Cheguei à conclusão de que é preferível ouvir um ruído vivo, atual, a uma sombra musical.

- Isro me parece exagerado. Será que não ha outra saída?

- Na verdade há outra saída.

- E qual é?

 - É pegarmos os nossos boleros e reimplantarmos neles valores vicários daqueles que se foram.

- O quê, por exemplo?

- O valor de símbolo. Um bolero-símbolo  não maltrata ninguém. Pelo contrário, o símbolo é obra espiritual, apuro da consciência, intérprete privilegiado das mais secretas modalidades do ser. 

- E como é que se faz isso?

- Faz-se pensando,  em vez de sentindo. Sei que não é fácil. Pensar exige esforço, dtirisciplina, obstinação.  Diferente do bolero-saudade que, na ânsia de ressuscitar, se entrega facilmente.

- Acho que não vou conseguir.

- Claro que consegues. E quando conseguires ouvirás sorrindo qualquer bolero da tua juventude. O símbolo te manterá lucido e sereno. Podes testar a minha teoria ouvindo, por exemplo, o bolero Perfídia, que começa assim:

Sofre  a tua dor resignadamente..

ou assim, se escolheres a versão original:

Nadie compreende lo que sufro yo...

Livre de qualquer nostalgia verás que o passado retorna fulgurante  na plenitude de sua dignidade.