SOFIA OU HILDE, EIS A QUESTÃO

Edevânio Francisconi Arceno

Prof. Diego Finder Machado

Curso de Pós-Graduação em História Cultural – AUPEX

Literatura, Memória e Sociedade.

27/09/09

Quem não desejou um dia atravessar a "Ponte para Terabítia" e viver as mais loucas aventuras em um mundo completamente imaginário. Quem quiser ousar, não precisa ir muito longe, pois este mundo pode estar a sua frente, talvez não tenha nem que atravessar o rio. Basta abrir um livro e viajar por reinos fantásticos, repleto das mais variadas culturas em qualquer tempo e espaço. Nesta viagem quem determina o tempo é o leitor.

A maravilha da literatura, é que seus personagens ganham vida própria a ponto de o próprio escritor perder seu domínio sobre eles, pois vão desenvolvendo suas próprias Histórias. Para relatar nossas impressões sobre a simultaneidade entre Literatura e História, gostaríamos de fazer uma analogia através da vida de duas adolescentes com a mesma idade, aparência, sonhos e outras semelhanças. A primeira é Hilde Knag, uma linda jovem que vive com a mãe, mas espera angustiada pela volta de seu pai, Albert Knag, um oficial militar no Líbano a serviço da ONU. Outra é Sofia Amundsem, filha de pai ausente, vive com a mãe e como toda adolescente espera ansiosa pelo seu décimo quinto aniversário. A vida de Sofia era exatamente igual à de outras adolescentes, muitas dúvidas e poucas decisões, até que um dia recebeu uma correspondência anônima com a seguinte pergunta, "Quem é você?", sem saber, neste momento ela estava iniciando um curso, um caminho que mudaria sua vida para sempre.

Você já se deparou com este questionamento? Afinal quem somos nós!Somos o que pensamos ou pensamos o que somos! Estas e muitas outras respostas foram encontradas por Sofia, com ajuda do seu professor de Filosofia Alberto Knox. Esses personagens ganharam vida através do escritor norueguês Jostein Gaarder, em "O mundo de Sofia". Esta obra traz um debate entre o real e o imaginário. Na medida em que a trama vai se desenvolvendo o autor nos revela que aquilo que tínhamos por verdadeiro era falso e o falso verdadeiro.

Afinal quem é real, Hilde ou Sofia? Depende da perspectiva. No livro, "O Mundo de Sofia", somente uma delas é real, porém para o escritor Jostein Gaarder, ambas são imaginárias. Então o que é real e o que é imaginário?

Esta questão vem polemizando a relação entre História e Literatura. A História diz que a Literatura não é real, enquanto a Literatura pergunta à História, o que é real ou quem é real? Vemos esta relação, como um amor platônico e incestuoso entre irmãs ou de duas adolescentes curiosas como Hilde e Sofia. De um lado temos Sofia ou a História, toda certinha, responsável, preocupada com que os outros dizem, acham ou pensam a seu respeito. Sempre procurando respostas no passado com pensadores no assunto em questão. De outro temos Hilde ou a Literatura, desligada, pois esquece as coisas, é descompromissada, romântica, mimada e até mesmo irresponsável, porém ela tem algo que a diferencia, sua simpática narrativa. Então diz à Sofia para ser mais simpática (Narrativa), porém Sofia diz que Simpatia é sinônimo de fantasia e seu compromisso é com a verdade. Porém, o que é verdade?

Alguns dizem que nossa realidade depende de nossos sentidos, de nossa mente e de nossas subjetividades. Os Gregos antigos acreditavam numa verdade absoluta e universal advinda de sua Mitologia e Filosofia. Santo Tomás de Aquino, na Idade Média, definiu a verdade como um acordo do pensamento com o real. As verdades e os conceitos sobre as coisas mudam com as apropriações de novos conhecimentos, como por exemplo, a circunferência da Terra, que até pouco tempo achava-se que era plana e delimitada por precipícios infindáveis. Muitos associam a verdade, à uma neutralidade absoluta, porém uns pensadores a vinculam à subjetividade enquanto outros a consideram condicional. Como podemos observar este embate entre real e imaginário é antigo, por isso a Literatura grita aos quatro ventos, quem garante que a História (Sofia) é a verdade e quem lhe deu o direito de dizer que o resto é imaginário.

Atualmente é comum observarmos nas salas de aula, a presença cada vez mais constante da Literatura, auxiliando nas aulas de História, mas até que ponto esta aproximação é conveniente? A historiadora gaúcha Sandra Pesavento, tem vários estudos sobre a relação entre História e Literatura. Ela procura demonstrar que apesar de ambas terem diferentes objetivos na construção da identidade, se apresentam "como representações do mundo social". A autora entende que a partir deste conceito de representação é possível incluirmos a Literatura como mais uma fonte histórica.

"a ficção não seria o avesso do real, mas uma outra forma de captá-la, onde os limites da criação e fantasia são mais amplos do que aqueles permitidos ao historiador [...]. Para o historiador a literatura continua a ser um documento ou fonte, mas o que há para ler nela é a representação que ela comporta [...] o que nela se resgata é a re-apresentação do mundo que comporta a forma narrativa". (PESAVENTO, p.117)

O conceito de representação passa a ser essencial para entendermos essa aproximação. Outro autor que apregoa esse conceito é Roger Chartier, ele diz que o conceito de representação deve ser compreendido como um "instrumento de um conhecimento mediador que faz ver um objeto ausente através da substituição por uma imagem capaz de reconstituí-lo e figurar na memória como ele é". Neste sentido, acreditamos que os textos literários podem ser compreendidos, como representações que demonstram a sociedade da época retratada através dos contextos, que aparecem de uma forma ou outra, na descrição dos personagens, na maneira de como se comportam, ou seja, na forma como o enredo é construído.

Apesar disto, é importante salientarmos que a literatura traz representações singulares do autor, mesmo que este trate da pluralidade social, enquanto a História trata de representações sociais, baseadas nas narrativas singulares do historiador e suas fontes. Resumindo, uma representação literária é singular enquanto que a histórica é pluralizada.

Para concluir, gostaríamos de ressaltar que a narrativa histórica e a narrativa da ficção são semelhantes, mas não podemos radicalizar dizendo que não são diferentes. Acreditamos que as narrativas históricas seguiram e devem seguir técnicas específicas, através da leitura de documentos, técnicas de análise, organização das fontes, sempre utilizando os critérios de provas. Não podemos esperar o mesmo procedimento da narrativa literária, porém o historiador pode apropriar-se desta narrativa, bastando apenas confrontá-la com outras fontes. Desta forma ele estará analisando e enriquecendo-a com a cientificidade exigida pela narrativa histórica.

Quem não sentiu o coração pulsar mais forte, a cada mensagem solucionada e mistério desvendado pela garotinha Sofia, como um gigante quebra-cabeça onde a solução era sua própria inexistência. Sofia, a História, poderá conviver perfeitamente com Hilde, a Literatura, enquanto cada uma viver em sua dimensão. A partir do momento em que uma tomar o lugar da outra, a História termina. Diante disto quem nos garante que não existe um norueguês maluco escrevendo e brincando de Deus com a sua, a minha ou a nossa vida? Quem pode nos garantir que não somos como Hilde ou Sofia, personagens de uma História sem fim, ou com dia e horário marcado para a leitura do último parágrafo. O que é real? O que é imaginário?

Para nós, não importa se as imagens que estão sendo refletidas na grande parede da caverna são imaginárias ou reais. Temos que ter em mente, a certeza de que as correntes que nos aprisionam diante desta parede, são imaginárias. Elas não existem, então não podem nos deter, estamos livres e a um passo de ver o real, pois o que nos separa dele são nossas atitudes. Se a leitura desta despretensiosa literatura lhe fez ver isto, estimulou ou simplesmente fez você refletir sobre sua História, se és Sofia ou Hilde, acreditamos que ambas, História e Literatura, podem perfeitamente coexistir.

REFERÊNCIAS

CHARTIER, Roger. O mundo como Representação. Estudos Avançados, nº 11, p.115-127. Jan./Abr. de 1991.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia.

São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Relação entre História e Literatura e Representação das Identidades Urbanas no Brasil (século XIX e XX). In: Revista Anos 90, Porto Alegre, n. 4, dezembro de 1995. p. 117.