PORRUA, Marcelo[1]

RESUMO: O contributo de Michael Foucault para se pensar o movimento pelo qual a sociedade passa, e nela o Estado, é essencial para compreendermos os vieses necessários que o direito tem assumido na regulação das relações humanas. Percebe-se uma mudança de modus operandi da disciplina imposta pelo Estado que se quer dissimular apenas na forma como ela atua: antes reduzida a tempos e espaços, agora formata-se atemporal e em todo lugar, mas continua viva e intensa no seio social. A tentativa de fundir o que é público e o que é privado traz ao Estado um controle social muito maior do que aquele que ele mesmo exerce; à vigilância do Estado agrega-se o controle social, próprio do modelo neoliberal que o Estado tão bem representa. Cada cidadão se torna o responsável, graças à tecnologia, pelo controle do outro. O Direito, permeado pelas relações de poder, produz suas verdades, com o recorte social que lhe interessa. Como instrumento da liberalidade à qual o Estado vem representando, aplica-se às relações de modo a balizá-las conforme uma realidade criada, inventada, desejada por aqueles que mantêm os processos de controle. Assim, o Estado, no afã de garantir o modelo neoliberal de sociedade, tem no direito, em sua aplicação e, fundamentalmente, na produção própria de seus saberes, o instrumento perfeito de perpetuação da disciplina e do controle que querem garantir que esta mesma ordem se perpetue.

PALAVRAS CHAVE: Sociedade Disciplinar; Controle Social; Michael Foucault.

1 DA DISCIPLINA AO CONTROLE

A passagem da modernidade para a contemporaneidade ocasionou uma mudança no modelo de sociedade; contudo, há quem afirme que essa passagem ainda não aconteceu, que a dita pós-modernidade ainda não existe, e o que vemos é apenas o desenvolvimento natural da modernidade.

Ao se adotar a ordem do pensamento foucaultiano, tem-se que assumir que a sociedade é essencialmente disciplinar, com todos os seus requintes, mas que vem abrigando outros referenciais, passando gradativamente a uma sociedade de controle. Para isso, chama-se à discussão outra contribuição, o pensamento deleuziano, que admite que uma sociedade vista por Foucault como “disciplinar”, passa a um modelo de sociedade identificada como de “controle”. Hoje, vive-se um momento de transição entre um modelo e outro, que pretende sair de uma espécie de completo encarceramento para uma forma aberta e contínua de controle.

A sociedade de controle tem se colocado um passo à frente da sociedade disciplinar, contudo não se pode chamar isso de evolução, mas de mudança de métodos; pois, sabe-se que a sociedade disciplinar não deixou de existir, ela foi expandida de um modo puramente objetivo – em que há o ente disciplinador - para uma forma muito mais subjetiva – em que todos vigiam todos. (POMBO, 2014)

Por sua vez, os dispositivos disciplinares tornaram-se menos limitados e as instituições sociais modernas criam indivíduos mais flexíveis que antes. Essa transição para a sociedade de controle substitui a objetividade exclusiva do Estado, para uma subjetividade que não está exatamente no indivíduo, pois este não pertence a nenhuma identidade, mas ao mesmo tempo pertence a todas.

Segundo Foucault, nas sociedades disciplinares o modelo Panóptico é dominante, e requer que o observador esteja presente e em tempo real para observar e vigiar, mas, por outro lado, nas sociedades de controle, a vigilância é rarefeita, pulverizada e virtual, conforme nos explicam (POMBO, 2014).

As sociedades disciplinares são essencialmente arquiteturais determinando locais que sediam a disciplina como a casa da família, a Escola, o Quartel, a Delegacia, o Fórum, a Promotoria, o Conselho Tutelar, etc. Por outro lado, as sociedades de controle apontam uma espécie de anti-arquitetura que se configura na ausência dessas sedes, que se desinstalam fisicamente, mas se instalam em um mundo virtual.

Perceba-se que na sociedade de controle, o aspecto disciplinar não desaparece, o que muda é a atuação das instituições que não exercem mais o seu poder a partir dos seus limites espaciais, mas de forma fluida estão em todos os espaços sociais, abolindo definitivamente o confinamento e expandindo seus horizontes de ação.

Apesar de ainda usadas, as técnicas disciplinares originadas a partir do século XVIII que se destinavam a garantir que os indivíduos fossem submetidos a um conjunto de dispositivos, baseavam-se na vigilância permanente, na normalização dos seus comportamentos, tornando-os dóceis aos “indisciplinados”. Uma vez confinados a essas instituições, garantir-se-ia a sua plena adequação social.

Entretanto, o confinamento deixou de ser a estratégia para o exercício do poder, relativizando a fronteira entre o público e o privado. Aqui, reside um dos aspectos fundamentais na construção da passagem da sociedade disciplinar para a de controle, conforme Pombo (2014), há um processo de estabelecimento da lógica do confinamento que atinge toda a sociedade, sem necessidade de existirem muros que separem o lado interno e externo das instituições.

Percebe-se que de há algum tempo há uma vigilância contínua, concretizada pela propagação das câmeras espalhadas por toda a parte: no comércio, bancos, escolas e até mesmo nas ruas.

 

Isto traz a dimensão da sociedade auto-vigiada, aspecto que se intensifica quando se pensa na disseminação de dispositivos que incentivam um comportamento em que todos podem e querem espiar todos. Trata-se da reinvenção do panóptico foucaultiano que passa a atuar com o objetivo claro de transformar o modo de viver, pensar e agir dos indivíduos e não apenas de discipliná-los em suas incorreções. (POMBO, 2014)

 

Se a principal premissa da sociedade disciplinar era fazer com que o indivíduo modelasse o seu comportamento, a partir da possibilidade de estar sendo vigiado por alguém, essa perspectiva se transformou. Na sociedade de controle, a disciplina já está incorporada a tal ponto, que os indivíduos sofrem os efeitos dos dispositivos disciplinares, independentemente, da presença de autoridade investida de poderes de coerção. Por isso, a sociedade de controle redimensiona e amplia as bases da sociedade disciplinar.

Como argumenta Deleuze (1992), a passagem de uma sociedade disciplinar a uma sociedade de controle, requer que a imagem pura se transforme em informação que passa a ser vigiada e monitorada.

 

Não creio que [as mídias] tenham muitos recursos ou vocação para captar um acontecimento. Primeiro, eles mostram com frequência o começo e o fim, ao passo que um acontecimento, mesmo breve, mesmo instantâneo, prolonga-se (DELEUZE, 1992, p: 198).

 

Desde o início das sociedades modernas, os meios de comunicação contribuíram decisivamente para a construção da subjetividade dos seres humanos. Não é razoável pensar o mundo contemporâneo sem levar em conta o papel da mídia. Um dos traços fundamentais da contemporaneidade é exatamente o inesgotável fluxo de informações que são disponibilizadas a uma quantidade cada vez maior de pessoas, e que, de certo modo, conformam a realidade, as relações sociais e a subjetividade humana.

 

A realidade do final do século exige cada vez mais que os sujeitos saibam lidar com uma imensa gama de informação que invadem diariamente a sua vida quotidiana (...). Lidar com o impacto deste fluxo acelerado de informações e, principalmente dar-lhe um significado, ou seja, interpretá-las integrando-as na sua visão do mundo, é hoje uma tarefa inevitável dos sujeitos modernos (GUARESCHI, 2000, p. 43).

 

Pergunta-se: o que ocorreu, para que a sociedade saísse da vigilância, para imergir no submundo do controle? O controle, na sociedade atual, é exercido de modo “glamourizado” pela indústria cultural. Assim, substituem-se as diferentes formas da violência física pelas técnicas de controle social, pela psicologia e pela psiquiatria e ultimamente pelos meios de comunicação de massa.            

 

Em vez da força física para fazerem sofrer os corpos indóceis, em razão de não se ajustarem, o que ocorre é a internalização da ideologia exercida pelos meios de comunicação de massa, que produzem certa forma de ser, de viver, de pensar e de sentir, gerando um sentimento de auto-exclusão, quando não corresponde ao que o “homem médio” se propõe. (POMBO, 2104)

 

A estratégia atual é construir subjetividades, de forma a que estas se enquadrem no modo de vida oferecido pela sociedade, pois de acordo com Foucault, o poder moderno exerce-se na produção e na repressão. Os vigias, hoje, são todos, indivíduos e a sociedade, é o espetáculo que substitui o lema “Penso logo existo”, por outro ditado: “sou visto, logo existo”, conforme Quinet (2014). Ainda segundo ele, a sociedade é dominada pelo olhar, que é onividente sob diversas formas; mas não pode ser esquecido que o olho que vigia e pune, é o mesmo que possibilita a fama.

Assim, a sociedade que tudo observa impõe uma existência vinculada à visibilidade, e logo, à celebridade; por outro lado, amplia cada vez mais a vigilância e o controle sobre cada indivíduo. A sociedade, ao utilizar esta estrutura subjetiva, multiplica os seus dispositivos de vigilância eletrônica e transforma a todos em objetos vistos e controláveis. A transparência passa, assim, a ser um ideal, quando muitas vezes o que se quer, o que se necessita, o que se impõe é apenas o direito de ser deixado em paz.

 

Assim, a visibilidade “total” a que se submete um cidadão pode ser uma armadilha, pois a sociedade vem criando uma condição de transparência como condição de ser moderno, contudo, a visibilidade ampliada é um direito, tanto quanto o de permanecer na obscuridade, à margem da história ou em um passado considerado longínquo, no esquecimento. (QUINET, 2014).

 

Ainda, convém lembrar que cada pessoa, no exercício ou não de sua cidadania, é ao mesmo tempo produtor e produto da sociedade. Ninguém é simples fantoche neste jogo de forças, mas co-autores no silêncio, na “naturalidade” com que se encara este estado das coisas que não são naturais, apenas constructos humanos que refletem os interesses de um momento histórico dominado pelas relações de poder.

 

2 O ESTADO LIBERAL

A constituição do Estado moderno, que é o Estado liberal, está intrinsecamente ligada ao surgimento das novas relações de produção capitalistas, que leva à instauração de um modelo político disciplinar e normativo. Esse modelo visa à modelagem do indivíduo e o gerenciamento dos comportamentos coletivos; em síntese, a formatação do indivíduo e de administração das massas.

 

Como se tem visto, as sociedades modernas são caracterizadas, por Foucault, como sociedades, em sua essência, disciplinares e normativas, na medida em que o desenvolvimento do indivíduo e da sociabilidade se dá a partir dos condicionamentos do panóptico, compreendido como um modelo a partir do qual deve emergir o indivíduo e a população moderna. (POMBO, 2014)

 

O Estado liberal é o grande idealizador das novas relações de produção capitalistas desenvolvidas a partir da modernidade. Por isso, há uma ligação intrínseca entre o Estado liberal moderno, seu surgimento e o desenvolvimento das relações de produção capitalistas e a instauração da uma biopolítica que vai tratar de gerir a vida em toda a sua extensão, de organizá-la, vigiá-la, em vista dos interesses capitalistas.

 

Assim, o Estado moderno é um estado altamente disciplinador e normativo, uma vez que tanto o desenvolvimento de cada indivíduo, como da sociedade, são condicionados pelo dispositivo panóptico, que é o modelo basilar dessa sociedade. Em Foucault, afirmar que a sociedade moderna é altamente disciplinadora e normativa significa exatamente que o indivíduo está submergido em um circuito de poder que o torna útil e dócil aos interesses do sistema de produção capitalista, que em última análise, o Estado representa. (DANNER e OLIVEIRA, 2014)

 

No entendimento de Danner e Oliveira (2014), Foucault diagnostica que a anátomo-política, age no corpo dos indivíduos, no homem-corpo, e a biopolítica, age no homem enquanto ser vivo, no homem-espécie; esses dois poderes, em última instância, dão suporte ao desenvolvimento e a manutenção da hegemonia capitalista.

Portanto, a anátomo-política e a biopolítica são dois mecanismos de poder que colocados em funcionamento, querem garantir o controle da população e sua total submissão ao processo de produção capitalista, e, longe do que se pode imaginar, então em pleno desenvolvimento.

Centrada especialmente no corpo dos indivíduos, as disciplinas executam uma política das coerções, ou seja, trabalham sobre o corpo, e manipulam seus gestos, seus comportamentos, em vista do adestramento completo desse mesmo indivíduo; isso feito há uma considerável ampliação de suas aptidões, a submissão de suas forças, o desenvolvimento de sua docilidade e utilidade. Cada indivíduo é capturado em uma maquinaria do poder que os esquadrinha, os desarticula e os recompõe.

As disciplinas são, portanto, “uma anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 1987, p. 120); nada, em nós, escapa de sua ação; elas agem naquilo de mais íntimo e particular que temos, isto é, sobre nossos corpos, buscando torná-los mais dóceis e submissos possível.

 

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por um lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita (FOUCAULT, 1987, p. 119).

 

O panóptico caracteriza-se como uma arquitetura dessa nova tecnologia disciplinar, pois, como observa Foucault, é um instituto de vigilância que possibilita que alguns indivíduos vigiem eficiente e permanentemente o comportamento de muitos. Ele funciona como um laboratório de poder graças à qual é possível fazer experiências e obter o controle e a manipulação do comportamento dos indivíduos.

O panóptico é o princípio de uma nova “anatomia política” que não visa à instauração ou à manutenção de relações de soberania, mas apenas às relações de disciplina. É por isso que não se deve confundir a disciplina com uma instituição ou com um aparelho; ela é uma espécie de poder, um modo de seu exercício, que possui um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é, para Foucault, uma tecnologia.

No que entendem Denner e Oliveira (2014), Foucault detecta que o biopoder foi um elemento indispensável para que as relações de produção capitalista se desenvolvessem, e que só foi possível graças à inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e o ajustamento da massa aos processos econômicos. O capitalismo exigiu ainda o crescimento, a otimização e a docilidade dos corpos; foram necessários, também, métodos eficientes para aumentar as forças e controlar a vida, sem com isso torná-las mais difíceis de sujeição.

 

Essas técnicas de poder presentes em todas as organizações sociais operaram, também, o distanciamento das camadas sociais e a devida hierarquização, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia de uns sobre os outros. (DENNER e OLIVEIRA, 2014).

 

Seguindo o raciocínio de Deleuze (1992), as ações do Estado como ente disciplinador das vontades, dá, paulatinamente, espaço para um Estado de controle em que não são mais os corpos a serem docilizados, tornados aptos à sujeição através de instituições que tem e essa função. O controle é algo que se exerce por todos, todos vigiam todos em vista de um projeto de segurança a que todos devem estar submetidos.

A tecnologia ampara diretamente essa operação e o que era antes privado agora é público, o que era de interesse particular vira informação de massa; sendo adotada não apenas como uma característica social, mas sendo adotada como política governamental, política de Estado, um estado de garantia de uma ordem que estabelece as prioridades da liberalidade do mercado em detrimento da vida pessoal dos cidadãos.

Ao mesmo tempo em que o Estado exige cotas para que ex-detentos sejam absorvidos pelo mercado de trabalho em âmbito privado, ele determina a não aceitação em seus quadros funcionais de pessoas que sofreram alguns tipos de processos, mesmo que já tenham devidamente pago suas penas. É o controle dos atos e não do próprio individuo que vale não pelo que é, mas pelo que fez ou deixou de fazer, eternizando algumas penas que, uma vez cumpridas, deveriam ser esquecidas.

Assim, o próprio Estado, ao passar de uma visão disciplinadora dos corpos dos indóceis, passa a fazer o controle não apenas dos corpos, mas também das mentes, e não apenas daqueles que poderiam ferir-lhe a ordem, mas daqueles que também se colocam como defensores da mesma, deixando a cada cidadão o legado de defensor, de paladino da justiça, de algoz do seu semelhante.

As instituições disciplinadoras, ao dividirem sua responsabilidade com cada cidadão correm o risco de esvaziarem-se, pois o sigilo de algumas ações não mais é garantido, dando muito mais ênfase ao sigilo de informações patrimoniais do que a fatos que atingem diretamente os direitos de personalidade dos indivíduos. Muito mais fácil para o Estado disponibilizar a lista dos processos judiciais sofridos por alguém, dados inclusive para alguns cidadãos sem nenhuma exigência especial, como prerrogativa de função, no âmbito da vida privada, do que informações bancárias, por exemplo. Assim, o controle à vida privada dos cidadãos é muito mais contundente do que se possa imaginar.

Nessa hierarquia de valores, a coisa que é um gênero da espécie dos bens, tem uma maior tutela jurídica do que a pessoa em si mesma. É a supremacia do patrimônio frente aos bens da personalidade. Pois, no capitalismo o “ter” vale mais do que o “ser”. O homem em si mesmo que deveria ser tutelado pelo Estado, de forma absoluta, somente o é em situações que atendem aos interesses mercadológicos, quando não atendem, pode ser devastado em sua intimidade, cobrado não por suas ações, mas pelo que é e pelos valores que tem.

É dessa forma que o Estado cumpre sua função de proteção da ordem econômica, estendendo de forma contundente a missão do controle dessa ordem a todo e qualquer cidadão, inclusive instrumentalizando-o para tal empreendimento.

 

3 O DIREITO E OUTROS SABERES

Segundo a inspiração do pensamento de Foucault, o Direito e a produção jurídica estão permeados por relações de poder presentes no seio social. A esta premissa, Foucault chega a partir da análise da questão da produção do conhecimento de modo a evidenciar que a verdade tem uma história e, portanto, não é algo metafísico ou transcendente, acima do bem e do mal. Como constructo humano, há caminhos empregados para se chegar a uma verdade.

Partindo dessa idéia, pode-se inferir que cada sociedade tem seu regime próprio de verdade, em outras palavras, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; bem por isso, a produção de verdades atua também no campo do direito, mostrando que o direito, enquanto produto social, também se encontra permeado por relações de poder.

 

A ciência jurídica é um saber novo, que está calcado não apenas no homem como centro da especulação, como objeto da ciência, e nem mesmo como apenas o sujeito que conhece “coisas” fora de si mesmo; a ciência jurídica faz parte de uma perspectiva científica em que o homem desempenha uma dupla função no saber da modernidade – sujeito e objeto -, e é essa duplicidade que constitui o a priori histórico que explica o aparecimento das ciências humanas e as formas jurídicas (ASENSI, 2014).

 

Machado (1982), ainda postula que todo conhecimento, seja ele cientifico ou ideológico, somente poderá existir a partir de condições políticas que formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que o constituem. Não há saber neutro, pois todo saber é político. E isso não se deve ao fato de cair nas malhas do Estado sendo por ele apropriado e usado como instrumento de dominação, desvirtuando seu núcleo essencial de racionalidade. Mas porque todo e qualquer saber tem sua origem em relações de poder.

Por isso, há de se considerar a idéia de pluralismo jurídico presente na sociedade contemporânea, uma vez que para além do direito positivado há esferas sociais que também são responsáveis pela produção de direitos particulares. Por isso, o Estado não é o único ou exclusivo detentor do processo de produção de direitos, apesar de o ser formalmente, pois, entendendo “direito” no seu sentido mais amplo, a proposta pluralista admite que há uma diversidade de centros produtores.

 

Foucault é taxativo ao afirmar que não há uma essência do saber, do conhecimento, seja ele qual for, pois a suposta essência deu-se a partir de situações específicas, em dado contexto histórico e social. “Foucault, com esta afirmação dialoga diretamente com os jusnaturalistas inaugurando a idéia de um direito construído socialmente por relações de poder; por isso, não existe Direito, mas direitos. (ASENSI, 2014)

 

Neste sentido, o pensamento foucaultiano contrapõe-se a ideia tradicional que busca na origem das coisas a sua razão, e adota o ponto de vista da descontinuidade, dos descompassos, isto é, do poder. Pois, todo o saber sempre é perspectivo, ou seja, origina-se sempre em um determinado ângulo e, deliberadamente, movimenta-se com o fim de apreciar e avaliar; e este olhar sabe para o que olha, assim como sabe o lugar de onde olha.

 

Dentre tantas inferências lógicas, Foucault afirma que o conhecimento não faz parte da natureza humana e, então, não é algo que diz respeito à essência do homem; o conhecimento é algo inventado. Assim, “o conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, assim como ele não é natural, é contra-natural” (FOUCAULT, 1999, p. 17).

 

Assim, o conhecimento nada mais é do que um produto de relações de luta. Foucault procura evidenciar que existe uma história da verdade e que, portanto, “ela também é inventada, é produto de relações de poder (FOUCAULT, 1987, p. 501)”. Na teoria da argumentação jurídica a proposta de Foucault ganha força, na medida em que o argumento jurídico nem sempre está vinculado aos fatos ou ao mundo do direito. Por vezes, funciona como argumento retórico que visa única e exclusivamente a adesão do interlocutor.

Nessa linha, Asensi (2014) preconiza que o conhecimento deriva da vontade de saber, que é uma construção que resulta de confrontos, onde cada instinto deseja instituir como norma universal a sua perspectiva particular, e não de instintos básicos ou naturais. Interpretar não é apenas encontrar um significado comum e universal para determinado signo; mas, imprimir e produzir uma verdade a que se deseja submeter o outro.

 

Assim como os discursos estão permeados por relações de descontinuidade, a interpretação (dentre elas, a jurídica) também se encontra permeada por relações de poder. Segundo Foucault,” (...)  a sociedade se constitui na medida em que instaura a violência dentro de seu sistema de regras, e prossegue a dominação de forma institucionalizada (ASENSI, 2014).

 

Em sua coletânea de textos denominada “A Verdade e das Formas Jurídicas”, Foucault realiza uma análise sobre a constituição do direito, basicamente uma reconstituição de como o direito foi passando da idéia de justiça privada para a de justiça pública, e diz:

 

(...) o direito não seja diferente de uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear os atos de vingança. O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra (FOUCAULT, 1999, p. 56-57)

 

A premissa foucaultiana defende a idéia de que o direito é em essência o espaço do conflito, que se desenrola de forma institucionalizada e mediante alguns procedimentos comuns às partes em litígio. Segundo Foucault, “Entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas matá-lo segundo certas regras, certas formas” (idem, p. 57). Por isso, pode ser convencionado que o direito é a manifestação institucionalizada da guerra, do conflito, da lide; mas não se trata de uma guerra de corpo a corpo, mas, uma guerra de procedimentos, de argumentos, de fatos, um embate no campo dos direitos das partes.

Asensi (2014) enfatiza que no direito não há como determinar o vencedor a partir das duas partes, pois se visualiza o embate de duas verdades. Então, faz-se necessária uma terceira pessoa, um terceiro desinteressado, nesse caso o Estado que, através do poder Judiciário, alheio à controvérsia, servirá como mediador e, em seguida, decidirá sobre que verdade prevaleceu.

Contudo, não se trata de determinar a verdade verdadeira, mas apenas qual verdade efetivamente prevalece. Nesse âmbito, as lides passam a ser resolvidas por um terceiro, como se vê e os indivíduos não poderão fazer prevalecer as suas vontades, ou verdades, mas deverão aceitar a decisão desse poder a quem outorgam a decisão.

O poder político vem pouco a pouco substituir as partes, pois de posse dos procedimentos judiciários. A infração deixa de ser um dano cometido por um individuo contra o outro e passa a ser uma ofensa ou lesão de um individuo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano (idem, p. 66). Em outras palavras, o Estado não é somente a parte lesada, mas a que exige reparação. A lesão ao Estado é comparável à comissão de um pecado que deve receber a devida sanção, punição, penitência.

Assim, Asensi (2014) estabelece que desde o momento em que um terceiro resolver a lide entre as partes, e a partir da possibilidade de a infração lesar o Estado, ocorre uma mudança na concepção de justiça. De uma justiça privada, que não contava com um poder externo para dirimir os embates, tem-se uma justiça pública que é realizada por um terceiro alheio, por isso externo ao litígio e que detém a legitimidade para sua resolução.

Essa transição do direito privado para o direito público se dá principalmente através da apropriação pelo Estado dos procedimentos e mecanismos de resolução de conflitos. A publicização do direito acontece na medida em que sua produção se concentra nas mãos do Estado, que o faz chegar aos cidadãos em doses homeopáticas.

Mas será que a justiça chega a quem dela necessita? O Direito, devidamente positivado em seus princípios e em seu devido processo, garante acesso à justiça?Tendo em vista de que a Constituição atual garante o acesso à justiça a todos os cidadãos, mas de fato ele não ocorre, há a instituição das Defensorias Públicas, da nomeação dativa de advogados, dos efetivos centros de justiça gratuita, e poucas são as situações em que o cidadãos lesado em seus direitos, pode por si só buscar a reparação.

A instituição de um mediador que busca em nome do “lesado” as garantias dos bens da vida, alegando-se a capacidade postulatória ou técnica, limita o acesso dos cidadãos ao direito. Uma vez que ao Juiz bastam-lhe os fatos para que o mesmo possa dar os direitos e fazer justiça.

Segundo Foucault, as investigações meramente administrativas também são uma forma de exercício político, uma forma de gestão, de exercício de poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira de autenticar a verdade, de construir coisas que serão consideradas como verdadeiras e de as transmitir. É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e determinações econômico-políticas (idem, p. 78).

Neste sentido, a conclusão de um processo, ou de uma ação, que é o resultado da aplicação de todo compêndio jurídico, expressão do Direito, funciona como uma forma de dizer que verdade prevaleceu naquele litígio e diante daquelas circunstâncias, produzindo um saber-poder. É saber por que é fruto do embate de verdades; é poder porque impõe qual dentre as verdades deve prevalecer de forma coercitiva. O direito, assim, é permeado por relações de poder que buscam através do embate de verdades, uma solução comum designada por um terceiro.

O que foi visto, na ótica foucaultiana, é que a sociedade disciplinar amplia os seus mecanismos coercitivos passando a ser uma sociedade de controle; esta, por sua vez, redimensiona-se a partir de um Estado liberal, reflexo das relações de poder que se estabelecem a partir de relações de produção ditada por um projeto capitalista.

 

Essas relações de poder se estendem diretamente à produção histórica do conhecimento e o legitimam, dentre eles, o saber jurídico e todo o amparo produzido pelo Direito, legitimador desse modelo de relação e pouco comprometido com os preceitos da Justiça. (ASENSI, 2014)

 

O que se tem percebido diretamente com esses modelos de Sociedade, Estado e Direito, conforme configurado por Foucault e autores de mesma fonte, é que o ser humano, cada vez mais modelado por relações de poder que lhe são alheias ao conhecimento tanto individual, como das massas, fica cada vez mais exposto aos mecanismos de vigilância social e alguns até se submetem prazerosamente a eles.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar a sociedade sem considerar a ação do Estado é impossível; afinal, o Estado é a personificação de uma sociedade, é o que lhe dá personalidade. Contudo, nem sempre o Estado, que deveria representar o melhor interesse de seus cidadãos, age nessa direção. Muitas vezes alia-se a modelos que impõem à coletividade o interesse de alguns grupos. Essas relações são complexas, mas reafirmam a parcialidade das construções de algumas instituições, instrumentos e mecanismos, bem na contramão do que entender-se-ia como ação legítima em prol do interesse comum.

O Direito, como um instrumento que regula as relações entre os cidadãos, é longa manus do Estado; age em prol da defesa dos seus interesses, e esses, estão a serviço de um modelo neoliberal em que o Estado cada vez menos interfere e regula as relações de modo a garantir o princípio da equidade; afinal, num modelo liberal ou neoliberal, cada qual tem o que o seu próprio esforço determina.

A disciplina imposta pelo Estado, como balizadora dos comportamentos em vista de garantir a ordem social, vem gradativamente tomando as formas do controle, um controle que, antes centralizado, se descentraliza e coloca, através do desenvolvimento da tecnologia, no lugar do Estado, cada cidadão como o controlador do comportamento do outro. Assim, o Estado, afasta de si a responsabilidade do controle e impõe aos cidadãos essa tarefa.

Frente a esses dispositivos, o controle está muito mais atrelado aos fatos do que aos sujeitos, muito mais focados na defesa do direito das coisas do que na garantia de direitos da personalidade; aliás, esses não gozam, há muito tempo, de prioridade na construção dos conhecimentos que o Direito deve construir, afinal, para quem existe o Direito? O Direito foi feito pra o homem e não o homem para o direito; há nesse modelo, um claro conflito de princípio.

Diga-se ainda que esse modus operandi do Estado, poderia ser inscrito no rol das ações válidas se não houvesse um grande complicador: o Estado não mais representa o desejo e a necessidade comum, mas defende e se compromete com os interesses de uma minoria e, em defesa desse projeto, o Direito tem produzido seus saberes nessa direção. Urge que o Direito não seja subserviente a modelos sociais excludentes e que, como garantidor da Justiça, seja digno meio de alcançá-la.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ASENSI, Felipe Dutra. Direito e sociologia segundo o pensamento de Michel Foucault. Disponível em <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1142> Acesso em 18.06.2017

 

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Trinta e Quatro, 1992.

 

DANNER, Fernando e OLIVEIRA, Nythamar Fernandes. Michel Foucault e a Modernidade: a Emergência do Estado Liberal e a Instauração da Biopolítica Disponível em < http://www.pucrs.br/edipucrs/online/IIImostra/Filosofia/62758%20-%20FERNANDO%20DANNER.pdf> Acesso em 18.08.2017.

 

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 1999.

 

GUARESCHI, Pedrinho. Os construtores da informação. Petrópolis; Vozes, 2000

 

LOPES, Ana Isabel e SANTOS, Sonia. Da Sociedade Disciplinar à Sociedade de Controle. Disponível em <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20disciplinar/index.htm> Acesso em 08.09.2017.

 

MACHADO, Roberto. Ciência e Saber. A Trajetória da Arqueologia de Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1982.

 

MACHADO, Jónatas E. M.. Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra, 2002.

 

POMBO, Olga. Sociedade de Controle. Disponível em http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20disciplinar/Sociedade%20de%20controle.htm. Acesso em 07.09.2017.

 

QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2002.

 

[1] Professor graduado em Filosofia (IVF), Letras (UNEMAT) e Direito (FCARP), especialista em Psicopedagogia (UFRJ) e Direito Constitucional (AVM), mestre em Educação (UFMT)