Sobre Franz Kafka

Por Leôncio de Aguiar Vasconcellos Filho | 20/02/2025 | História

Muitos dos maiores eruditos da História tiveram vida curta. Talvez pela melancolia, expressa nas suas obras, tenham ido cedo demais. Deste destino não escaparam, por exemplo, Fernando Pessoa e Florbela Espanca. E do mesmo não se alforriou, embora fosse menos poeta e mais romancista, Franz Kafka.

Nascido em 1883 na belíssima Praga, então cidade do Império Austro-Húngaro, Franz Kafka cresceu como judeu ashkenaki. Tal identidade religiosa, étnica, e, portanto, pessoal, fez com que fosse mais adepto ao convívio de seus iguais fluentes em tcheco e alemão (Kafka, também, era esplêndido em ambas as línguas), na repetição de um padrão comportamental típico dos indivíduos portadores daquela mesma cultura, que, no intuito de se autoafirmarem, mantinham contatos restritamente idênticos, mas dentro dos respectivos círculos linguísticos. Podemos crer, numa análise mais historiográfica, e ainda que sabendo ser uma das mais marcantes características do Império Austro-Húngaro a sua enorme diversidade, que tal se revele uma forma de dificultar os constantes pogroms, por meio de um paradoxal poliglotismo, destinado a confundir seus potenciais e eventuais captores.

O acima descrito pode ser uma das pistas a entendermos o aspecto sombrio de dois de seus maiores livros, que, anteriormente ao seu precoce ocaso em 1924, não concluiu, mas que um grande amigo felizmente publicou: “A Metamorfose” e “O Processo”. É óbvio que a obra de Kafka não aí se esgota, mas esses são os principais romances reveladores de seu íntimo e assustador universo, decorrente do mundo opressor com o qual sempre coexistiu. Kafka foi obrigado a suportar o flagelo da discriminação na sua própria sociedade, com o qual ele e seus iguais tiveram de interagir. E, no fundo, os livros a que me refiro refletem dita angústia.

Em “A Metamorfose”, o pacato Gregor Samsa se vê, subitamente, transformado em um inseto. O livro é uma verdadeira metáfora sobre o estigma ao qual todos os, realmente, rejeitados socialmente (como o eram Kafka e a minoria religiosa e étnica a que pertencia) têm de carregar, com ênfase numa indesejada mudança de comportamento, a fim de evitar a obliteração total. Com narrativa forte e um suspense diabólico, reflete o que sente, em um nível bem maior de incerteza a despeito  do futuro, aquele outrora homem comum, que deve lidar com a mais repulsiva de todas as (im)possibilidades, que é a sua repentina degradação física, e, por conseguinte, moral, consistente na própria privação daquilo que o escritor franco-argelino Albert Camus chamou de “o absurdo da condição humana” (ou seja, nada mais que o que a cultura japonesa cita como “fragilidade da vida”: na situação de Gregor Samsa, pode-se dizer que, devido à mutação, é “o absurdo da condição inumana”, fazendo o leitor concluir que, como homens e mulheres que somos, não é necessária uma “condição inumana”, como a de Samsa, para levar ao destino mais iníquo todos, mormente as minorias, mas, infelizmente, atos “puramente humanos”, já que nossa natureza é, como dizia Maquiavel, cruel e maléfica).

E é sobre um Estado Totalitário que discorre a leitura de “O Processo”. O volume narra a saga de Joseph K. Nada mais é que a descrição dos sacrifícios, meandros e torturas burocráticas que a figura central tem de percorrer para se defender de uma infração de cuja tipificação, sequer, tem noção. Angustiante. Absolutamente, de prender a respiração. Como são angustiantes e de prender a respiração os dramas de Gregor Samsa, e, no péssimo sentido, das minorias que devem enfrentar processos forjados por Estados criminosos, simplesmente por serem quem são.

Kafka era um gênio. Um verdadeiro conhecedor da infame personalidade humana.