OITENTA ANOS DE NASCIMENTO DO AUTOR DE CARCARÁ

                              SÓ EU VEJO O POETA NO BANCO DA PRAÇA

                                                                                Edevaldo Leal

                                                                        

Para João do Vale, o maranhense do século – imemoriam(11.10.19 –  06.12.1996).

                                     

                                

O homem  segura  uma folha de papel e nela está escrito algo que eu não sei o que é. Passaria despercebido, mas o detalhe me chama  a atenção por que, de quando em quando, o homem   faz uma pausa repentina, olha o papel por  alguns instantes, encosta-o  próximo aos olhos, como se fizesse uma leitura forçada, e volta a caminhar. São instantes de  mistério e deslumbramento  que  fazem, do solitário caminhante, o condutor de um segredo irrevelado: que palavras, mensagem ou símbolos aquela folha de papel esconde?  Em mim vai crescendo uma  curiosidade perniciosa, esse esmagador desejo de arrancar, das mãos do desconhecido, o segredo que só a ele parece se manifestar   .  Entre mim e o homem  há apenas dois silêncios: o  que despreza intervenções externas  e o que tenta compreender   aquele estranho ritual da  alma solitária.  Posso ouvir apenas o ruído  dos silêncios que nos separam, e estamos tão próximos. E lembro de Pascal, ao falar do espanto  diante do eterno silêncio dos espaços infinitos.

                               

Enquanto caminha, os lábios do homem se movem, como  os de quem faz uma oração inaudível. Aqui e ali, inclina a cabeça para cima, o olhar em contemplação. E, de repente, faz o sinal da cruz.

                                  

O estranho , de estatura mediana, negro, grosso, aparentando ter pouco mais de sessenta anos, caminha, com passos firmes , a minha frente. Às vezes puxa do bolso traseiro da calça um pente dentado  e penteia o cabelo pixaim que forma duas entradas no alto da testa. Conto quatro passadas de pente no cabelo duro e rebelde. Uma tatuagem vermelha no braço direito  revela” um pássaro de bico volteado que nem gavião”, a cada vez que ele puxa  a manga curta da camisa. A essa altura já estamos sentados: eu, num banco; ele, em outro, na Praça Correa de Araújo, a poucos passos da Rua da Golada, onde Zé Cachangá era o tocador  de uma  só música .

                                     

Observo melhor o homem e posso ver, nos pés sujos, as marcas das muitas caminhadas. Ele levanta as pálpebras cerradas . Alheio à realidade ao redor,  resmunga palavras ásperas: parece dialogar, aborrecido, com um interlocutor indesejável, que o atrapalha. Ele está só. Leva a mão esquerda  ao peito . A outra, aponta na direção do espaço vazio, invisível: “ Sai, cai fora, só uma força de cima controla a situação”, esbraveja.

                                    

Que sentimentos nebulosos afligem esse homem?  Por que só eu o vejo, apesar de outras pessoas estarem entre nós? Chego a me perguntar se esse homem existe realmente e me belisco para ter certeza de que estou consciente do que vejo.

                                     

 Nem bem começo a pensar em uma forma de penetrar nos sentimentos que atormentam ou libertam esse homem de pés no chão, vejo-o puxar do bolso da camisa uma folha de papel em branco e uma caneta de marca popular. Seu semblante é o de quem  acaba de despertar de um sono inacabado . Ele, agora, solta um suspiro, como o de quem se liberta de uma prisão, e começa a escrever, suprema liberdade de pássaro que voa sem medo do desconhecido. O rosto do homem, então, se ilumina.

                                     

Enquanto o observo , minha curiosidade aumenta. E aumenta tanto, que vai além da prudência que me diz para continuar afastado dele . Não resisto. Receoso de perturbar-lhe um momento sagrado, dou a volta por trás. A uma discreta distância, estico o pescoço, abro bem os olhos e leio um trecho do que ele está escrevendo, letras enormes e mal traçadas: “ Mas plantar pra dividir/ Não faço mais isso, não/ Eu sou um pobre caboclo/ Ganho a vida na enxada/ O que eu colho é dividido/Com quem não ganha nada”. Me vem logo à lembrança a música Sina do Caboclo.

                                    

Não só por ser a letra ilegível, mas por temor de ser descoberto, deixo de ler o resto. Já é noite. Uma estrela miúda me olha lá de cima. E um vento muito forte arranca o papel das mãos do desconhecido. Mudo de incredulidade, acompanho a folha de papel que sobe, bailarina dançando no ar, até sumir de vista. Ao baixar os olhos, não vejo mais o homem.   No chão, ao lado do banco, um papel amassado. Junto-o e leio o que nele está escrito. É apenas  a estrofe  de três versos da letra de uma música: Pisa na fulô, pisa na fulô/ Pisa na fulô/ Não maltrata o meu amor.

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