SIMULTANEAMENTE BIZARRO E PARADOXAL

Convém não esquecer que Luca Matéria faz etnografia o tempo todo. Favorecem-no a sua vocação de andarilho e o gosto que tem pela interpretação do material recolhido.

Se ouve discursos, nem sempre aproveita o conteúdo. O mais das vezes ouve-os meticuloso, atento à técnica discursiva, à gesticulação, e ao torniquete que regula a pressão aplicada à audiência.

Se comparece a bailes, não o faz em louvor a Terpsícore, visto que há muito parou de dançar conforme a Musa, mas, como aconteceu recentemente, atraído pela riqueza etnográfica dos saraus.

− O Mestre já leu bem o convite? Veja que se anuncia um baile brega.

Derreado na poltrona, sorridente e lisonjeado com o zelo do mordomo, seu velho amigo, LM advertiu que se tratava de um "baile brega-chique" − fruto ideológico relativamente recente.

E mesmo que não fosse "chique", observou que "um "baile brega" carece de conteúdo substantivo e, por isso, não passa de um arranjo formal. Como tal, pode ser desmontado facilmente, sem oferecer perigo algum, exceto aos consumidores desavisados.

Argumentou ainda o Mestre que "brega" é uma noção de índole atributiva, difusa, que oscila entre "deselegância" e "meretrício", conforme atesta o dicionário. Costuma qualificar alguns substantivos dóceis ao seu poder de sedução. "Música brega", "baile brega", "cantor brega", "estilo brega", etc., são exemplos da vocação atributiva da palavra.

O dicionário fracassa na tentativa de substantivá-la. Está lá:

"Brega (como substantivo), pessoa brega"; (como adjetivo), "deselegante, cafona."

Ora, querer definir o termo "brega" como substantivo, recorrendo ao adjetivo "brega" é tautologia pura, ao passo que apresentá-lo como adjetivo, calcado em "deselegante" e "cafona" é agravar a difusão conceitual.

É evidente que um "baile brega" não é igual a um "baile deselegante", ou "cafona".

Aliás, não é o dicionário que fracassa. O dicionário faz o que pode. O problema todo está em que ainda não se conseguiu definir a base conceitual substantiva a nível de intuição.

Em outras palavras, falta isolar o sentimento, a emoção, a pulsão, e nomear o que for com o neologismo adequado. Quem sabe breguice, breguismo, ou mesmo bregalgia.

A idéia do neologismo é útil, oportuna, factível, sumária e de aplicação imediata. Já a identificação de um estado d?alma específico que corresponda a "bregalgia", digamos assim, parece inexeqüível.

Pelo menos é esta a opinião de Mestre Luca.

Ao seu entender, "bregalgia" não é um sintoma direto como é, por exemplo, a palidez em relação ao medo ou o rubor em relação à raiva.

Para alcançar a sutileza do fenômeno, o Mestre recomenda reler Roland Barthes, especialmente as passagens que discorrem sobre a natureza dos álibis: "não estou onde você pensa que estou, mas estou onde você pensa que não estou."

A "bregalgia" não está onde perece estar. A "bregalgia" parece estar na superfície plana, indiferenciada, convencional e inocente de uma música, uma letra, um ritmo, uma cadência monocórdia.

Tudo isso junto, no entanto, carece de conteúdo, e funciona como estímulo para as verdadeiras emoções, emoções comuns, homiziadas na história de cada um, ou na nostalgia do regaço materno, onde todos buscam mitigar as dores e os infortúnios da vida.

Desse modo, o "baile brega" acaba sendo um instrumento de anamnese coletiva e o álibi da fragilidade humana .


Entende-se, portanto, por que "Eu não sou cachorro não, para ser tão humilhado... " resgata igualmente maridos desprezados e namorados distraídos.

Entende-se, outrossim, o cuidado profissional com que se cultiva a "cultura brega".

− Mestre!... Mestre!... Acorde, já passa da meia-noite. O Mestre ainda vai ao baile?

− Claro que vou. O baile não é apenas "brega", é "brega-chique". Não poderia perder a rara chance de testemunhar a materialização de um conceito simultaneamente bizarro e paradoxal.