A ordem jurídica estabelecida no Estado brasileiro a partir da Constituição de 1988 busca a realização do Estado Democrático de Direito, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” 1.

Nesse sentido, faz-se necessária a criação de mecanismos que possibilitem maior acesso aos órgãos judiciários ou mesmo administrativos a fim de que este desígnio constitucional se efetive.

Partindo dessa perspectiva surge a proposta de simplificação dos procedimentos de jurisdição voluntária por meio da inexibilidade de advogado legalmente habilitado para iniciá-los e impulsioná-los, possibilitando o acesso a um maior número de usuários dos serviços públicos: os cidadãos. A exemplo do que ocorre nos Juizados Especiais, na Justiça do Trabalho e nos habeas corpus.

Ou, ainda, da consideração da atividade do magistrado como agente público administrativo a quem a lei confere a prerrogativa de analisar os procedimentos em questão. Ou mesmo da consideração do Ministério Público como substituto processual nestes casos, tudo mediante autorização legal.

Filiando-se à corrente que entende a jurisdição voluntária como atividade administrativa, é possível dizer, tal qual  Nelson Nery 2:

 “Sem discutir a natureza jurídica da denominada jurisdição voluntária, tem-se entendido, conforme a doutrina dominante, ser ela atividade judiciária de administração pública de interesses privados. Há, portanto, interesses privados que, em virtude de opção legislativa, comportam fiscalização pelo poder público, tendo em vista a relevância que apresentam para a sociedade” e ainda sobre os princípios fundamentais da jurisdição voluntária que “são diferentes dos que inspiram a jurisdição contenciosa, tendo em vista a própria natureza peculiar da administração pública de interesses privados. A relação jurídica que se forma entre os interessados é unilateral, pois aqui não se trata de decidir litígio, mas sim de dar-lhes assistência protetiva. O juiz integra o ato ou negócio jurídico privado, homologando-o, autorizando-o, aprovando-o. Esta é uma das razões que impedem seja ele, a um só tempo partícipe integrado do negócio jurídico privado e fiscal da lei”.

Nesses procedimentos, além dos aspectos até aqui analisados, não há que se falar em requerente e requerido, mas apenas em interessados. Não havendo também o fenômeno da revelia e, tampouco, prazos peremptórios, bem como a permissão para a atuação de ofício do juiz.

Por outro lado, há participação necessária do Ministério Público como custus legis, e assim também participação voluntária na qualidade de substituto processual, já que lhe é dado iniciar os procedimentos de jurisdição voluntária, segundo os arts. 1.104 e 1.105 do Código de Processo Civil:

“Art. 1.104. O procedimento terá início por provocação do interessado ou do Ministério Público, cabendo-lhe formular o pedido em requerimento dirigido ao juiz, devidamente instruído com os documentos necessários e com a indicação da providência judicial”.

“Art. 1.105. Serão citados, sob pena de nulidade, todos os interessados, bem como o Ministério Público”.

De se ressaltar também a necessidade de chamada a Fazenda Pública quando seus interesses estiverem envolvidos, nesse sentido é o art. 1.108 do CPC:

“Art. 1.108. A Fazenda Pública será sempre ouvida nos casos em que tiver interesse”.

A sentença proferida nos procedimentos de jurisdição voluntária tem caráter constitutivo, positivo ou negativo. Ou seja, dada uma relação fática e após a análise pelo órgão julgador tem-se a constituição ou desconstituição de um vínculo jurídico. Pode ainda ter caráter declaratório, mas nunca condenatório. Ainda quanto à sentença, mais uma vez se observam características que aproximam a atividade do juiz da atividade administrativa, haja vista o preceito do art. 1.109 do Código de Processo Civil, in verbis:

“Art. 1.109. O juiz decidirá o pedido no prazo de 10 (dez) dias; não é, porém, obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar  mais conveniente e oportuna”.

Perceba-se aí a utilização de termos oportunidade e conveniência, inegavelmente ligados à atividade administrativa do Estado. Em se considerando a atividade do juiz nos procedimentos de jurisdição voluntária dotados de natureza administrativa, pode-se mesmo afirmar que o ato daí decorrente, embora seja formalmente uma sentença reveste-se de característica de ato administrativo discricionário.

Há também a autorização para que o juiz decida por eqüidade, é o que diz Nelson Nery 3  analisando o dispositivo legal:

“Somente nos casos expressos em lei o juiz pode decidir por eqüidade (CPC 127). Em todos os procedimentos de jurisdição voluntária, há autorização legal para o juiz assim proceder (CPC 1109). A lei processual concede ao juiz a oportunidade de aplicação de eqüidade ao arrepio da legalidade estrita, podendo decidir escorado na conveniência e oportunidade, critérios próprios do poder discricionário, portanto inquisitorial, bem como de acordo com o bem comum (Nery, RP 46/14)”.

O art. 1.107 do Código de Processo Civil reforça essa afirmação:

“Art. 1.107. Os interessados podem produzir as provas destinadas a demonstrar suas alegações; mas ao juiz é lícito investigar livremente os fatos e ordenar de ofício a realização de qualquer prova”

A esse respeito Nelson Nery 4 anota:

“Na jurisdição voluntária não existem prazos peremptórios nem revelia, devendo o juiz proceder à instrução probatória de ofício, mesmo contra a vontade dos interessados, já que incide em plenitude o princípio da investigação de ofício em contraposição ao princípio dispositivo.

(...)

Há diferença entre a inquisitoriedade, característica da jurisdição voluntária, e o poder dado ao juiz pelo CPC 130, de determinar, de ofício, a realização de prova e indeferir as inúteis. O CPC 130 deve ser entendido em consonância com o CPC 125, 330 e 1107. O poder dado ao juiz na jurisdição contenciosa, de determinar ex officio, realização de prova, encontra limitação no princípio dispositivo e no da igualdade das partes (Arruda Alvim, CPCC, V, 214 e ss.). Na jurisdição voluntária incide o princípio oficial em toda sua extensão. O juiz, independentemente do requerimento dos interessados, deve determinar a realização de prova ex officio. Aqui não há ônus da prova, há faculdade de provar”.

Observe-se que o próprio texto legal dá a indicação de serem os procedimentos de jurisdição voluntária muito mais, senão totalmente, de natureza administrativa do que judicial. O que não fere a tripartição dos poderes, já que ao Poder Judiciário é dado atuar como agente público administrativo.

Considerados todos esses aspectos, a questão que se coloca é a da exigibilidade de participação do advogado nos procedimentos de jurisdição voluntária.

É bem verdade que a atividade postulatória é privativa de advogado legalmente habilitado. Mas é também verdade que já existem procedimentos em que sua participação é dispensável.

O CPC define em seu artigo 7º a capacidade processual:

“Art. 7º. Toda pessoa que se acha no exercício dos seus direitos tem capacidade para estar em juízo”

Já no artigo 36 está a definição da capacidade postulatória, quase sempre privativa de advogado:

“Art. 36. A parte será representada em juízo por advogado legalmente habilitado. Ser-lhe-á lícito, no entanto, postular em causa própria, quando tiver habilitação legal ou, não a tendo, no caso de falta de advogado no lugar ou recusa ou impedimento dos que houver”.

Nelson Nery anota a esse respeito 5:

“A capacidade processual não se confunde com a capacidade postulatória, que é a aptidão que se tem para procurar em juízo. O profissional regularmente inscrito no quadro da OAB tem capacidade postulatória (CPC 36; EOAB 8º, 1ºss). Também o membro do MP tem capacidade postulatória tanto no processo penal quanto no processo civil , para ajuizar ação penal e ACP (CF 129 III; CPC 81; LACP 5º; CDC 82 I; ECA 210 I). No juizado de pequenas causas há dispensa da capacidade postulatória para o ajuizamento da pretensão (LPC 9º caput), sendo exigível apenas para subscrever eventual recurso (LPC 41 § 2º). Na justiça do trabalho o empregado pode reclamar pessoalmente, sem necessidade de advogado (CLT 791 caput). Também não se exige capacidade postulatória para a impetração de HC (CPP 654 caput; EOAB 1º § 1º). Em MS, as informações devem ser prestadas pessoalmente pela autoridade coatora, que é a parte passiva legítima, não se admitindo sejam subscritas somente por procurador (RF 302/164; Meireles, MS, 42)”

Acompanhando a mens legis das exceções legais para a exclusividade da capacidade postulatória, tem-se que, não havendo litígio ou – em outras palavras – havendo a possibilidade de composição consensual, voluntária, é permitido às partes ingressarem em juízo sem a participação necessária do advogado. Assim também nos casos de reconhecida hipossuficiência ou de perigo às liberdades, como se percebe no acesso à justiça do trabalho e nos casos de impetração de habeas corpus.

Conforme definido anteriormente, nos procedimentos de jurisdição voluntária não há que se falar em conflitos de interesses, mas apenas em tutela estatal a interesses privados considerados por lei merecedores de fiscalização pelo agente público; as ações são sempre dotadas de natureza consensual.

É público que o acesso aos profissionais do direito, ainda que garantido por lei, é dispendioso, tornando-se, desse modo inacessível a uma parcela considerável da população. Ou, de outra forma, acarretando acúmulo de trabalho às Defensorias Públicas e demais serviços de Assistência Judicial gratuita e se constituindo em verdadeiro obstáculo ao acesso ao Poder Judiciário.

Perceba-se que esta dificuldade pode ser entendida como contrária aos princípios constitucionais do livre acesso, desde que atendidas as exigências legais, e mesmo o da democracia. A existência do Estado Democrático de Direito requer sejam minimizados os entraves impostos aos cidadãos para a realização dos seus direitos.

Outrossim, segundo Gonçalves 6, "a instrumentalidade técnica do processo está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos". Nisto incluídas as formas de acesso ao Poder Judiciário.

Não se defende aqui que a presença do advogado seja dispensável ou obstáculo a este acesso como regra. Mas que há procedimentos – e note-se que nem existe a presença do termo processo em sentido próprio – em que, dada a simplicidade do direito argüido ou da natureza do próprio procedimento, ou ainda as características das partes envolvidas, exigir a participação deste profissional como condição sine qua non torna a uma parcela importante dos usuários difícil o acesso à justiça.

Por outro lado, não se propõe a exclusão da atuação dos advogados nos procedimentos de jurisdição voluntária. A exemplo do que ocorre nas demais exceções legais, este profissional pode subscrever o pedido e acompanhar o desenvolvimento da ação se as partes assim desejarem; apenas a obrigatoriedade dessa participação é que deixa de existir.

Apenas, visando obedecer à ordem constitucional vigente e aos valores nela inseridos, bem como à instrumentalidade do processo e sua natureza de instrumento para a efetivação da tutela estatal e a exemplo de outras hipóteses permissivas, sugere-se que a participação do advogado legalmente habilitado seja voluntária, sendo permitido às partes ingressar em juízo em nome próprio.

Por todo o exposto é que se propõe a inexigibilidade do advogado para a propositura dos procedimentos de jurisdição voluntária. Mas, para isto, é preciso que o Poder Judiciário esteja pronto a receber essas demandas. Seria necessária, portanto, a modificação de procedimentos adotados diuturnamente para alcançar os propósitos aqui defendidos.

A primeira modificação pertinente para a implementação do que se propõe é a alteração do texto da lei processual civil autorizando o ingresso dos procedimentos de jurisdição voluntária sem a subscrição por profissional habilitado.

Nesse caso, o art. 36 do Código de Processo Civil poderia incluir nas exceções à exclusividade da capacidade postulatória tais procedimentos, recebendo a seguinte redação:

“Art. 36. A parte será representada em juízo por advogado legalmente habilitado. Ser-lhe-á lícito, no entanto, postular em causa própria, quando tiver habilitação legal ou, não a tendo, no caso de falta de advogado no lugar ou recusa ou impedimento dos que houver, e, ainda, nos procedimentos de jurisdição voluntária” (o grifo é meu, com a alteração sugerida).

Ainda nesse sentido, tal autorização poderia ser expressa no art. 1.104 do mesmo diploma legal, que passaria  a ter a ser expresso dessa maneira:

“Art. 1.104. O procedimento terá início por provocação do interessado, que poderá postular em juízo sem representação de profissional legalmente habilitado, ou do Ministério Público, cabendo-lhes formular pedido em requerimento dirigido ao juiz, devidamente instruído com os documentos necessários e com a indicação da providência judicial”. (o grifo é meu, com a alteração sugerida).

Observe-se que a alteração legal serviria para consolidar o meio de acesso aqui defendido, mas não é condição sine qua non para tanto.

Isto porque, da leitura do texto legal, quando diz que “o procedimento terá início por provocação do interessado (...) cabendo-lhes formular pedido em requerimento dirigido ao juiz” (o grifo é meu), pode-se depreender daí que não existe o emprego do termo petição e tem-se margem para a interpretação segundo a qual o próprio interessado pode se dirigir à autoridade judiciária.

Assim, apenas uma nova interpretação da lei seria suficiente para garantir o ingresso, nos procedimentos de jurisdição voluntária, pelos interessados agindo em nome próprio. Basta, para tanto, que os órgãos judiciários reconheçam na tutela prestada nestes procedimentos o caráter administrativo para que a participação do advogado deixe de ser obrigatória.

Outro caminho que se apresenta e que está em conformidade com a lei é o acesso por intermédio do Ministério Público. De se salientar o relevante papel que este órgão tem desempenhado na defesa dos interesses coletivos. Aqui, mais uma vez, abre-se na via legal a possibilidade de o Ministério Público subscrever o pedido, prescindindo da participação de advogado. Nesse sentido é o art. 1.104 do Código de Processo Civil:

“Art. 1.104. O procedimento terá início por provocação do interessado ou do Ministério Público, cabendo-lhes formular pedido em requerimento dirigido ao juiz, devidamente instruído com os documentos necessários e com a indicação da providência judicial”.  (o grifo é meu)

Nelson Nery 7 indica ainda a possibilidade de início do procedimento por iniciativa do próprio juiz, de ofício:

“Aqui não há lugar para aplicação ampla do princípio da demanda, nem para o princípio dispositivo, podendo ser iniciado o procedimento a requerimento da parte, do MP ou mesmo ex officio, ainda que não haja esta previsão em sentido expresso no CPC 1103 (Nery, RP 46/11). São exemplos disso o CPC 1113, 1129, 1142, 1160, 1171, 1190 (Mendonça Lima, Coment RT, 35; Pontes de Miranda, Coment (1973), XVI, p. 18)”.

Disto decorre que o requerimento das partes dirigido ao juiz seja suficiente para provocar sua atuação ex officio no sentido de inciar e impulsionar os procedimentos de jurisdição voluntária. Não se trata de petição, mas de requerimento ou documento, peça informativa, suficiente para dar início ao impulso oficial pelo magistrado.

Excetuando-se a hipótese de ingresso via Ministério Público, seja porque a lei ou sua inteligência admita o impulso inicial pela parte, seja admitindo-se uma sua capacidade postulatória, seja considerando este requerimento apenas como condição para provocar a atuação de ofício do juízo, é mister que não sendo possível por qualquer razão aos interessados formular o pedido, ou reduzi-lo a termo, existam serventuários da justiça aptos a fazer as devidas reduções.

Em outras palavras, a exemplo do que ocorre nos Juizados Especiais e na Justiça do Trabalho, faz-se necessária a disponibilização de servidores da Justiça que formalizem os pedidos trazidos pelas partes para levar à apreciação judicial.

Desta maneira, os procedimentos de jurisdição voluntária se iniciariam com requerimento formulado pelas próprias partes por escrito ou oralmente diante de serventuário qualificado para a reduzir a termo as alegações e os pedidos. Ou mediante petição assinada por profissional legalmente habilitado para tanto. Ou ainda por iniciativa do Ministério Público.

Note-se que a participação do advogado não está excluída, mas apenas deixa de ser necessária para iniciar e impulsionar o procedimento.

Afora o modo de ingresso, os demais atos continuariam sendo praticados sem alteração de qualquer espécie ou natureza.

Admitir que estes procedimentos sejam dotados de caráter administrativo possibilita a atuação de ofício do juiz, mediante mero requerimento da parte. Ou ainda, viabiliza aos interessados iniciarem e impulsionarem tais feitos. Ou mesmo como uma terceira via, permite que o Ministério Público seja acionado como substituto processual, hipótese permitida por lei.

De toda sorte, qualquer dessas possibilidades permite que o acesso se dê mesmo quando as partes não possam ou não queiram se utilizar dos serviços de advogados legalmente habilitados. Não que a atuação desses profissionais não seja relevante. Apenas se reconhece que a exigência de sua atuação inviabiliza a uma parcela considerável da população o acesso à prestação do serviço público. Em sendo, portanto, prescindível sua participação é forçoso admitir esta circunstância em benefício das partes envolvidas ou, em última análise, da garantia dos princípios constitucionais.

REFERÊNCIAS 

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.

 NERY JÚNIOR, Nelson; Rosa Maria Andrade Nery. Código de Processo Civil e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994.

Constituição Federal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 23 out. 2002.


1 Constituição Federal, art. 5º, XXXV.

2 NERY JÚNIOR, Nelson et Rosa Maria Andrade Nery. Código de Processo Civil e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor, p. 908.

3 NERY JÚNIOR, Nelson et Rosa Maria Andrade Nery. Ob. cit,p. 911.

4 idem, p. 910

5 NERY JÚNIOR, Nelson et Rosa Maria Andrade Nery. Ob. Cit., p. 227/228

6 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Ob. cit., p. 171.

7 NERY JÚNIOR, Nelson et Rosa Maria Andrade Nery. Ob. Cit., p. 908