SHAMAN
"O Senhor é rico em misericórdia, não está sempre acusando nem
guarda rancor para sempre; como um pai sente compaixão pelos filhos e
filhas porque Ele conhece nossa natureza e se lembra de que somos pó;
a misericórdia do Senhor é desde sempre para sempre" *versículos 8-17)
Agora que tudo induz a uma reflexão profunda e absoluta sobre a
condição humana nessa terra, nós nos voltamos para o óbvio.
Como aquela canção de Caetano, a clareza dos simples de coração
nos assalta a razão científica.
Quando ao redor, o que nos cerca, por todos os lados, o concreto
armado. Nossos pés ardem no asfalto quente. Mas ainda podemos caminhar
olhando o azul de um céu, invisivelmente profanado.
Até quando é a pergunta que não quer calar. Ecoa em cada manhã,
com o primeiro raio da sol. Reverbera, no fim da tarde, com o ecoar dos
pequenos pássaros urbanos. Suspira, na madrugada, com o farfalhar das
folhas de alguns quintais de terra e poucas praças com grama.
A cada dia, mais cinzento e negro ficam nossos arredores. Muito do que
foi já não existe. Longe se está do que poderia ter sido. Autômatos, como que
sedados, fingem que nada vêem, enquanto entram e saem de bancos e
magazines.
Entretanto, ao longe se escutam rumores da tormenta; já que em
nossas ruas, tudo e todos foram silenciados. Estéril e impermeável é o chão
do meu lar.
Pobre podre rio corta o meu caminho; todos dias, quando vou ao
trabalho. Vê-se nódoas de um sangue verde, que logo será vermelho.
Já é rubra a noite. E dizem que espíritos enevoados se refletem nas
novas luzes de sódio da CPFL. São Espectros sem morada. Agonizam nas
calçadas, lembrando dos bosques altos dessa terra de antigas madrugadas
frias, que não existem mais.
Os dias seguem rumos transversos, onde as estações se perdem. As
semanas, nas horas altas, refletem a fervura que emana dos cascalhos. O
calor queima nossos cabelos. O sol nunca esteve tão presente. Arde em
nossas noites. Queima em nossos quartos.
A guerra pelo futuro, se inspira na paz de um passado mais abundante.
Quantos mais em seu seio, Terra Mãe ? sete, oito, dez bilhões de
bocas...Quando se reconhece que 5 bilhões dos 6 bilhões do mundo tem
apenas 18% do Produto Bruto Global.
Nesse mudo de contrates e preciso descobrir a ternura vital de
Leonardo Boff. A carícia essencial. O sentido mais essencial do afago. A
cordialidade fundamental.
Nas ruas todos estão graves. Semblantes lógicos, imersos em quebra
cabeças cotidianos. Sonhos monetários. Celulares antenados. Ondas
eletromagnéticas não ionizantes por toda a cidade.
O luxo do lixo é acumulado nas ruas. Resíduos sólidos por todas as
calçadas. Nossos restos mortais em aterros sanitários urbanos.
Um pastor evangélico, numa igreja sem isolamento acústico, grita ao
microfone versículos bíblicos, evocando a piedade do Senhor e a natureza
humana de pó de estrelas. Enquanto em Goiânia um cadáver radioativo,
insepulto em seu caixão de chumbo, insiste em permanecer longe dos mortos.
E o Espírito de Deus graça sobre o abismo dos homens.