Lá está ele dormindo na nossa cama com a maior intimidade, como um filhinho que de vez em quando adormece na cama dos pais. E é assim  que ele se sente mesmo, como um filhinho nosso. E tenho certeza de que se eu pudesse ler os seus pensamentos, poderia mesmo confirmar que essa é    uma grande verdade pra ele, que nesses vinte e dois anos de convivência aprendeu a nos amar como nós o amamos também e a depender completamente de nós. É um amigo sincero, que sente a nossa falta quando demoramos a voltar pra casa e enquanto não chegamos ele não pára de andar de um lado pra outro, cheio de ansiedade, principalmente em relação ao seu dono, a quem se apegou como se realmente fosse o pai dele.

Agora a sua idade equivale, em idade humana, a mais de cem anos. Magrinho, fraco e com o pelinho ralo e desbotado, com seus olhinhos vesgos, antes de um lindo azul brilhante e agora  embotados pelo tempo e pela catarata que o impede de enxergar bem, costuma perambular a esmo pela casa com um andarzinho banzeiro, trambecando das perninhas magras, com um olhar perdido como se não estivesse reconhecendo os lugares onde sempre viveu. Às vezes põe-se a miar alto e grosso até mesmo durante a noite, como se estivesse a procura de alguma coisa que ninguém pode saber o que é, e talvez nem ele mesmo saiba o quê. Então ele vai até o seu pratinho no chão, come um pouco, depois procura um dos seus lugares preferidos e volta a adormecer. E sonha. Os movimentos repentinos de suas frágeis patinhas denotam que sua mente está revivendo, quem sabe, momentos de seu passado distante, quando elas realmente faziam jus a reconhecida agilidade dos gatos, quando pulavam janelas e muros, subiam correndo as escadarias do prédio e foram capazes de incontáveis peripécias e fugas espetaculares, se escondendo em apartamentos vizinhos ou desaparecendo sobre o teto da garagem do prédio numa noite de chuva. 

Pertence a raça siamesa, e no vigor da sua juventude as cores marrons claro e escuro da sua pelagem eram de fazer inveja a qualquer outro bichano que aparecesse nos corredores do edifício Simon Bolívar, onde ele veio residir no apartamento 304, precisamente no dia doze de outubro de 1986, com dois meses de idade,  oferecido como presente no Dia da Criança à nossa filha Tatiana. 

A sua história é bastante longa e recheada de episódios pitorescos durante esses longos anos, que até dariam  um livro. Tem de tudo, começando pelo dia em que já bastante forte e bom de briga ele atracou-se com outro bichano do condomínio e o seu “pai”, que naquele tempo ainda não era  assim considerado, e que também  não ia nem um pouco com o focinho dele, tentando apartar a briga  levou tremendas mordidas no braço esquerdo e na mão. A raiva foi tamanha que ele tentou, embora inutilmente, dar-lhe uma boa surra. Foi um verdadeiro pandemônio na cozinha de manhã cedo, com gente chorando e tudo, implorando pra que ele não batesse no gato. Deu barraco mesmo. Mas o bichinho era tão danado que ao ver as coisas ficarem pretas pro seu lado, lançou mão dos recursos que a natureza lhe conferiu e  agindo rápido como um gato que se preza se escondeu embaixo da geladeira, que empurrada pra lá e empurrada pra cá na tentativa de puxa-lo debaixo dela pelo rabo, veio parar no meio da cozinha, mas ninguém conseguiu tira-lo de lá. E graças a habilidade do resto da família o dono foi acalmado, levado pra sala, onde recebeu os cuidados necessários.  E pelo resto do dia pouco se viu mais o felino, que ressabiado tratou de se esconder muito bem.

E agora, quem vai poder explicar o porque da transformação que se seguiu? Não há quem saiba. Daí por diante, apesar dos pesares, os dois, o dono e o gato,  se tornaram amigos, ou melhor, até pareciam pai e filho. De tal forma que quilos e mais quilos de sardinha fresca passaram  a entulhar o congelador da geladeira e logo depois, caixas e mais caixas de latinhas de Wiskas de sabores variados ao gosto do freguês passaram a ser empilhadas nos armários e soleiras  das  janelas  da área de serviço e o gato, gordo e luzidio até passou a ter ficha completa com endereço fixo, número de telefone e tudo em clínica veterinária da zona sul do Rio. Tudo pago pelo dono. E passou também a ser elogiado por sua valentia e macheza, apesar de seu proprietário, talvez até inconscientemente por vingança, tenha  mandado castra-lo, alegando motivos de conveniência. No entanto, desconfio que até hoje o pobre animalzinho tem essa mágoa atravessada na goela, mas conformou-se: fazer o quê? O que foi feito, feito foi.... Entretanto ainda andou circulando pelos corredores do prédio um boato de que um siamêsinho bastardo que nasceu na garagem e que a mãe abandonou, só poderia ser filho dele, já que por ali não havia outro gato daquela raça a não ser o do apartamento 304, afirmava categoricamente um porteiro que encontrou o recém nascido. Nesse caso, se o porteiro tiver razão, o dito cujo gato era tão macho mesmo que ainda foi pai, mesmo depois de castrado.

Não tinha medo de estranhos e nunca se escondeu embaixo de cama com medo de foguetão. Tirava de letra a gritaria e os estouros dos fogos na rua durante os jogos da Copa do Mundo, olhando para a janela como se estivesse entendendo alguma coisa. Entendendo ou não do assunto, o fato é que sempre assistiu na sala, no meio da galera animada, os jogos de cinco Copas, recorde batido por muito poucos espécimes da família dos felídeos. E também nas noites de 31 de dezembro, enquanto à meia noite os outros gatos se enfiavam dentro dos armários, apavorados com os estouros das bombas, ele permanecia tranquilo, apenas olhando para a janela da rua, como sempre aconteceu durante as vinte e duas noites de ano novo que viveu e até mesmo comemorou, saboreando suculentos pedaços de peru ou chester que lhe eram oferecidos.

Agora ele não viverá mais por muito tempo entre nós. E não seria justo que depois de tantos anos enchendo de alegria a nossa casa, mesmo tendo sido responsável por quebra de abajur, relógios e ventiladores, por ter derrubado árvore de natal e se embrenhado entre as lâmpadas acesas, quase causado um curto circuito, tendo ficado dependurado no secador de roupas quando tentava fugir, mesmo tendo a audácia de saltar pela janela e caído em cima da cabeça do coronel, nosso vizinho que estava dormindo no sofá da sala e acordou apavorado, por tudo isso e muito mais, não seria justo ele não receber uma homenagem das pessoas a quem ele tanto trouxe momentos de alegria.

Depois que ele partir, com certeza a casa nunca mais será a mesma. Nela estará sempre faltando o velho gatinho que quase só tinha o coro e os ossos, mas era tão danado que sempre  tentava subir nos móveis e às vezes escorregava, por falta de força nas perninhas trôpegas.  Serão muitas as lembranças e a saudade que ele vai deixar em nossos corações, quando de sua passagem por este mundo. Por isso, nada de homenagens póstumas. Esta crônica está sendo escrita para ele e vai ser lida diante dele, que é muitíssimo sensível para entender a nossa linguagem, quando lhe falamos. Nós sabemos que ele compreende o que estamos dizendo. Não importa o que os outros pensem de nós, o que digam e o que falem...Ele merece esta homenagem. 

 

Juna – 22/10/2007

Dois meses depois... Fuuuui!

Sua última noite de reveillon ele passou  deitadinho na nossa cama, como sempre estava vivendo. Sem mais nenhum entusiasmo, de vez em quando levantava a cabecinha e olhava a esmo para a janela da rua, de onde vinha o som dos estouros dos fogos, que ele ouviu pela última vez. Em seguida, mergulhou em seu profundo sono.

Era o quinto dia do ano de 2008 e ele quase não conseguia mais se alimentar nem beber água. A fraqueza o dominava e o seu estado nos causava muita tristeza. A veterinária fora realista diante do quadro de seu paciente que, devido a idade muito avançada, por ele nada mais poderia ser feito. 

Decidimos então autorizar a médica a sacrificá-lo, já que anestesiado ele deixaria a vida sem nenhum sofrimento. Com muito pesar levei-o à clínica em meus braços, enroladinho numa toalha macia, a fim de que tudo terminasse logo. Mas ao vê-lo estirar um bracinho pra fora da toalha e passar a patinha no meu queixo, olhando-me com aqueles olhinhos embotados e tristes, como se estivesse me pedindo para não fazer isso... ah, Deus! Eu não tive coragem de entrega-lo ao sacrifício. Trouxe-o de volta para a sua casa que ele tanto amava e onde sempre viveu, para que dela ele partisse em paz, sabe-se lá para onde na eternidade, ou mesmo para lugar nenhum.

Ele sempre foi surpreendente, e não deixou de ser diferente ao chegar em casa naquela tarde, pois para espanto de todos, comeu fígado cru picadinho e bebeu água durante mais dois dias e dormiu bastante!  A partir daí a sua longa vida entrou em contagem regressiva, com as forças diminuindo a cada hora como a luz de uma vela, até o fim, quando envolto em sua toalhinha felpuda e colocado sobre o sofá da sala, às vinte horas e quinze minutos do dia 08 de janeiro, confortado pelo carinho da família à sua volta, enquanto eu tocava a Ave Maria de Gounot ao piano, enfim o seu forte coraçãozinho de vinte e dois anos parou. Sem fazer nenhum gesto ele partiu para sempre, deixando entre nós um grande vazio e a história de um siamêsinho tão querido, que por nós será sempre lembrado com imensa saudade.

 Júnia – 19 de janeiro/2008