'Seu quinzinho' e a cachaça

Baseado em fatos reais


Seu nome era Joaquim, mas era conhecido em toda região por 'seu quinzinho'. Homem já na casa dos cinquenta anos, baixinho e muito magro. Bom trabalhador e pai de família.
Era simpático, agradável de prosa e gostava de passar horas junto com seus compadres conversando sobre o tempo, política, vida no campo e outras coisas triviais que se costuma falar quando amigos se encontram.
Morava numa fazenda no interior, onde era responsável pelo retiro do leite. Todos os dias tinha que acordar muito antes do sol nascer para preparar seu trabalho. Exceto aos domingos.
Mas 'seu quinzinho' tinha um pequeno probleminha, algo quase insignificante, mas que poderia manchar um pouco sua reputação: era doido por uma boa cachaça. Não era dependente, apreciava um gole antes das refeições e vivia se cuidando para não ultrapassar esses limites.
Mas, quando acabava sua tarefa no sábado à tarde, ia logo para a cidade e lá sim, tirava todo o atraso, bebia toda cachaça que não ousava tomar em casa, ficava no bar até altas horas e, quando não havia mais ninguém para acompanhá-lo, ainda pedia mais uma, era a saideira.
No domingo, passava o dia todo dormindo e quando acordava era novamente o agradável e tranquilo 'seu quinzinho' que todos conheciam.
Dona Conceição, sua esposa, depois de muitas brigas e discussões, havia desistido de fazer com que parasse com aquele hábito. Afinal de contas, ele sempre voltava sem dar trabalho e ela passou a compreender que ele precisava daqueles momentos, era como se fosse sua válvula de escape, uma forma de fugir da dura realidade do trabalho pesado.
Mas aconteceu um fato muito curioso que até os dias de hoje ainda é lembrado pelos moradores da fazenda e que arranca boas risadas quando é contado.
Certa feita, depois de mais um dia de trabalho no sábado, 'seu quinzinho' voltou para casa, tomou banho, se trocou e avisou que estava indo para a cidade. Dona Conceição apenas resmungou um 'vai com Deus' e voltou a cuidar de suas coisas.
A cidade ficava cerca de dez quilômetros de distância, mas ele ia caminhando e garantia não ser esforço nenhum. Gostava da caminhada e sentia-se bem andando sozinho entre o corredor de árvores que circundava a estrada.
Mas não contava para ninguém que já havia perdido duas bicicletas e um cavalo nessas suas idas para a cidade. De tão bêbado que ficara ao final de uma noite, chegou a trocar seu cavalo por uma fotografia autografada do Pelé, do qual era um grande fã. Quanto às bicicletas, ele sequer tinha idéia de onde tinham ido parar.
Por essas e outras, 'seu quinzinho' preferia a caminhada, a volta era mais segura e não dava prejuízos.
Nesse dia em questão, chegou no seu bar preferido, o qual frequentava há décadas e tinha até um lugar especial reservado só para ele.
Ali era capaz de passar muitas horas, jogando conversa fora, falando besteiras e se divertindo. Apesar de estar encharcado no álcool, não era o tipo de freguês chato que fica arrumando confusão, na verdade, quanto mais bêbado, mais engraçado era. As pessoas gostavam dele e das muitas histórias que ele inventava.
Ao final daquela noite, como acontecia todo sábado, ele estava completamente fora da realidade quando pediu para que a conta fosse fechada. Em seguida, com muita
dificuldade, saiu do bar trocando as pernas.
Firmou a vista, marcou o rumo de casa usando seu senso de orientação embaralhado e começou sua caminhada de volta. Levaria o dobro do tempo que gastou na vinda. Quando chegasse em casa, estaria praticamente livre da bebedeira, tomaria um banho e dormiria feliz e tranquilo.
Mas essa noite sua rotina seria alterada por um acontecimento inusitado:
Em seus passos desconexos, a perna direita insistia em não obedecer o seu comando e a esquerda queria ter vida própria, além da sensação de que o mundo era uma grande bola que girava sem parar, 'seu quinzinho' ia vencendo a estrada que o levava de volta para o aconchego do seu lar.
A noite de lua cheia facilitava o caminhar e o vento um pouco mais forte que o normal ajudava a se refrescar e cuidar um pouco da bebedeira.
Lá pelas tantas, quando já estava no meio do caminho, sentiu uma vontade danada de fumar, então parou de andar e aguardou um tempinho até que as coisas parassem de girar, (pelo menos um pouco) e com muita dificuldade procurou nos bolsos, que insistiam em mudar de lugar, até que achou o maço de cigarros e a caixa de fósforos.
Depois de muita concentração e força de vontade, conseguiu finalmente acender o palito de fósforo, mas assim que o levou até o cigarro que estava entre seus lábios, o vento apagou a chama. Iria ter que refazer todo o processo, com a dificuldade extra que tudo à sua volta passara a girar mais rápido.
Por três vezes repetiu a operação, mas o vento sempre apagava o fósforo na hora exata de acender o cigarro.
Pois foi então que, surgiu sabe-se lá de onde em meio aos seus pensamentos turvos, a grande idéia de virar o corpo a favor do vento, afinal se no sentido de sua casa o vento apagava o fósforo, então no sentido da cidade o vento não o atrapalharia.
Virou o corpo e lutou novamente com o palito de fósforo que insistia em fugir de seus dedos, não conseguia atinar por que uma tarefa tão simples estava dando tanto trabalho.
Levou uns cinco minutos, mas finalmente conseguiu acender o fósforo e levá-lo até o cigarro sem que o vento arruinasse seus planos. Deu duas tragadas bem profundas apreciando a nicotina que invadia seus pulmões. Respirou fundo e se julgou em condições de retomar a caminhada.
E assim o fez, esquecendo-se, porém, de um pequeno detalhe: não girou o corpo novamente, de modo que seguiu andando sem se dar conta que estava voltando para a cidade.
Eram quase quatro da manhã quando avistou as luzes da cidade. A princípio não entendeu toda aquela claridade na sua fazenda, será que era época de quermesse?
Somente quando se aproximou o bastante da cidade foi que percebeu que tinha feito alguma coisa errada. A longa e extenuante caminhada já havia diminuído um pouco os efeitos do álcool em seu organismo, de modo que o torpor já não existia mais e ele percebeu que seu corpo estava muito dolorido e cansado, não iria dar conta de mais uma caminhada.
Extenuado e sem conseguir atinar direito, 'seu quinzinho' deitou-se no primeiro alpendre que encontrou. Não demorou muito e a polícia apareceu, chamada pela dona da casa que imaginou que estivesse sendo assaltada.
Os policiais reconheceram 'seu quinzinho' e o recolheram.
O sol estava quase raiando quando a viatura o deixou em casa, mal saiu do carro e foi recebido à chineladas pela esposa, que estava preocupadíssima com o atraso, imaginando que alguma coisa pior havia acontecido. Entre gritos e porradas, os vizinhos se ajuntaram para assistir o pobre homem franzino e desorientado sendo massacrado física e verbalmente enquanto tentava desesperadamente achar a porta de entrada de sua casa.
Até hoje essa história é contada pelos moradores da fazenda e pelo dono do bar onde ele frequentava. Quem a ouve não acredita que isso possa ter acontecido de fato, mas que a conta jura que é verdade.
Quanto a 'seu quinzinho', nunca mais voltou ao bar.
Não que tivesse com vergonha ou não gostasse mais de uma boa cachaça, é que a lembrança das chineladas e o olhar furioso de dona Conceição o intimidavam mais que o desejo de beber.