SER CRIANÇA PARA QUEM É CRIANÇA: UM ESTUDO DE CASO COMPARATIVO

Francieli Barroso[1]

RESUMO

                A infância é um período no qual a criança cresce fisicamente e matura-se psicologicamente. Desta forma, a infância não pode ser entendida apenas como mais um período na vida do indivíduo em formação, mas como um momento construído no contexto de cada grupo social e que assume "naturezas" que variam segundo épocas e condições históricas diferentes. O desenvolvimento humano não se norteia apenas na maturação do sistema nervoso central, mas também a partir de todas as relações humanas estabelecidas e nas possibilidades exploratórias do meio ambiente. Assim a figura dos pais torna-se importante no desenvolvimento da criança, no que diz respeito ao afeto e na presença de estímulos. A institucionalização de crianças nos tempos atuais é um fenômeno complexo, sendo reflexo da situação econômica em que se encontra o país, onde tantas famílias vivem em situação de extrema miséria. Neste artigo foram estudadas oito crianças, entre 8 e 11 anos,  fizeram desenhos e contaram historias sobre estes desenhos, a fim de expressar o que pensam sobre “o que é ser criança”. Os resultados apontados foram sutis. Crianças institucionalizadas referem mais a presença familiar em suas historias, enquanto crianças de famílias nucleares parecem ter conceitos mais definidos sobre os temas recorrentes nas narrativas. Apesar da complexidade da questão abordada e da multiplicidade de fatores que podem estar correlacionados na formação das crianças estudadas, os indícios presentemente apontados permitem-nos concluir que a institucionalização constitui-se como uma experiência de vida, que possibilita a criança significar o mundo e sua existência de uma maneira bastante peculiar.

 

Palavras-chave: Criança, Institucionalização, Significados de Infância.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Segundo Postman (2002), para Rousseau, a criança nasceria boa e perfeita. O contato com a influência da sociedade, com o progresso e as ciências, alteraria esta essência e, para manter este estado, seria necessário isolar a criança do convívio social. O modelo da educação deveria ser aquele da educação negativa, ou seja, a criança deveria crescer sem nenhuma opressão, ao ritmo da natureza. Contudo, isto não seria possível sem que fossem modificadas a família e a sociedade. Segundo o autor, hoje, a infância é entendida como um conceito de certa forma abstrato, mas que foi inventado num tempo histórico marcado por relações sociais e culturais entre as pessoas e suas relações com o mundo. Neste sentido, este conceito é marcado por paradoxos que nos mostram que a infância não pode ser concebida como fenômeno único, homogêneo, e uniforme para todas as crianças (isso nem seria possível), mas sim como infâncias ou como uma infância plural.

Embora haja uma variada gama de estudos que se referem aos sentidos e concepções de infância em diferentes contextos ou tempos históricos, tratam-se, na sua maioria, de estudos de cunho teórico. Quando empíricos, no entanto, o filtro que permeia estas concepções parte da visão do adulto que convive com a criança, como pais, professores, médicos, cuidadores. Para Postman (2002), as crianças do mundo contemporâneo vivem em condições semelhantes aos adultos – vestindo-se, falando, tendo as mesmas informações e comportando-se como eles – porem, têm ao seu alcance a configuração de um mundo típico de criança. Diante destes contextos, percebe-se a importância de ouvir o relato da criança a cerca da sua própria infância. Neste sentido, este artigo se propõe a investigar as concepções de infância para crianças de diferentes contextos: estudantes de escola pública/ privada e convivendo com suas famílias e crianças estudantes de escola pública e abrigadas em uma instituição de proteção para crianças em situação de vulnerabilidade social.

Na fundamentação teórica deste artigo, discutem-se as diferentes concepções de criança, considerando tempo histórico, influencia da família, escola e da institucionalização. Em seguida, apresenta-se o encaminhamento metodológico adotado para a pesquisa, os resultados obtidos e a análise destes dados, destacando-se as principais percepções relacionadas à visão de infância sob a ótica da criança.

 

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

 

  • A criança ao longo da história

Os modernos estudos das ciências biológicas e psicológicas, que vislumbravam a criança como ser biológico, desenharam uma representação da infância regulada por aspectos de um desenvolvimento supostamente evolutivo e natural (ARIÈS, 1978). Este autor aponta que, no contexto das sociedades anteriores à modernidade, não existia uma idéia de infância como período especial da vida ou, pelo menos, como um período diferenciado do adulto em relação às atividades, gostos, pensamentos, modos de se comportar e expressão dos sentimentos. As crianças existiram, mas o seu entendimento como um grupo etário diferenciado dos adultos passou a ser reconhecido como tal muito recentemente, fruto de construções culturais e sociais que, no decorrer da história, foram tomando diferentes configurações.

A forma como as sociedades reconheciam ou não as crianças, para o autor, estava ligada à organização dos grupos sociais, principalmente à família. Na sociedade medieval, por exemplo, as formas de ser criança eram muito diferentes da que vivemos hoje. Assim que pudessem ser menos dependentes dos cuidados de uma pessoa mais velha, as crianças já se misturavam aos adultos, participavam de seus afazeres, diversões, dos acontecimentos do grupo ao qual pertenciam e no qual se organizavam para a sobrevivência.

Na Modernidade, segundo Ariès (1978), as crianças saíram do anonimato e passaram a ser notadas de maneira diferente, emergindo como categoria social. Esta idéia de infância desembocou nas concepções contemporâneas e teve como principal berço as instituições que se configuraram nas sociedades burguesas, em meados do século XVIII. A instauração do capitalismo como novo modo de produção interferiu dramaticamente na organização de instituições como família e escola. As mulheres foram para as cidades trabalhar nas casas dos burgueses como empregadas ou se tornaram operárias nas fábricas. O trabalho de Rousseau delimitou uma nova visão de criança amplamente aceita pela sociedade e, agora no atual contexto histórico determinado pelas mudanças dos modos de produção, tornava-se culturalmente necessário um espaço no qual as famílias confiassem seus filhos.

Segundo Ariès (1978), a família transformou-se profundamente na medida em que modificou suas relações internas com as crianças. No século XV as pessoas não conservavam as próprias crianças em casa: a partir dos sete anos de idade, enviavam-nas a outras famílias, para que com elas morassem e começassem suas vidas. De modo geral, a transmissão do conhecimento de uma geração para a outra era garantida pela participação familiar das crianças na vida dos adultos. Em toda a parte onde se trabalhava e, também, em toda a parte onde se jogava ou brincava, as crianças se misturavam aos adultos. Dessa maneira elas aprendiam a viver, através do contato de cada dia. A educação das crianças era garantida pela aprendizagem junto aos adultos e não havia lugar para a escola nessa transmissão através da aprendizagem direta de uma geração a outra. Frente à retirada da criança do seio familiar, “a família não podia, portanto, nessa época, alimentar um sentimento existencial profundo entre pais e filhos” (ARIÈS, 1978: 231). Para o autor, ter um filho significava a possibilidade de que esta criança poderia trazer uma contribuição à obra comum, ao estabelecimento da família.

No século XVIII, o cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos, uma afetividade nova. Os pais não se contentavam mais em pôr filhos no mundo. A moral da época lhes impunha proporcionar para todos os filhos uma preparação para a vida. Com isso, a aprendizagem tradicional foi substituída por uma escola transformada, instrumento de uma disciplina severa, protegida pela justiça e pela política. Família e escola foram responsáveis pela retirada da criança da sociedade dos adultos. A escola confinou uma infância, outrora livre, num regime disciplinar cada vez mais rigoroso. Mas esse rigor traduzia um sentimento muito diferente da antiga indiferença: um amor obsessivo que deveria dominar a sociedade a partir do século XVIII (ARIÈS, 1978).

Para o autor, a família moderna retirou da vida comum não apenas as crianças, mas uma grande parte do tempo e da preocupação dos adultos. Ela correspondeu a uma necessidade de intimidade e também de identidade: os membros da família se unem pelo sentimento, o costume e o gênero de vida. Nesse sentido, é possível imaginar a família moderna sem amor, mas as preocupações com a criança e a necessidade de sua presença estão enraizadas nela. A civilização medieval ignorava a educação das crianças, porém, hoje, nossa sociedade possui um sistema de educação e uma consciência de sua importância, sabendo que seu sucesso depende do sucesso do sistema educacional.

Postman (2002) anunciou, recentemente, um novo desaparecimento da infância. Fazendo a leitura do desenvolvimento social e cultural contemporâneo, o autor atribuiu às formas de linguagem, às trocas sociais e às modalidades de desenvolvimento das culturas, entre elas as tecnologias de comunicação, os motivos de distanciamento ou de aproximação dos mundos infantil e adulto. A linguagem como instrumento de comunicação, aprendizagem, informação e, posteriormente, o acesso à leitura expandida, possibilita, às crianças, participar ou não dos segredos dos adultos. Antes, nas sociedades pré-modernas, não havia diferença entre o que um adulto sabia e o que uma criança poderia saber via experiência e cultura oral. Com a descoberta da imprensa, a expansão das instituições educativas e o acesso à leitura e à escrita, a sociedade dividiu-se entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem e que, por isso, precisam ir à escola para saber.

Postman (2002) reconhece que, se antes da modernidade tudo era compartilhado e não havia distinções entre as idades da vida, na modernidade essas idades ficaram bem marcadas e foram criados diversos artefatos e dispositivos para distinguir os adultos das crianças. Da mesma forma que essas distinções perduraram por muito tempo, marcando a idade áurea de vida infantil em que foram preservados valores e práticas em que se acreditava, também contribuíram para que as crianças fossem seres mais felizes na adultez. As sociedades, no entanto, caminharam para a anulação entre os dois mundos (a infância e a adultez).

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