Resumo: O texto, na contramão das correntes culturais,  ousa colocar lado a lado  Jesus e Buda no cenário de situações da mesma ordem.

 

Sem comentários

 

Tenho aqui duas passagens célebres e respeitáveis. Uma de Jesus, outra de Buda. O tema de ambas é um só: a dor de uma mulher que perdera o filho único.

Antes de apresentar os respectivos relatos, devo entabular uma palavrinha que esclareça os motivos que orientam a decisão de colocá-los aqui, lado a lado.

Preliminarmente esclareço não haver nenhum tipo de tensão. Nenhum desejo de suscitar polêmicas. Nada, enfim, que possa comprometer a pura intenção  de compartilhar o  cotejo de duas vertentes espirituais, de duas  qualificações,  dois estilos, dois mistérios. O efeito pensante da colocação, se algum houver, será compreensível, na medida em que nenhum estimulo provoca tanto  o pensamento quanto a ruptura de um dique cultural.

Agora os relatos. Primeiro o bíblico, que se lê em Lucas, 7.11-15:

E aconteceu que, no dia seguinte, ele foi à cidade chamada Naim, e com ele iam muitos dos seus discípulos, e uma grande multidão;
E, quando chegou perto da porta da cidade, eis que levavam um defunto, filho único de sua mãe, que era viúva; e com ela ia uma grande multidão da cidade.
E, vendo-a, o Senhor moveu-se de íntima compaixão por ela, e disse-lhe: Não chores.
E, chegando-se, tocou o esquife (e os que o levavam pararam), e disse: Jovem, a ti te digo: Levanta-te. E o que fora defunto assentou-se, e começou a falar.
E entregou-o à sua mãe.
 

Sem comentários.

Esta expressão “sem comentários”, que via de regra incorpora um matiz psicológico de rejeição ou censura, vai aqui encarregada de dizer estritamente que não expenderei  qualquer  comentário a respeito da citação, haja vista a índole sagrada do texto e a  incompetência profana das minhas credenciais.

O relato de Buda fui buscar no livro intitulado “Budismo – Uma Introdução Concisa”, de Huston Smith. Tem esta compostura:

A jovem Kisa Gotami tinha encontrado no seu filho recém-nascido toda a alegria e realização da vida até a criança morrer repentinamente. Enlouquecida pela dor do luto ela continuou a carregar o filho no colo de casa em casa, pedindo por um remédio que o curasse. Alguém se apiedou e a mandou até o Buda.

- Ó Exaltado, disse ela, consiga um remédio para o meu filho.

O Buda respondeu que ela tinha feito bem em vir até ele em busca de remédio. Disse a ela para voltar até a cidade e pegar um punhado de sementes de mostarda de cada casa onde ninguém tivesse morrido, e trazer  as sementes para ele.  Aliviada porque um ritual mágico pela ressurreição do filho iria acontecer, ela partiu ansiosa. Uma exaustiva ronda, porém, não rendeu nem um único grão. Em todas as casas da cidade a resposta era sempre a mesma:

Ó Gotami, muitas pessoas morreram aqui.

Finalmente, Kisa Gotami percebeu a natureza do remédio que o Buda tinha receitado. A dor insana do seu luto fora substituída pela gratidão à sabedoria compassiva do Buda. E ela levou seu filho ao crematório. 

Sem comentários.

Também aqui a expressão “sem comentários” atua despojada de qualquer entonação psicológica.

Todavia, considerada a informalidade do relato, a estrutura leiga da elocução, nada me constrange a manter escrúpulos devocionais. Vale dizer, eu bem que podia comentar alguma coisa.

Mas agora é tarde. Colocados lado a lado o relato de Jesus e o relato de  Buda, o que eu dissesse de um refletiria  instantaneamente sobre o outro. Tal imprudência não me permito cometer. 

Por isso, prefiro deixar que os relatos falem por si sós. Como fazem os mitos, que dão passagem às energias cósmicas modeladoras da vida e das ilusões.