Sangue, suor e lágrimas – a luta indígena pelo seu espaço

Gustavo Uchôas Guimarães

“O deus Tupã ordenou ao povo da floresta que venham e tragam seus arcos e flechas, pois hoje será dado início à festa”. Com este trecho de uma canção do grupo Carrapicho, vamos iniciar nossa “viagem” pelas lutas indígenas nos últimos séculos. As lutas sempre foram contra o colonialismo, a exploração, as armas, as doenças, a catequese forçada, os preconceitos, entre outros fatores que atentam contra a cultura indígena. Apesar das conquistas ao longo do século XX e início do XXI, coexistem diversas realidades favoráveis ou contrárias às lutas e movimentos indígenas.

Podemos falar em resistência indígena já no século XVI, a partir do momento em que perceberam e sentiram na pele os efeitos da colonização europeia. Estes efeitos por vezes eram contraditórios, no sentido de que os colonizadores adotaram posturas que andavam próximas aos extremos do combate e da proteção aos indígenas. Só para citar um exemplo: em 1537, a Igreja Católica, na pessoa do papa Paulo III, expediu a Bula Sublimis Deus, declarando que os índios eram seres humanos dotados de alma e que, por isso, não deveriam ser escravizados, podendo usufruir de sua liberdade mesmo não tendo adotado a fé cristã; porém, a mesma Igreja Católica, na pessoa dos padres jesuítas, fez um trabalho de imposição cultural aos indígenas através dos aldeamentos onde era possível forçar os índios a serem cristãos. Diante destes gestos, a resistência indígena ocorreu como forma de manter aspectos culturais e não sofrerem transformações de maneira invasiva e imposta.

No século XX, as lutas indígenas se intensificaram até conquistarem um certo respeito e o olhar do Estado e da sociedade para sua causa. Falo em “certo respeito” porque ainda existem muitos desrespeitos em relação aos índios, principalmente vindos da sociedade através dos preconceitos que o processo histórico brasileiro enraizou. O olhar do Estado pode ser percebido, por exemplo, na criação de serviços de proteção e de garantia dos direitos indígenas (FUNAI, por exemplo) e na atenção dada aos índios pela Constituição de 1988. Na sociedade, o olhar para os índios se dá na valorização de suas produções culturais, quando, por exemplo, se tem uma maior divulgação de escritores indígenas ou quando as manifestações culturais indígenas alcançam maior visibilidade através do turismo e dos meios de comunicação.

Mesmo assim, estes olhares do Estado e da sociedade convivem com estereótipos que são frutos de séculos de colonização, associando o índio à preguiça, à selvageria e a uma pureza romântica que pode encontrar seu alicerce em obras oitocentistas como as de José de Alencar, onde o índio ainda não teria passado ao estágio de corrupção previsto na máxima rousseauniana pela qual a sociedade corrompe o homem, que naturalmente é bom. É possível dizer, no entanto, que estamos em um “período de transição” (na falta de expressão melhor, esta ainda serve[1]) entre as estruturas estereotipadas de pensamento e uma “libertação” do mesmo para enxergar além das construções e mentalidades preconceituosas.

Por fim, vale considerar que a escola pode e deve ser uma base eficaz para desconstruir e combater os estereótipos sobre os indígenas, sendo assim uma aliada das lutas que eles ainda travam hoje por seus direitos e pelo respeito às suas culturas. A Lei 11645/2008 é, antes de mais nada, uma conquista indígena no setor educacional, resultado unicamente de suas lutas (não foi e nem é nenhum favor do Estado) e de sua consciência sobre a importância da educação, de um modo geral, para a formação do respeito e da boa convivência  com o vasto mundo indígena presente em nosso país. Havendo este respeito e boa convivência, cada vez mais será possível aos indígenas, conforme cantou Carrapicho, festejar como ordenou Tupã.

Referências bibliográficas:

CARRAPICHO. Festa do Boi Bumbá. BMG, 1996. Disco compacto.

MIRANDA, Evaristo Eduardo de. A defesa dos indefesos. Disponível em: http://www.cienciaefe.org.br/jornal/e67/Mt01.htm Acesso em: 05.abr.2015. Publicado em fev.2005.

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (RIO DE JANEIRO). Ação dos jesuítas: catequese e aldeamentos. Disponível em: http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo01/acao_jesuitas.html Acesso em: 05.abr.2015.



[1] A observação deve-se ao fato de que a expressão “período de transição” é usada e sucateada em várias conversas e escritos sobre boa parte dos assuntos relevantes de hoje. E sabemos que o uso indiscriminado de uma palavra ou expressão pode levar a uma banalização da mesma e a um empobrecimento das discussões.