É incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ex-põe.
(Jorge Larrosa)

Experiência, eis a palavra que serve de ponte entre o escritor e sua obra. Palavra que, segundo Larrosa é, em português o que nos acontece, em francês a experiência seria ce que nous arrive; em italiano quello che nos succede; em inglês, that what is happening to us; em alemão, was mir passiest. Passa, acontece, sucede ou o que nos chega são todos os verbos que indicam acontecimento não passivo, mas ativo, pois expor-se é o que caracteriza um sujeito da experiência, inclusive a experiência lingüística.. Assim podemos conceber a experiência do ser que fala, e que fala por excelência, uma vez que aos três anos de idade detém a capacidade de expressar-se, inteligivelmente. E, compreender essa competência humana é ser sujeito da experiência, assim como o foi Sade.

Esse sujeito é um sujeito ex-posto, diz Larrosa. E é nesse termo que podemos entender o marquês de Sade via seus contos proibidos. Se só se é a partir da experiência, grande parte dos seres humanos não é sujeito, antes, indivíduo que se põe, se opõe ou se impõe à vida, mas não se ex-põe a ela como de fato se expõe aquele que ousa viver a vida a seu modo de sentir, de ser, de acreditar, de usar-se e ousar-se a passar pela experiência de viver expondo-se, com tudo que isso tem de vulnerabilidade e de risco.

Sade tornou-se vulnerável ao expor-se; ao buscar em si mesmo a oportunidade de viver o imperativo categórico de Descartes: conhece-te a ti mesmo e assim ser sujeito de si; atrever-se a fazer de si mesmo instrumento de conhecimento. Seria, em termos, um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo do qual faz experiência se apodera dele (LARROSA, 2004, p.163). Esse apoderar-se é uma força que o embriaga e o faz praticar tal ato e, no caso de Sade, o ato da escrita como forma de profanar o corpo tanto da língua quanto do sujeito que põem em prática as leituras de Sade.

A experiência da escrita que se apodera do escritor perpassando-o do exterior ao interior e vice-versa, e no interior dessa função autoria, nas palavras de Michel Foucault (2006), é conduzido e elabora formas de escrita que têm o poder de mover corpos em direção ao prazer e conseqüentemente, via cristianismo, ao pecado carnal. Essa forma de escrita apodera-se da alma de um sujeito que transformado é absorvido completamente, mas não absolvido por tal prática pela sociedade puritana. Esse sujeito torna-se apenas um território de passagem para a escrita. O olho d´água que jorra, mas não é a origem desse ouro branco. Esse ser que fala e faz falar, mas não é fonte, nem origem da linguagem, antes, ocupa uma posição de profeta dos sentidos vários que faz circular entre seus leitores e discípulos através de seus contos. E, mesmo privado de material para cumprir seu ofício, esforça-se para continuar sua obra, sua paixão, que é sua vida de escritor, e também será a sua morte. Esse extinguir-se à moda de Sade, até o des
falecimento de seu corpo, mas não de suas idéias propagadas em direção ao uso do corpo como bem aprouver ao seu dono, nada mais é do que experienciar uma paixão.

Nessa luta contra a sociedade moralista e hipócrita e um Deus que o proíbe e o oprime é que luta até o fim. E, mesmo vencido não se entrega aos seus algozes; e em um ato de negação e morte engole o crucifixo e ri-se. Ri-se desse ato irônico e dos que ousam representar a lei e a ordem do corpo de outrem. Da igreja com seus representantes que se julgam assexuados, pois negam o humano em si e se dizem representantes de um deus irado e, incorporando o poder sancionam leis que proíbem o assunto considerado tabu até hoje: o sexo.

A luta de Sade não é apenas contra um deus opressor, ou contra as regras sociais, mas contra a negação dos desejos e dos atos sexuais, contra a negação do humano, que é uma das marcas mais visível tanto no animal irracional quanto no ser humano. A sua revolta tem como aliado poderoso o processo de escrita, a competência para jogar com os signos lingüísticos de sua língua, da qual é senhor. Uma escrita que penetra na alma e faz despertar desejos ocultos. Esses desejos vencem o sujeito, que se entregando aos delírios proibidos, vive a experiência da traição, da satisfação carnal, da profanação do corpo, mesmo que sejam atos proibidos por uma sociedade dita cristã. Afinal, o conceito de pecado e também de salvação já havia sido forjado e de lá para cá se vive esse dualismo, como é o caso da literatura de expressão amazônica que oscila entre o paraíso e o inferno. Nesse paraíso, o sexo, a lascívia, a iniqüidade, o gozo são permitidos, ou melhor, é a própria encarnação do Éden; e nele também o lugar de tormento, de sofrimento eterno, de morte, como mostra bem o filme de Herzog Aguirre, a cólera dos deuses.

Para livrar o homem da perdição eterna, a sociedade impõe regras de boa convivência, de respeito mútuo, de privação de desejos, de controle e sanção e, parafraseando Nietzsche, não duvida das certezas sobre os valores morais uma vez que sentidos e finalidades são fluidos logo, não se pode mais acreditar que as coisas tenham essências no sentido tradicional, isto é, que possuam uma identidade permanente (2001, p. 22). Cabe ao humano ser o humano por excelência e submeter-se a determinadas formas de vida e de morte, uma vez que até o desfecho da vida é às leis humanas que se deve obedecer, e até mesmo sob tais normas pensar, pois qualquer pensamento fora desses padrões leva à condenação eterna. Como podemos perceber, infringir as regras sociais e pensar de forma diferente dos demais é expor-se ao ridículo, ao não aceito pelo grupo; à exclusão e até à negação dos direitos pessoais. Afinal, dizem eles: pensar em sexo é pecado e leva ao inferno. E a isso Michel Foucault interroga-se: mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo? (2001, p. 08). Para encontrar resposta(s) para tal indagação formula a hipótese de que em toda a sociedade a produção do discurso é controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos (2001, p.09). Esse controle é exercido no interior do próprio de discurso e tem como efeito a exclusão, sujeição e rarefação. Assim, Foucault leva-nos a entender que não se tem o direito de dizer tudo, (...) qualquer um não pode falar qualquer coisa (2001, p. 09).  Nesse sentido, percebe-se que, na sociedade, há uns que podem e aqueles que não podem falar, ou escrever, como é o caso de Sade.

A esfera sexual, que marquês de Sade explora em seus muitos escritos, é uma área ainda povoada por certas restrições, talvez por ser uma região onde a grade é mais cerrada. Eventualmente, o sistema educacional abre espaço para tal debate, como é o caso da Semana da Adolescência nas escolas do estado de Rondônia. O evento acontece uma vez por ano, mas sempre sob controle a quem de direito, por quem detém o conhecimento institucional, o sexólogo ou, às vezes, o médico, psicólogo ou enfermeiro, que impõem regras à explanação do tema. São estes, únicos sujeitos que têm experiência ou conhecem o assunto sexo? Ou estão mais preparados sexualmente para tal assunto? Duas vezes não. O que esse grupo de profissionais tem em comum é que passaram pelo ritual da formação escolar que diz quem pode dizer isso ou aquilo, uma vez que a instituição de ensino faz a rarefação dos sujeitos que falam: ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo (2001, p. 37).

Sujeitos qualificados para produzirem, verdadeiramente tais discursos, e mais ainda, sujeitos definidos pelo ritual. Esse ritual, diz Foucault define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam; define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso (2001, p. 39). De outro modo, quem seria melhor, senão os profissionais do sexo, os sujeitos da experiência sexual?  Estes não servem para o papel, porque são discriminados pela sociedade. São seres indignos e impuros, ainda mais, pecadores. Nestes, a experiência não tem valor algum, uma vez que praticam o que deve ser motivo de vergonha e ojeriza, exceto dentro do casamento anunciado por um representante de Deus.

Sade não esconde em suas personagens o desejo e a lascívia, o prazer e o sofrimento, a satisfação pessoal em detrimento do parceiro(a). Justamente, talvez, porque sejam heróis de papel. Sujeitos construídos discursivamente, assim como o foi, dentre outros, o herói acreano, Chico Mendes, a quem muitos não consideram, verdadeiramente.

Os leitores de Sade, casados, solteiros, homens ou mulheres, senhores ou senhoras, pobres ou ricos, frades ou beatas, indistintamente, têm sonhos eróticos ao lerem tais cenas e, partem para sua concretização na vida cotidiana. Aqui o fazer e fazer-se na prática, na experiência enquanto verdadeira vida. Padres e freiras, abades e demais homens de Deus, despertando em si mesmos os desejos mais vorazes em relação às práticas sexuais. A marca da personagem em Sade é a propensão ao sexo ao extremo, daí deriva-se o termo sadismo, que muitos outros depois viram em Sade. A essa invenção do sexo na produção escrita Foucault (2006, p. 370) diz: é preciso inventar com o corpo, com seus elementos, suas superfícies, seus volumes, suas densidades, um erotismo não disciplinar. Dessa forma, talvez, cabe ao corpo decidir e inventar formas de satisfação, formas de orientar-se em relação ao ato sexual. Definir-se no sexo, isto é, ser isso ou aquilo, a partir de opção ou orientação e experiências vividas no sexo. Viver sua sexualidade como forma de conhecer-se a si mesmo. Aqui, Sade e Foucault se opõem em relação ao objeto sexual. Sade erotizando o corpo dentro de uma sociedade disciplinar e, prendendo-se ao erotismo como forma de vida e ao mesmo tempo padecendo por isso. Foucault lutando contra as regras que impõem ao sujeito formas de viver o sexo na sociedade e acreditando no corpo, no libertar-se através do sexo, como afirma: trata-se de sair do erotismo de Sade (...). É preciso inventar um erotismo não disciplinar. O corpo em estado volátil e difuso (2006, p. 370).

A paixão de Sade pelo erotismo na escrita leva-o ao seu próprio extermínio. Larrosa afirma que a paixão tem uma relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e desejada como verdadeira vida (2004, p.164). Em compensação seu eterno viver torna-se garantido. A sua paixão pela escrita pode ser vista como forma de vida ou como condição de possibilidade de todo renascimento (2004, p.165).

Vivendo em uma sociedade disciplinar estava sujeito às regras, às interdições sociais, contudo soube jogar com os signos lingüísticos dos quais era senhor. A função discursiva que exercia, não como fonte ou origem do discurso, mas como posição, status e diferentes lugares de onde fala o transforma em o monstro do sexo. Seu referente não é algo jamais falado ou escrito; seu campo associado os conceitos possibilita-lhe diversas formas de enunciações, que revelam seu modo ímpar de escrever sobre os desejos humanos. Seu estilo revela o lado proibido e ao mesmo tempo desejado. O despertar de interesses e sonhos adormecidos no íntimo de cada um. A palavra proibida que tem o poder de inebriar e causar perturbação ao homem e, de expor seu autor aos controles sociais.

A esse procedimento de controle interno ao discurso que é o autor; ou essa função autoria a que Sade permitiu-se experienciar, Foucault denomina princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de significações e como foco de sua coerência. É o indivíduo que dá o nó na rede discursiva; que dá significações a determinados signos e constrói determinado objeto. As diferentes formas de enunciar podem corresponder, por exemplo, a um mesmo autor. Suas posições subjetivadoras revelam quem fala e o que diz ou quer dizer, daí correr riscos com suas idéias propagadas e como é o caso de Sade, ser condenado à morte. Assim, descobre-se o poder que tem a palavra e a isso a Bíblia alerta: a vida e a morte estão sob o poder da palavra (Provérbios 18, 21).

A escrita como força demolidora de valores ultrapassados, como forma de dessacralização de certas morais, de certas formas de viver o sexo. É preciso deixar-se envolver, enamorar-se de certos jogos eróticos, é preciso viver a escrita e deixá-la viver como força dominadora, com seus efeitos de sentido, como dona de si mesma através do seu exercício em nós. Isso ensina Sade. A escrita apodera-se dele e o faz colocar no papel seus fantasmas e monstros. Os efeitos são o aprisionamento, a loucura e finalmente, a morte. Prazerosa, de certa forma, porque resultado de uma paixão. O sujeito experienciando o sofrimento como forma de prazer. A perda da liberdade de escrita não o faz estremecer de medo e recuar, ao contrário, instiga-o a outras formas de escrita. De certa forma, exercita o próprio corpo do sujeito autor. Esse exercício é, via de regra, o viver em um corpo e sentir-se seu dono. Descobrir-se a si mesmo como um sujeito que realiza seus desejos. Esse sujeito que pode ocupar variados lugares e posições nesse eterno constituir-se. Ora sob determinadas proibições, ora fugindo delas, ora enfrentando-as e padecendo por isso; padecendo por assumir-se, por não calar-se e por inventariar de/em/por si mesmo e apegar-se ao corpo como forma de vida.

Se hoje o culto ao corpo chega a ser doentio, não era diferente o horror a ele em tempos passados. O corpo, afinal, sempre foi aquilo pelo que se busca poder e domínio. O corpo do outro que pode ser apoderado para finalidades mil. Pensa-se assim em corpos dominados e subjugados por outros, como é o caso de índios escravos na região amazônica nos tempos de colonização e invasão da região. O corpo como objeto de trabalho e prazer do seu senhor, de seu colonizador, afinal, o que se busca no outro senão complementaridade? Se se é namorado, marido ou esposo, parceiro ou ficante tem-se a idéia de domínio do outro, daí o uso de senhor, de pronomes possessivos - meu ou minha - antes de designar o nome do companheiro. Talvez, atualmente, venha modificando-se tal expressão pelo fico. E nesse ficar o sujeito busca identificar-se como sujeito que tem a liberdade e ilude-se de viver profundamente sua sexualidade.

Desse modo, podemos perceber, atualmente, a história de um sujeito separado de seu corpo e, portanto, a necessidade de objetivação de si mesmo. E luta contra as várias subjetivações e busca um núcleo, um eu centrado em si mesmo que há muito tempo se perdeu. A sua linguagem não condiz com as práticas e estas não chegam às teorias: babel se impôs.

A excursão como método proposto por Roland Barthes em seu texto Aula pode servir de modelo a essa busca, a esse caçar-se, um pescar-se, um procurar-se nas idas e vindas em busca de outro corpo para fazer-se a si mesmo no/através do outro. Esse movimento de afastar-se em todos os sentidos, ir-se, vagabundear-se, expor-se, buscar-se nesse corpo a corpo, nesse encontro não apenas corpóreo, mas também lingüístico ou translingüístico, afinal as palavras possuem corpo, estrutura, orifícios e despertam desejos e são objetos de poder. Finalmente, porque saber e poder se complementam e confundem-se. São figuras da mesma moeda: cara e coroa.

Sade, sujeito da experiência que serve de referencial fundamental na construção de outras identidades, sejam elas locais, regionais ou nacionais. Essa base referencial está em sua obra, sua forma de enunciação que caracteriza um estilo peculiar de escrita tendo como objeto o ser humano. O aprisionamento do autor de contos proibidos não impede o proliferar de idéias em torno do mesmo objeto-tabu: o sexo. A prática sexual como escoação da libido, de prazer ao extremo, da subjugação do outro não deixa de acontecer por seu encarceramento e morte. Talvez pudéssemos falar em exercitar-se para o prazer enquanto satisfação de si independente do outro. Conhecer-se para dominar e, conseqüentemente, ser a força que comanda, afinal, o que mais o dominado quer senão ser o dominador? Essa força não pode existir sem resistência; e esse é o pulsar das coisas, dos seres. Esse outro gume da faca para citar Fernando Pessoa, é o que faz mover as montanhas e é a razão da raça humana na Terra.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 7ª ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Brás. De Laura Fraga Sampaio. 7ª ed. São Paulo; Loyola, 2001.

___________, M. O que é um autor? In: Ditos e Escritos III Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

___________, M. Sade, o sargento do sexo. In: Ditos e Escritos III Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

LARROSA, Jorge. Linguagem e Educação depois de Babel. Coleção Educação: experiência e sentido. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. Para a genealogia da moral. Adaptação de Oswaldo Giacóia Júnior. São Paulo: Scipione, 2001.