FORMAÇÃO, PROFISSÃO E PRÁTICA DOCENTE

Saberes Docentes Sobre a Alfabetização e Seu Impacto na Prática do Ensino da Leitura e Escrita

Orquídio Mimósio Nhampossa[1]

Ruth Barros Gouveia[2]

Este artigo visa analisar os saberes dos professores em relação ao ensino-aprendizagem da leitura e escrita e sua influência sobre as práticas educativas nas classes do primeiro ciclo do ensino primário. O artigo resulta da fusão entre dois estudos de caso sendo que o primeiro abordou os Saberes Docentes no Ensino de Leitura e Escrita no I Ciclo na EPC[3] Mangulamelo e o segundo atracou o Processo de Avaliação do Desenvolvimento da Escrita em alunos do 1º ciclo na Disciplina de Português na EPC Eduardo Mondlane. Ambos os estudos foram feitos em Mocuba no corrente ano de 2019 usando a pesquisa descritiva numa abordagem qualitativa por meio de entrevistas e observações. Os dados das pesquisas permitiram perceber que os professores aparentam pouca percepção sobre o processo de alfabetização e suas práticas remontam metodologias tradicionais desajustadas relativamente aos conhecimentos recentes sobre o ensino da leitura e escrita pois as etapas psicogenéticas da escrita não são do seu domínio e as técnicas de aprendizagem por si aplicadas priorizam as cópias, a silabação canónica e excessivos treinos motores, ignorando-se habilidades perceptuais e as reais hipóteses de escrita dos alunos, gerando um clima de exclusão na sala de aulas. Assim sugere-se que haja um repensar na formação inicial dos professores e em formações continuadas aos professores em exercício em metodologias eficazes de alfabetização baseadas em estudos científicos actuais como os cursos livres fornecidos por Boquinhas® – Aprendizagem e Assessoria ME.

 

Palavras-chave: saberes docentes, alfabetização, práticas educativas, consciência fonológica

 

Introdução

A grande discussão em torno do ensino primário na actualidade prende-se a questões relativas à leitura e escrita iniciais. Os resultados põem em causa a metodologia tradicional do estímulo-resposta mais virada para a memorização. Estudos recentes alicerçados na psicopedagogia por TELES (2007), na neurociência e na fonoaudiologia por JARDINI (2016) apontam para a necessidade de uma aprendizagem mais conceitual por meio de métodos multissensoriais que activem a consciência fonológica dos aprendentes.

Contudo, muitas vezes, o trabalho do professor é limitado a transmitir e corrigir de forma analogamente bancária e o processo se sucede de maneira estagnada, descontínua, não contribuindo para a construção das habilidades de escrita, de acordo com o nível de desenvolvimento fonológico da criança. Será por falta de conhecimentos sobre o processo envolvido na aprendizagem da leitura e escrita?

Quando o professor considera errado o exercício feito pelos alunos, não leva em conta a estrutura de raciocínio percorrida por eles, tachando-os como incapazes de aprender, desinteressados, preguiçosos, desprivilegiando-os socialmente, perante a si mesmos e aos outros. No construtivismo mais importante que fornecer a resposta correcta para a criança é fornecermos oportunidades para pensar e raciocinar por meio da aprendizagem mediada. Além disso, na proposta construtivista o erro é previsto e desejado, pois o aluno, a partir do erro, irá buscar caminhos e formas visando construir o seu conhecimento e somente assim ele irá aprender mediante novas construções e novos esquemas. É pertinente ressaltar que o que deve interessar ao professor, numa resposta, não é estar ‘certa’ ou ‘errada’ e, sim, como o aluno chegou a ‘tal’ resposta para posteriormente explicar os mecanismos necessários ao acerto ou ao avanço para a hipótese de escrita seguinte. O ‘erro’ é parte importante da aprendizagem, já que expressa uma hipótese de elaboração de conhecimento, consistindo-se, portanto, em erro construtivo.

Uma vez que a avaliação é parte integrante das praticas educativas e esta presente em todos os momentos da aula optamos por menciona-la e propor esta singela discussão. Entretanto todo o processo da leitura e da escrita parece pouco conhecido pelos professores das escolas pesquisadas e isso pode ser o motivo pelo qual as praticas deixam muito a desejar.

O presente trabalho aponta os saberes docentes sobre o processo de aquisição do SEA pela criança e sua influência na prática de leccionação e avaliação do processo da leitura e escrita tendo participado 6 professoras do 1º ciclo da EPC Eduardo Mondlane e igual número de professores no mesmo ciclo da EPC Mangulamelo.

 

Saberes docentes no processo de leitura e escrita

Analisando as respostas das professoras apresentadas anteriormente há muitos aspectos sensíveis a considerar dos quais destacaremos os que parecem mais prioritários. A princípio, a ideia partilhada por 4 das 6 professoras entrevistadas de que o aluno pode saber escrever sem ler abre um leque de questionamentos: será que se confunde a psicomotricidade com o acto de escrever? Será que alguns professores (neste caso a maioria) na percebem que existem habilidades anteriores a escrita por parte dos alunos? Com efeito, será que os professores buscam avaliar o nível de aquisição da escrita ou a reprodução das escritas memorizadas das aulas?

Indo ao primeiro questionamento percebe-se a associação da motricidade fina à habilidade escrita quando uma das entrevistadas refere que os alunos precisam unicamente saber copiar para aprender a escrever. Então os treino grafo-motores se tornam na principal actividade da aula e consequentemente a matéria chave para a avaliação. Isto é justificado pelo segundo questionamento a que nos referimos acima sobre a percepção dos professores em relação às habilidades anteriores a escrita; vimos no discurso de alguns entrevistados que não existem habilidades anteriores a escrita senão os treinos grafo-motores, entretanto a psicopedagoga e psicomotricista BRITES (2017) explica que no percurso da habilidade escrita vem primeiro a leitura pois esta “tem como pressuposto habilidades perceptuais como a audição, a visão e a integração da letra com o som, antevendo a habilidade escrita que exige maior organização e sequencialização do cérebro” e, de acordo com a psicopedagoga e Fonoaudióloga JARDINI (2018), “… primeiramente é necessário descodificar os símbolos do alfabeto por meio de métodos que activem ou alterem o processamento auditivo, a consciência fonológica e fonémica. Depois vem a codificação pois a criança já pode representar os sons.”. BRITES (2017) acrescenta que “todas as habilidades perceptuais precedem as habilidades motoras”.

Assim, fica fácil entender que a aquisição do sistema de escrita alfabética (SEA) não faz o fundo do quadro da concepção e aplicação das aulas e avaliações dos professores entrevistados. Contudo, os treinos grafo-motores são orientados pelos professores de forma exemplar pois na introdução das letras primeiro exercitam a letra no ar, no tampo da carteira e no caderno tal como orienta o MINED (2015). Nos momentos de consolidação os professores orientam a leitura em voz alta (leitura oral) concordando com o MINED (2015) que sugere a “Leitura oral feita pelos alunos: por toda a turma; por grupos; e individualmente”.

Os entrevistados referiram que nas suas estratégias de ensino da leitura ora apontam as letras, sílabas ou palavras no quadro para os alunos lerem, ora lêem para os alunos repetirem e fazerem cópias, ou organizam grupos para fazerem a leitura. Assim patentearam a falta de percepção de que a alfabetização é um processo de aquisição (algo que deve ser ensinado explicitamente) e não de demonstração (algo a ser cobrado) se analisado o entendimento de SOARES (2002) segundo o qual a alfabetização deve ser entendida como “processo de aquisição e apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico”. Este cenário revela que os professores não vêem a leitura inicial como aquisição mas sim como demonstração enquadrando a escola em estudo no grupo daquelas em que, conforme GOMES (2009), a leitura não é ensinada como uma competência, mas sim como um auxiliar para as aulas de interpretação de texto, ou seja, as professoras não seleccionam aulas para dedicarem ao ensino da leitura em exclusivo pois a leitura funciona quase sempre como uma ponte para se chegar a um determinado assunto no seguimento do letramento ou literacia.

Para elucidar a postura de GOMES (2009) os autores VIANA e TEIXEIRA (2002) referem que

… no geral, os professores preocupam-se mais com o ensino da leitura do que com o processo de ler e, por outro lado, têm pouco conhecimento teórico acerca deste processo. Tal lacuna de formação repercute-se na utilização generalizada de um determinado método, sem atender às diferenças individuais de cada criança, quer em termos de motivação e capacidade de aprender, quer especialmente em termos de experiências prévias com a linguagem oral e escrita.

Os trechos das entrevistas evidenciam que a percepção dos professores sobre o processo de alfabetização é muito vaga visto que poucos professores aliaram a leitura e escrita ao processo da alfabetização tendo destacado que a leitura se faz antes da escrita, e menor foi o número de entrevistados que mencionou o método analítico e o sintético como indispensáveis para a alfabetização. Alguns professores entrevistados admitiram que a escrita é possível mesmo antes da leitura contrariando a lógica do ouvir, falar, ler e escrever. Outros entrevistados apontaram como métodos de ensino da leitura o método de elaboração conjunta e trabalho independente tal como em grupo e o expositivo ao invés dos métodos específicos para a aprendizagem da leitura como por exemplo o tradicional método sintético que inclusive figura no programa de ensino como o principal método visto “deve-se dar um maior enfoque ao percurso da síntese, exercitando a combinação de letras para a formação de novas sílabas e palavras” (INDE/MINED, 2015) numa “perspectiva de ensino da leitura e escrita iniciais com base no método analítico – sintético” (INDE/MINED, 2015).

Parece oportuno comentar a existência de um paradoxo quando o programa de ensino orienta para um maior enfoque ao percurso da síntese quando apela para a ênfase no nome da letra em detrimento do som da letra pois PEREIRA (2009) entende o método sintético como um método que “… insiste, sobretudo, na correspondência entre o oral e o escrito, entre o som e a grafia, num processo que consiste em ir das partes ao todo”. Se a tónica do método sintético está na análise auditiva para que os sons sejam separados e estabelecidas as correspondências grafema-fonema parece contraditório que se pretenda fazer uma síntese sem o ensino explícito do som.

Entretanto não é sem razão que os professores apontem e usem as variantes metodológicas básicas ou de organização didáctica da aula pois os mesmos afirmam que alguns alunos aprendem com recurso a esses métodos; isto se confirma por SMITH (1990) ao explicar que “…todos os métodos de ensino da leitura permitem alcançar algum resultado, com alguns alunos, algumas vezes.”

Os professores operam com o conhecimento do conteúdo (ler e escrever) pois durante as observações foi notório seu domínio da leitura (fluência, prosódia, etc.) e escrita (ortografia e caligrafia), contudo, inúmeras foram as situações em que não argumentaram nem se explicaram de forma lógica sobre as técnicas e os contornos do processo de aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças, sugerindo que existam fragilidades na actuação docente uma vez que de acordo com SHULMAN (1986) “para ser professor não basta ter o domínio de um determinado conhecimento, é preciso compreendê-lo em todas as suas dimensões”.

Admitindo que o professor possa não ter a capacidade de teorizar sobre o processo de leitura e escrita será que para tornar esse processo mais compreensível pelo aluno não implica ter um nível de consciência dele? Tratando-se da alfabetização, do ensino da leitura e da escrita iniciais, que conhecimentos da matéria ensinada o professor deve dominar? Analogamente, um médico que justifica a prescrição de determinada medicação a partir do exame clínico e de exames laboratoriais se diferencia daquele que usa como único argumento para prescrevê-lo o fato daquela medicação “ter dado certo” com outros pacientes.

Privilegiar o conhecimento de experiências singulares em detrimento do conhecimento científico do processo da alfabetização pode resultar no esvaziamento do objecto de conhecimento e comprometer a função primordial da educação na iniciação escolar. Este comentário surge da percepção da ausência de conhecimentos sobre a questão fonológica da aquisição do código alfabético alicerçado na psicopedagogia em termos explicados por TELES (2007) como sendo relevante “o princípio alfabético tendo em consideração o necessário desenvolvimento da consciência fonológica, nomeadamente da consciência silábica e fonémica” bem como a consciência da palavra (para evitar hiper/hipossegmentações).

Assim foi possível perceber que o ensino da escrita baseia-se apenas na cópia e não são levados em consideração diversas formas de possibilitar a aquisição da escrita como por exemplo fazer com que as crianças possam “demonstrar iniciativa para utilizar a escrita, querer situações lúdicas, quer nas rotinas do dia-a-dia; explorar diferentes formas de escrita; envolver-se em diferentes tarefas de escrita e adequar formas de escrita a contextos específicos” (MATA, 2008).

Deste modo percebe-se que da classificação dos saberes docentes feita por TARDIF (2004) considerando as especificidades de sua origem, aquisição e incorporação à prática profissional dos professores das escolas citadas predominam os saberes provenientes de sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola adquiridos pela prática do ofício na escola e na sala de aula, integrados pela prática do trabalho e pela socialização profissional. Entretanto percebe-se ainda uma aparente falta de interacção e partilha de saberes entre docentes da mesma classe.

A par disso os professores empregam saberes provenientes da formação profissional para o magistério (maioritariamente de 10ª + 1 ano) adquiridos nos estabelecimentos de formação de professores, nos estágios, e nas capacitações em que aspectos gerais do PEA foram abordados. Mesmo assim, de tais saberes da formação profissional não fazem parte aspectos específicos das aulas de leitura e escrita iniciais de forma conceptual, prática e significativa para os alunos.

 

Práticas dos professores no processo de leitura e escrita

Partindo das práticas observadas nas aludidas escolas ao atribuir à leitura em voz alta e às questões de controlo e de disciplina dos alunos em sala de aula os professores parecem reportar-se ao final do século XIX, quando tais estratégias eram usadas deliberadamente.

Muitos entrevistados negaram que existissem habilidades anteriores ao ensino da leitura referindo que o inicio do processo e o conhecimento das letras e nas práticas, durante as observações, verificou-se o interesse dos professores estava ligado ao conhecimento da grafia e nome da letra para o posterior ensino das sílabas encaradas como uma unidade. Entretanto TELES (2007) argumenta que o processo da leitura exige os seguintes pré-requisitos:

Para aprender a ler é necessário ter uma boa consciência fonológica, isto é, o conhecimento consciente de que a linguagem é formada por palavras, as palavras por sílabas, as sílabas por fonemas e que os caracteres do alfabeto representam esses fonemas. (…). Para ler é necessário conhecer o princípio alfabético, saber que as letras do alfabeto têm um nome e representam um som da linguagem, saber encontrar as correspondências grafo-fonémicas, saber analisar e segmentar as palavras em sílabas e fonemas, saber realizar as fusões fonémicas e silábicas e encontrar a pronúncia correcta para aceder ao significado das palavras. Para realizar uma leitura fluente e compreensiva é ainda necessário realizar automaticamente estas operações, isto é, sem atenção consciente e sem esforço.

 No que se refere à produção escrita as escassas situações de ensino observadas não favoreceram uma actividade conceitual e original das crianças pois o escrever ficou reduzido a meras cópias do que o professor coloca no quadro ou do que o aluno encontra no livro-caderno. A respeito do ensino da produção escrita o MINED (2015) sugere que:

As actividades de escrita, nesta fase, deverão obedecer, de entre outros, aos seguintes aspectos:

a) O exercício de escrita deve ser antecedido, acompanhado e seguido de actividades de oralidade e de leitura, relacionadas com o que se escreve;

b) As palavras e as frases apresentadas como modelo devem relacionar-se com elementos da vivência real dos alunos;

c) A designação dos seres ou dos objectos deve ser feita pela escrita da palavra ou da frase correspondente e não pela escrita da letra/combinações grafémicas em estudo;

d) As actividades de escrita devem ser motivadas (desenho e interpretação de imagens, leitura e interpretação de textos: histórias, contos, etc.);

e) O conteúdo dos textos que servirão de base para a produção escrita deve ser do conhecimento dos alunos;

f) No desenvolvimento da escrita dos alunos a maior preocupação deve incidir no aperfeiçoamento da caligrafia, ortografia e exercícios do funcionamento da língua.

As práticas docentes no processo da alfabetização são fruto dos saberes empíricos dos professores sendo caracterizadas pela carência de um embasamento científico sobre a alfabetização dai que se ouve dos professores que as cópias e repetições são a base da alfabetização. Um exemplo deste facto foi a questão relacionada a prática da sequência do ensino das letras utilizado pelos professores em que responderam ser simplesmente porque o livro do aluno foi feito assim e o programa assim o recomenda (parece não haver aqui uma orientação clara aos professores sobre as razoes da adopção da sequência proposta pelo programa de ensino); olhando para o método João de Deus percebe-se que a sequência usada naquela metodologia tem uma justificativa, como o explicado no trecho a seguir:

O processo inicia-se com a visão das letras, seguindo-se os sons correspondentes, a leitura de palavras e a pronunciação destas como entidades globais com significado próprio. Cada letra consoante é incluída numa lição em que estão reunidos os seus diferentes valores, as letras consoantes são ordenadas em função do seu número de valores, sendo ensinadas primeiro as que correspondem foneticamente a fricativas "certas", ou seja aquelas que só têm uma leitura, um valor, um som. Assim, e depois de apresentar as vogais, sem as quais não há palavras, as primeiras letras consoantes "certas" que se ensinam são v, f, j, (constritivas – fricativas) cujo valor se pode proferir e prolongar. Depois o t, d, b, p, (oclusivas), que resultam de uma obstrução total da saída do ar, não tendo por isso, valor proferível. Depois aparecem a constritiva lateral 1 e a oclusiva q. Só depois aparecem as consoantes "incertas", aquelas que têm mais do que um valor, mais do que um som, conforme a sua posição na palavra, são elas: c, g, r, z, s, x, m, n. Nesta metodologia são respeitados os postulados da psicologia, partindo-se sempre do mais simples para o mais complexo. (AJEJD, 2011).

A par disto, os professores não percebem a principal finalidade do ensino das vogais e das consoantes nem percebem a utilidade de tais grupos de letras no avanço das crianças nas diversas hipóteses de escrita. No método Fonovisuoarticulatório ou “boquinhas” o ensino das vogais, para JARDINE (2018), objectiva a aquisição pelo aluno da hipótese silábica da escrita com valor sonoro vocálico, uma vez que o aluno passa a representar cada sílaba por uma letra, a vogal. Na sequência, o ensino das consoantes tem como finalidade treinar a aquisição da hipótese silábico-alfabética da escrita em que a criança primeiro passa a perceber que uma sílaba pode ter mais de uma letra, sem precisar de fixar na memória para saber ‘de cor’ as sílabas ou quadros silábicos (memorização). Assim, se trabalhada a compreensão da sílaba a partir da sua pronuncia e articulação de modo que a escrita ou codificação venha a ser a comprovação do que se descodificou. JARDINI (2018) sugere iniciar-se pelas letras de fácil articulação como as consoantes “L”, “P”, “V”, “T”; seguidas de “M”, “B”, “N”, “F” que apresentam alguma dificuldade de articulação; e, “C/Q”, “R”, “G”, “J”, “S”, “X”, “Z” que apresentam alguma dificuldade ortográfica quando comparadas com as demais consoantes. Daqui seguem as restantes combinações consonantais.

 

Processo de avaliação do desenvolvimento da escrita em alunos do 1º ciclo

Nos testes observados e nas entrevistas percebeu-se que na avaliação diagnóstica e nas restantes se dá maior ênfase ao treino grafo-motor e não se confere a devida importância ao processamento auditivo dos alunos no sentido de aferir se o aluno consegue descodificar os sons ao interpretar se o que se lhe apresenta possui determinado som ou sequência temporal de sons numa palavra, ou a ainda a diferenciação de sons que tem o mesmo ponto ou modo de articulação. Não fazemos alusão à quantidade auditiva cujo diagnóstico se reserva ao Otorrinolaringologista mas sim ao nível qualitativo da descriminação em função do processamento auditivo no cérebro da criança. Os fonoaudiólogos ou terapeutas da fala são os profissionais melhor indicados para diagnósticos da qualidade auditiva, entretanto muitos deles sugerem que os professores realizem ao seu nível testes para perceber se ainda é ou não preciso mais treino do processamento auditivo que propicie um desenvolvimento a nível da compreensão dos segmentos fonológicos que resultarão numa melhor compreensão do SEA e seu uso quer a nível receptivo como expressivo.

Felizmente as entrevistadas referiram que com o resultado das avaliações reforçam nas aulas as aprendizagens não adquiridas pelos alunos, ou seja, o que os alunos erram; além disso, as entrevistadas mencionaram que reforçam a atenção nos alunos que não se saem bem nas avaliações, atestando sua percepção de que os resultados das avaliações são importantes para direccionar os passos subsequentes fazendo com que a “avaliação deixe de ser um momento final do processo educativo” (JARDINI, 2011) mas se torne num “processo interactivo, através do qual educando e educadores aprendem sobre si mesmos e sobre a realidade escolar no acto próprio da avaliação” (idem).

Assim as entrevistadas percebem que não se deseja uma avaliação autoritária que assuma a responsabilidade pelo diagnóstico do desempenho do aluno e a partir daí tomarem-se decisões fora do alcance mas sim medidas de mediação em relação aos objectivos não alcançados; entretanto tais mediações são vistas pelas professoras somente no âmbito de cópias e ditados, reforçando os treinos motores, o que nem sempre tem trazido bons resultados uma vez ignorados os aspectos de consciência fonológica.

Aliada à questão fonológica é também importante considerar que as etapas psicogenéticas da escrita explicadas por Emília Ferreiro são de completo desconhecimento das entrevistadas uma vez que elas somente referiram que o processo da leitura iniciava pela cópia ou pelo conhecimento do alfabeto ou ainda pela escrita das formas das letras. As professoras afirmaram não saber o que seria uma hipótese de escrita pois nunca tinham ouvido falar sobre os níveis de construção da escrita nem das fases do desenvolvimento fonológico. Ora, como exposto anteriormente as hipóteses de escrita são fases pelas quais as crianças passam, sem excepção, como sujeitos da construção da escrita; assim não são erros e devem ser mediadas.

Se a “avaliação deve sempre servir para redimensionar o planeamento do professor e subsidiar o fazer pedagógico” (JARDINI, 2011) questiona-se o subsídio que a mesma vai trazer ao professor que não entende o processo da aquisição da escrita. Conforme as entrevistadas, a forma de superação das insuficiências na escrita dos alunos resumem-se em fazer copias e ditados; isto reforça a ideia de que sua intervenção após a avaliação não é construtivista pois desconsidera os esquemas (a real hipótese de escrita) e impõe o saber do professor centralizando a aula no professor.

As entrevistadas referiram que para a primeira avaliação diagnóstica usam o ditado, o teste oral e a cópia; esta postura se ajusta ao preconizado pelos documentos normativos e a bibliografia que versa sobre o diagnóstico inicial do processo da escrita. Entretanto o modo como a primeira avaliação diagnostica é descrita pelas professoras, pelo facto do seu desconhecimento das etapas psicogenéticas da escrita, não se ajusta ao que se postula pela proposta construtivista. Elas referem que mandam os alunos para escrever algo no quadro ou ler algo em voz alta, ou ainda escrever no caderno; porém os critérios da elaboração dos exercícios não são claros nem a relevância dos resultados da avaliação diagnostica feita.

Quando olhada a bibliografia a respeito da avaliação diagnostica da escrita, as chamadas sondagens, nota-se a as etapas psicogenéticas da escrita permeiam tanto os critérios de sua elaboração quanto o uso dos seus resultados. O conhecimento do processo de construção da escrita por parte dos professores faria com que suas avaliações diagnósticas tivessem algum rumo mais em consonância com os recentes estudos sobre a aquisição do Sistema de Escrita Alfabética, ademais permearia as restantes avaliações sumativas e as formativas rumo a uma aquisição do SEA pelo aluno de forma mais conceptual.

Com a pesquisa realizada foi possível aferir que a modalidade de avaliação da escrita privilegiada pelos professores de Português no 1º ciclo é a avaliação sumativa contrariando a proposta construtivista da necessidade da avaliação contínua que também é sugerida pelo REGEB, podendo esta “ser escrita, oral ou prática e realizar-se em qualquer momento da aula para identificar o nível de aprendizagem dos alunos e planificar medidas correctivas para cada um” (MEC, 2008) bem como as sondagens (avaliação diagnostica) e a proposta do REGEB da “primazia da avaliação formativa, com valorização dos processos de autoavaliação regulada, e sua articulação com os momentos de avaliação” (idem).

Percebe-se que os professores se centram na quantificação contrapondo-se a perspectiva da proposta construtivista em que avaliar é acompanhar e valorizar todo o processo de construção do conhecimento do aluno, sendo que esta avaliação é no âmbito qualitativo e não no quantitativo.

Quanto aos critérios usados pelos professores no processo de avaliação da escrita notou-se que a sua produção tem como base os conteúdos estudados e como matéria os textos e réplica de exercícios do livro do aluno fundamentalmente na expressão gráfica das letras. Esta postura, tal como referido na análise dos dados, apresenta um desajuste em relação ao postulado na teoria da Psicogénese da Escrita uma vez que não são consideradas as hipóteses da escrita dos alunos, centrando assim a aula no professor e causando uma exclusão na escola em relação aos alunos em hipóteses anteriores aos mais realizados; como aponta SOARES (1989) a exclusão escolar não se aplica somente aos que estão fora da escola, mas também àqueles que não logram êxito na trajectória escolar, os que mesmo estando nela não aprendem. As práticas de avaliação no 1º ciclo não apresentam nenhuma relação com as etapas psicogenéticas da escrita dos alunos, pelo já explicado ao longo desta pesquisa.

 

Conclusão

Com as duas pesquisas conferimos que muitos professores demonstram na sua prática algum domínio geral sobre os saberes da formação profissional, sobretudo da formação inicial. Revelam também insuficientes saberes disciplinares no sentido do conhecimento envolvido no processo de aquisição do sistema notacional da escrita alfabética e ortográfica. Ainda prevalece a aparência de que muitos professores não dominam os saberes curriculares, concretamente, os programas do ensino primário cuja revisão foi feita em 2015. A primazia recai sobre os saberes experienciais resultantes do próprio exercício da docência, mas sem a componente de partilha entre os professores, quer na componente de leccionação como na da avaliação da leitura e escrita dos alunos.

O acima citado Método das Boquinhas® foi desenvolvido considerando a díade saberes e praticas docentes na alfabetização pois toda a teoria sobre o ensino da leitura e escrita aparece bem fundamentada nos cursos do método Fonovisuoarticulatório, por um lado, e o processo da aprendizagem da leitura e escrita é orientado por meio de práticas e exercícios que respeitam o nível de desenvolvimento dos aprendentes, respeitando suas hipóteses de escrita e oferecendo estratégias de mediação para cada erro possível ao longo do processo. Se a inclusão de conteúdos de neurociência e da Psicogénese da escrita for algo que pela natureza das mudanças dos currículos de formação de professores for algo moroso e subordinado a procedimentos burocráticos que tornarão lento o inicio de sua efectivação, os professores em exercício podem aprender e aprofundar tais conceitos nos cursos que Boquinhas® oferece em regime EAD e presencial ou semi-presencial para que a formação dos professores primários se ajuste ao seu trabalho específico e concreto em sala de aulas. Assim, o método das Boquinhas® pode ser um aliado do professor durante o ensino e a avaliação da leitura e da escrita que pode permitir maior inclusão e apreensão do código escrito com mais autonomia e participação das crianças moçambicanas.

 

Referências bibliográficas

AJEJD. Associação Jardins Escolas João de Deus. [online] Disponível na Internet via WWW. URL:http://www.joaodeus.com/associacao/detalhe.asp?id=7.Última actualização em10 de Janeiro de 2011.

BRITES, L. O que se aprende primeiro: Ler ou Escrever? Neurosaber. [online] Disponível na Internet via WWW. URL: https://www.youtube.com/watch?v=jx5g7R5Tv4A. Última actualização em 14 de Novembro de 2017.

GOMES, Carla P. Semedo. O Ensino da Leitura no Processo de Ensino Aprendizagem da Lingua Portuguesa no 2ᵒ ciclo: Práticas e Concepções. Monografia, 2009.

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VIANA, F. L. & TEIXIERA, M. Aprender a ler – da aprendizagem informal à aprendizagem formal. Porto: Edições ASA. 2002.

 

[1] Licenciado em Ensino Básico na Universidade Pedagógica-Quelimane; Professor Primário na EPC Tomba de Água e EPC Pakiba em Mocuba; Multiplicador do Método das Boquinhas; correio electrónico: [email protected]

[2] Licenciada em Ensino Básico na Universidade Pedagógica-Quelimane; Professora na EPC Mangulamelo e EPC Pakiba em Mocuba; correio electrónico: [email protected]

[3] Escola Primária Completa