O estudo e reflexão sobre as questões levantadas, pertinentemente, pela Filosofia, por vezes, incomodam, principalmente, aqueles que nos últimos séculos a têm desvalorizado, menosprezado e tentado eliminá-la, contudo, dois milénios e meio de vida, de intervenção, de intromissão responsável noutros domínios, garantem a sua credibilidade, pelo menos no que respeita à discussão dos problemas que afetam o homem: individualmente considerado; e toda a sociedade em geral, independentemente das culturas, das civilizações, das religiões. A Filosofia é transversal à humanidade e, talvez, também por isso mesmo, suscite polémicas, ódios, eventualmente, a sua própria negação.

Num mundo extremamente agressivo, materialista, rápido e praticamente incontrolado, a cultura vigente dos poderes: ter, dominar e ostentar, sobrepõe-se a outros valores e situações de vida e, sendo assim: «A Filosofia não enche a nossa carteira, não nos ergue às dignidades do Estado, é até bastante descuidosa destas coisas. Mas de que vale engordar a carteira, subir a altos postos e permanecer na ignorância ingénua, desapetrechado de espírito, brutal na conduta, instável no carácter, caótico nos desejos e cegamente infeliz? A maturidade é tudo. Talvez que a Filosofia nos dê, se lhe formos fiéis, uma sadia unidade de alma. Somos negligentes e contraditórios no nosso pensar. Talvez ela possa classificar-nos, dar-nos coerência, libertar-nos da fé e dos desejos contraditórios.» (DURANT, 1988:7).

Pretender melhorar, significativamente, o mundo apenas com a intervenção filosófica seria uma utopia, que poucos aceitariam, que alguma vez se tornasse realidade; defender a Filosofia como uma espécie de panaceia para todos os males, revelaria uma ingenuidade próxima do ridículo; garantir que a Filosofia possa substituir, com êxito, a Ciência e a Técnica e quaisquer outros conhecimentos, constituiria uma atitude dogmática, incompatível com os valores humanistas de humildade, tolerância e de interdisciplinaridade; impor o estudo da Filosofia, nos seus diversos ramos, como um saber unificado e exclusivo para o sucesso da humanidade, revelaria hegemonia filosófica e paralisação do avanço, inovação e progresso das ciências em geral; colocar a Filosofia no centro do Universo, numa posição de absoluto geocentrismo, seria endeusar um conhecimento que reduziria tudo a nada, ou, com um pouco mais de otimismo, tudo lhe ficaria subordinado, inclusive, Deus.

Seguramente que a Filosofia não é nada disto e os filósofos não querem, nunca o manifestaram e pensa-se que jamais o evidenciarão, que se enclausure, numa redoma dogmática, que conduziria à morte intelectual do homem, porque: Filosofia é vida, é contestação, é democracia; liberdade, igualdade e fraternidade. Filosofia enquanto pensamento livre, alternativa, crítica, dúvida metódica.

Filosofia na origem do pensamento visionário, utópico, mas também realidade, pragmatismo e construção ideológica de sistemas, valores e princípios. Filosofia do comportamento ético-moral, da fixação de regras deontológicas. Enfim, Filosofia como companheira da ciência, da técnica, da tecnologia, da religião e da arte. Filosofia como marca indelével da pessoa humana.

A Filosofia enquanto processo para ensinar a pensar, naturalmente que é insuficiente para resolver os diferentes e múltiplos problemas, que afetam a humanidade contemporânea, todavia, o seu contributo, num contexto interdisciplinar, não deve, em circunstância alguma, ser desprezado ou recusado, porque: «Não há Filosofia verdadeira ou falsa, mas todas as filosofias devem aceder a um certo tipo de verdade, oferecerem-se-nos como uma possibilidade de vida.» (MALHERBE e GAUDIN, 2001:156).

A humanidade vive atormentada pelas muitas incertezas que envolvem não só a vida concreta e terrena do homem, mas, principalmente, quanto ao seu destino e fim último, para lá da sua vivência material. Diversas situações circundam, inexplicavelmente, o homem, uma ou mais vezes ao longo da sua existência, sem que ele possa descobrir a origem de tais situações, utilizando os recursos da ciência, da técnica e dos meios mais sofisticados ao seu dispor.

 A angústia, o sofrimento e a doença apoderam-se do ser humano que, sistematicamente, recorre à ciência positivista e a processos de diagnóstico, também estes validados pela ciência e aplicados pela técnica, sem, contudo, conseguir a cura para os males invisíveis que o conduzem a uma morte lenta, quantas vezes, sem cuidar de aprofundar uma reflexão sobre os sintomas que lhe estão mais acessíveis.

O homem tem de acreditar na vida, defender a vida em quaisquer contextos, refletir nos prazeres e nos sofrimentos que a vida proporciona, afinal, dar um sentido à vida.

Este comportamento não se adquire pelos fármacos, pela ingestão e/ou aplicação de quaisquer produtos químicos e/ou bionaturais, na medida em que: «Todo um esforço da consciência filosófica na busca do sentido das coisas tem, de fato, a finalidade de compreender de maneira integrada o próprio sentido da existência do homem. Portanto, o esforço despendido pela consciência no seu refletir filosófico não é só mero diletantismo intelectual, nem puro desvario ideológico, nem tentativa de representação do mundo para fins pragmáticos. É antes a busca insistente do significado mais profundo da existência humana, sem dúvida alguma para torná-la mais adequada em si mesma.» (SEVERINO, 1999:23).

A vida humana, nas suas múltiplas dimensões existenciais, pragmática e algo misteriosa, principalmente quanto ao seu sentido e fim último, deverá merecer, por parte de toda a sociedade, uma cuidadosa avaliação, e também uma reprogramação consentânea não só com a dignidade da pessoa, como ainda no que respeita ao exercício de atividades que proporcionem prazer, bem-estar, vida-boa.

É necessário que cada pessoa, cada família, cada comunidade e as diversas sociedades em geral, encabeçadas por responsáveis moderados, verdadeiros defensores dos direitos que a cada indivíduo pertencem, como também executores exemplares dos deveres que, igualmente, cabe cumprir, assumam as tarefas que contribuam para a dignificação da vida humana.

Benefícios-Obrigações, Direitos-Deveres, são os polos que devem balizar toda a atividade humana, para que uma existência pacífica, feliz e de realizações benéficas seja possível. Para que uma vida humana se concretize plenamente, pela positiva, torna-se imperioso aprofundar hábitos de reflexão, de estudo, de interiorização serena de valores referenciais dos mais altos ideais.

 A vida para uma existência feliz, independentemente do conceito de felicidade que se defenda, passa, inevitavelmente, entre outras possibilidades, por uma filosofia de vida, no sentido em que estabelece princípios, valores, sentimentos, emoções, regras, objetivos e uma avaliação contínua do processo que se implementar, a partir de um projeto existencial humanista.

Um tal projeto não pode ignorar a cumplicidade que se deve estabelecer entre a Filosofia e a Democracia, esta aqui assumida como um sistema político de liberdade, igualdade, fraternidade e justiça social, porque: «Não há democracia sem filosofia (os regimes socialistas impunham uma filosofia e proibiam o filosofar), mas também não há filosofia sem democracia. Isto lembra-nos o facto de que a filosofia não é uma criação ex-nihilo, que procede e depende de um longo processo. Durante toda a sua história, ou seja, combates (não se deve esquecer que Sócrates foi condenado à morte pela cidade), a filosofia não parou de renovar o pacto com e pela democracia.» (MALHERBE e GAUDIN, 2001:164).

E se o binómio Direitos-Deveres é fundamental para a fruição de uma vida digna, baseada no respeito pelos concidadãos, identicamente importante para uma vida responsável, e ativa, é a harmonia e cooperação entre a Filosofia e a Democracia. Existem sempre as duas faces de uma qualquer situação.

Uma vida equilibrada não dispensa a reflexão, como pressupõe o exercício e a participação na atividade política democrática, no seio do povo, com o povo e para o povo. Praticamente, todos os problemas que afetam a existência humana, coletivamente considerada e/ou individualmente analisada, encontram a solução nas decisões políticas, maduramente ponderadas, refletidas e avaliadas.

Os recursos, os meios, as metodologias encontram-se numa profunda, justa e adequada reflexão sobre cada situação. Filosofia e Democracia, Ciência e Técnica, devem, portanto, continuar a trabalhar em conjunto, visando objetivos racionais, exequíveis de serem atingidos e potencializadores para uma vida-boa.

Tão importante como os bens materiais artificiais, idealizados, fabricados, usufruídos e consumidos pela humanidade – hospitais, escolas, estradas, pontes, edifícios vários, ciência em geral, técnica e tecnologia, equipamentos e riqueza financeira –; são os bens espirituais – tranquilidade, benignidade, virtualidade, santidade, Deus –; os valores imateriais – paz, justiça, dignidade, liberdade, solidariedade – e também os sentimentos que levam às ações mais altruístas - caridade, compaixão, amor, dádiva, abnegação.

Naturalmente que apenas se invocam alguns exemplos, porque o que é verdadeiramente necessário é que: todos em geral; e cada um em particular; tenham consciência que é imprescindível aprofundar e aplicar uma sabedoria prudente do saber-viver-bem, o que, tal como qualquer valor, impõe limites, como por exemplo: o valor liberdade tem limites, porque de contrário, a liberdade de uns só seria exercida quando acabasse a de outros.

 

 

Bibliografia

 

 

DURANT, Will. Filosofia da Vida. Os Problemas Filosóficos da Existência Humana, Trad. Monteiro Lobato, Lisboa: Livros do Brasil. 1988.

MALHERBE, Michel, e GAUDIN, Philippe. As Filosofias da Humanidade. Trad. Ana Rabaço, Lisboa: Instituto Piaget, 2001. pp. 164-170.

SEVERINO, Antônio Joaquim. A Filosofia Contemporânea do Brasil, Petrópolis:

Vozes. 1999

 

 

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo

 

Presidente do Núcleo Académico de Letras e Artes de Portugal