ROMA, POLÍTICA E ESPETACULARIZAÇÃO

Kaique Vieira Nunes[1]

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Resumo: A sociedade romana, em suas distintas fases (Monarquia, República e Império) apresenta também distintas formas de organização social e política que ao longo dessas transformações vai moldando o pensamento dos indivíduos em relação ao governo exercido por seus representantes. Essa assimilação dos ideais dos governantes por parte do povo e a forma como estes interpretam o poder político, econômico e religioso, os costumes e forma de vida tanto dos nobres aristocratas quanto da plebe, será tema de produções artísticas na própria Antiguidade e também na contemporaneidade.

Abstract: The Roman society in its different phases (Monarchy, Republic, and Empire) also presents different forms of social and political organization that over these changes will shape the thinking of individuals in relation to the rule by their representatives. This assimilation of the ideals of the rulers by the people and the way they interpret the political, economic and religious power, customs and way of life of both the noble aristocrats as the plebs, will be the subject of artistic production in antiquity itself and also in contemporary.

Palavras–chave: Roma, Política, Espetacularização, Interpretação.

1. DO TRIUNFO DE CESAR

Muitas são as formas de espetacularização dos eventos políticos e sociais atribuídos à Roma, entre os quais destaca-se o Triunfo de Cesar ainda durante a República. Segundo a historiografia, após a extraordinária campanha militar de Julio Cesar na Gália e seu retorno como general vitorioso lhe deu status entre os militares e a admiração do povo, o que consequentemente foi fundamental para sua ascensão à posição de Ditador de acordo com termo romano da época. Desse modo, se fazendo da glória conquistada, além da habilidade política e prestígio militar, Cesar dá início a uma nova fase nas formas de governo da República.

Tais eventos em torno da chegada de Cesar a Roma e ao poder, foi dramatizada na série de TV “Roma” da HBO ilustrando alguns fatores que foram determinantes para a aceitação e apoio do povo à sua pretensão de estar dentro do quadro político e “limpar o Senado” de sua decadência. Nesse contexto ficcional apresentado na série, a forma como Cesar chega à cidade e desfila pelas ruas de Roma é repleta de um simbolismo próprio onde o imaginário romano era instigado por suas crenças e arquétipos da cultura clássica. A representação de Julio Cesar com vestimentas magnificentes, rosto pintado de vermelho, a coroa de folhas de louro e as jóias, dão ao mesmo uma aparência divina, mais especificamente do deus Júpiter, sendo ovacionado pelo povo e seguindo com suas legiões marchando sobre a cidade de Roma onde executa Vercingetórix, o Rei dos gauleses, ao público presente.

Entrementes, o episódio que representa o Triunfo de Cesar sobre os gauleses em sua missão civilizadora e pela glória de Roma, pode ser também interpretado como o momento em que o Senado começa a temer seus generais no sentido de que estes adquiriam cada vez mais influência e poder e representavam um risco aos interesses dos Patrícios e um desconforto entre os senadores. Entretanto, não cabe afirmar que Cesar tinha somente a motivação de ser o salvador do povo romano embora fosse assim visto por eles. Ao passo que o Senado corrupto e decadente já não estava conseguindo exercer de forma satisfatória a administração da República, abre-se essa brecha para o surgimento uma nova forma política ou pelo menos de uma nova figura de poder (com Julio Cesar) que chamarei de proto-imperador.

“Eu desejo que o Senado seja formado pelos melhores homens da Itália, não só pelos velhos e ricos de Roma.” [2]

O trecho acima, assim como outros diálogos da série, mostra um Julio Cesar preocupado em promover mudanças na estrutura do Senado, uma verdadeira reforma política que em tese seria para garantir a todos os cidadãos e não só para os poucos privilegiados “paz, justiça e terras” o que obviamente não agradava aos senadores. Contudo, o Senado temeroso em perder de vez sua força política e ter seus interesses atrapalhados pela figura do proto-imperador, trata então de assegurar a permanência da República em seus moldes por meio do assassínio de Julio Cesar. Essa providência tomada pelos senadores adiou temporariamente a transição de Roma para Império, mas deixou premissas para que posteriormente um Imperador romano de fato venha a governar: Octávio Augusto.

Seria todo esse aparato representativo desenvolvido por Cesar um meio de conseguir que o povo o tenha como governante digno e salvador de Roma? Pode-se considerar esse acontecimento uma forma do pão e circo? Sim. Se levarmos em conta o sentido dado ao termo ou sua significação na sociedade romana antiga segundo Paul Veyne[3]. No entanto, deve-se atentar para tal colocação que o sentido do pão e circo nesse caso não está relacionado a uma forma de alienação ou condicionamento coletivo para que se aceitasse Cesar como Ditador. O que ocorre é que tal representação (desfile pela cidade, festividades, execução do rei gaulês) serviu de fato para afirmar os laços e intenções do mesmo perante Roma e seus cidadãos, que o receberam como herói capaz de frear a desordem social da República.

2. DA RELAÇÃO DO POVO ROMANO COM A POLÍTICA

Certamente a sociedade romana tinha aspirações políticas e fazia suas reivindicações ao Senado na esperança de serem atendidas. No entanto, a participação efetiva do poder era privilégio de poucos, dos Patrícios em sua maioria. Desse modo, essa exclusão quase total da plebe das decisões e assuntos públicos, salvo a presença dos tribunas que os representava, nos dá uma leitura socioeconômica totalmente desfavorável a esse seguimento social da época, o que provavelmente causou revoltas e a busca por melhores condições de vida e maior presença política dos mesmos. Se por um lado recorria-se aos cônsules e senadores a fim de que fossem sanadas necessidades públicas da cidade, por outro lado, a população não tinha interesse e muito menos instrução para se colocar em posição de participar ativamente da legislação. Nesse sentido, Paul Veyne assinala que “o interesse político consiste mais freqüentemente em desejar que o governo faça uma boa política do que em desejar que cada um a faça.” [4]

Observa-se portanto, que os regimes políticos sejam autoritários ou ditos democráticos, apresentam uma relação assimétrica entre governantes e governados que se caracteriza pela não-participação popular na política, decorrente segundo Veyne, da despolitização e apolititismo natural dos indivíduos. Vale deixar claro que para o autor, a despolitização não é condicionada pelos governantes por meio do pão e circo já citado, mas simplesmente porque os governados estão “a deixar as coisas públicas nas mãos dos governantes”.  Sendo assim, o governo exerce o poder da forma que lhe for da vontade já que não se tem uma contestação efetiva por parte do povo.

Ás vezes, por um momento, podemos ver com nossos próprios olhos o circo perseguir a política, e que essa substituição não seja uma ficção explicativa, mas que acontece no tempo real. Revoluções poderiam ser interrompidas em nossa sociedade durante um final de semana[5].

Trazendo para um contexto atual da política, indubitavelmente os governos se aproveitam do apolitismo para se fazerem eternos no poder. A troca do voto pelo pão e circo é real na sociedade, e a partir dos mecanismos midiáticos que estão à disposição dos governantes, sevem para manter a população nesse ciclo de despolitização e alienação constante. Nesse caso sim, a despolitização é condicionada a interesse de uma classe dominante. No entanto, não cabe aqui generalizar a condição dos indivíduos de pensarem politicamente, mas considerar a política nos moldes no qual se encontra como um espaço onde poucos privilegiados têm voz, como tem sido desde seu surgimento. Embora se tenha possibilidade de protesto e outros meios legais de interferência política da população, ainda é clara a dissimetria entre Estado e Cidadão.

3. DA CEIA DE TRIMALQUIÃO

A má distribuição de renda sempre foi uma questão real nas sociedades antigas. Em Roma o luxo e a riqueza eram celebradas por parte dos nobres e aristocratas da corte. Nas partes baixas da cidade, a pobreza e a fome estavam presentes na vida do povo. Pode-se dizer que uma decadência social se tornava cada vez mais expressiva na cidade devido à concentração de renda nas mãos de poucos e os preços altíssimos, a política acaba por torna-se praticamente uma guerra civil entre os romanos.

Em um cenário narrado na obra literária Satiricon de Petrônio, salta aos olhos a pomposidade e riqueza quase surreal apresentada no capítulo que trata da Ceia de Trimalquião, personagem rico, morador da Itália meridional que oferece um banquete público repleto de pormenores luxuosos. Em tal evento, outros nobres ricos se apresentam e falam de suas fortunas, comércio, terras e do declínio da sociedade romana na visão saudosista dos mesmos além do desapego religioso que lhes é observado por consequência da ganância. No decorrer da cena, o anfitrião da festa é categorizado pelos convidados como homem de bem e que esbanja tanto prestigio por “possui extensões tão vastas de terras que um falcão poderia voar sobre elas à vontade; e isso sem contar o dinheiro que produz seu dinheiro! Somente no sótão do seu porteiro há mais prata do que no patrimônio de qualquer outra pessoa.” [6]

É verdade que há uma ostentação da riqueza por parte de Trimalquião e isso se caracteriza de forma clara na cena do banquete. Entretanto, essa espetacularização de tal acontecimento pode nos induzir de maneira errônea a uma interpretação simplista dessa relação entre classes na Roma Antiga. Veyne esclarece alguns princípios políticos e sociais da Antiguidade como o evergetismo romano que consistia em fazer doações à comunidade, consertar edifícios públicos, oferecer banquetes etc, que era uma forma de obrigação social com a cidade e de consequentemente o nobre ou quem quer que tenha feito as “boas ações” seja visto com, respeito e admiração pelo corpo social que forma o Império. Desse modo, segundo Veyne, a Ceia de Trimalquião não se reduz a um simples exercício ostentatório, de mostra de riqueza - embora também o seja - mas a um modo de afirmar seu prestígio como Nobre Cidadão romano.

Obviamente a forma como é narrado tal banquete com o número de escravos a disposição, a quantidade exorbitante de comidas, utensílios de metais preciosos etc, nos leva a uma concepção de que o pomposo personagem anfitrião, de certo modo, pode está apenas usando uma forma de pão e circo para afirmar sua condição social superior perante os demais. É isso que Veyne tenta desmitificar em sua obra Pão e Circo. O autor faz analogia a um trecho do texto de  Max Weber em que o mesmo afirma que o luxo “é um dos meios que ela (classe feudal) possui para se afirmar socialmente” configurando uma compreensão limitada de tais relações sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações entre os distintos seguimentos sociais de Roma, assim como de outras sociedades da Antiguidade clássica são ainda alvo de interpretações simplistas. A própria Idade Média também sofreu e sofre com tais preconceitos em torno das concepções típicas de seu período histórico por parte dos ditos “modernos” e que fazem da historiografia instrumento de desinformação.

Autores como Paul Veyne, Jacques Le goff entre tantos outros que se propõe a desmitificar e esclarecer os termos que configuram a complexidade das relações humanas no âmbito social, político, religioso nos tempos históricos, são de fundamental importância na formação crítica do historiador. Percebo nesse exercício hermenêutico de entender as sociedades antigas um passo ou uma chave para a compreensão das relações atuais ocorrentes na sociedade em que vivo.

 

REFERÊNCIAS

PETRÔNIO. Satyricon. Trad. e notas de Miguel Ruas; Introdução de Giulio Davide Leoni. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1980.

Rome. Prod. Bruno Heller, John Milius e Willian J. MacDonald. Estados Unidos e Reino Unido. HBO e BBC, 2005. 1080i (HDTV). 55 min.

VEYNE, Paul. Panem et circenses e conspicuous consumption. In Pão e Circo. São Paulo, Ed. UNESP, 2015. P 82-102.



[1] Acadêmico do curso de História da universidade Estadual de Goiás.

[2] Fala do personagem Julio Cesar na série Roma Ep 12 “Triumph”

[3] O autor expõe o termo pão e circo em sua análise.

[4] Paul Veyne, Pão e Circo. p 84.

[5] Pão e Circo, p 85

[6] Satiricon, p 45