Resumo: Nas férias,  como nos quartos de dormir, o código draconiano da dominação consumista.

Ritinha ainda consegue repousar

Fim de férias. De volta às aulas, a clássica interpelação: conte para nós o que você fez nestas férias.

- Ah! Fomos conhecer a Disneylândia.

- Ah! Fizemos um tour pela Europa. 

- Ah! Estivemos filmando baleias em alto mar.

Morrerá de vergonha diante da classe a criatura que não tiver uma boa história para contar.

- E você, Ritinha, o que fez nestas férias?

Ritinha, uma gentil adolescente de doze anos, responde:

- Nestas férias? Bem, nós, quero dizer, a gente acabou ficando em casa...

O constrangimento decorre do remorso de haver incorrido em falta grave, capitulada no código draconiano dos preceitos consumistas.

Tempo houve em que estar de férias significava simplesmente subtrair ao período letivo o cerceamento da disciplina escolar. Feito isto, a vida prosseguia ao sabor das diretrizes naturais. Comia-se na hora de comer, dormia-se na hora de dormir, amava-se na hora de amar. O que a meninada fazia durante o interregno  não interessava a ninguém.   

Há cinquenta anos, Ritinha não teria amargado nenhum desconforto por ter permanecido em casa durante as férias.

O remorso começou a aparecer quando o lapso vacante - aquela porção romântica da liberdade individual -  sofreu o mapeamento consumista e foi incorporada aos domínios da virtualidade, sob o rigoroso controle da mídia. 

Hoje, cabe perguntar, Ritinha é livre para fazer o que bem entende durante as férias? De jeito nenhum.

Pode até fazer, mas pagará caro pela insubordinação.

Hoje a imagem das férias está visceralmente ligada a um deslocamento.

A virtualidade considera inabitável durante as férias o lugar onde a pessoa mora.

Em casa, não importa quão aprazível seja, o consumo cai a níveis perigosos. Sem vacilar, o sistema expulsa o morador dali, introduzindo fumaça pela chaminé da lareira. Dito de outro modo, o sistema convence o morador de que naqueles dias  só fica em casa quem já morreu, ou prefere  agonizar miseravelmente em profunda depressão.

Quando a família já não é família, mas um acidente de percurso, um apanhado típico da mentalidade pós-moderna, cujo lema reza “cada um por si e salve-me quem puder”, o sistema deita e rola. Numa correria desenfreada, num clima de contagiante  euforia, a debandada é geral. Ninguém fica em casa, cada um toma o seu rumo. O último a sair, quando lembra, apaga a luz.

No extremo oposto, isto é, nos escassos redutos onde famílias improváveis praticam a meditação, ou rezam juntas, o sistema, por motivos óbvios,  fracassa.  Nem chega perto.

Dramática, no entanto, dá mostras de ser a situação nos ambientes onde a sociedade de consumo  ainda não  concluiu sua obra aliciadora, a qual culmina com o esfacelamento da personalidade, se Luc Ferry me empresta este modo de dizer.

A luta da família contra o feroz assédio do invasor pode ser acompanhada através de índices banais como, por exemplo:

- número de TVs instaladas /  número de moradores;

- tempo que as TVs permanecem ligadas / dia;

E o índice assustador da esquizofrenia televisiva, a qual se manifesta nos quartos de dormir, onde uma cama convida ao sono e ao repouso, e um aparelho de TV reivindica o oposto, ou seja,  a vigília e a agitação.

Durma-se com um barulho desses...

No quarto de Ritinha, a nossa gentil  adolescente,  já puseram um aparelho de TV, que ela liga quando se cansa do tablet, do smartphone, e outras maravilhas da tecnologia moderna. Nada obstante, porque ainda não foi totalmente corrompida, ela consegue dormir  e repousar sem grandes conflitos.

Mas, até quando?