A identidade hip hop surge em resposta ao racismo e outras alteridades que se formam quando os jovens do movimento põem em cena suas questões. E sobrevive do acirramento das diferenças, alimentando-se do que o Outro vê de bárbaro, reforçando os estereótipos e reutilizando-os na construção de sua identidade, como uma espécie de elogio da diferença.

 

Maria Fernanda Garcia Macedo

 

 

Não se sabe ao certo, mas a origem do hip hop é geralmente associada ao Bronx, em Nova Iorque. Kool Herc, DJ jamaicano, teria sido o criador do movimento, em meados da década de 1970. Tal procedência é contestada e negada por alguns pesquisadores e representantes do movimento, que alegam ter surgido por volta de 1960, na Jamaica. Gozando de poucas condições financeiras, a população dos guetos ia para as ruas e apreciava músicas em "sound systems", que eram como os trios elétricos que existem no Brasil, mas em proporções bem menores.

A emigração desta novidade musical para América teria ocorrido na década de 1970, quando muitos jamaicanos foram obrigados a abandonar a ilha do Caribe e partir para os Estados Unidos, por problemas econômicos e políticos. O DJ Kool Herc teria sido um dos que foram para os EUA e desembarcou em Nova Iorque, carregando consigo uma ampla experiência em relação ao estrondo excêntrico que brotou na periferia jamaicana. Com a propagação do novo estilo de se produzir música, até o momento desconhecido por lá, começaram a aparecer grupos de Rap por todas as vielas de Nova York. O que não se contesta é que a propagação do movimento para o mundo partiu dos Estados Unidos, talvez pelo seu status de poder econômico que o colocam em situação de referência mundial.

Altercações sobre a descendência do hip hop parecem sinalizar uma inconformidade por parte das classes marginais em ter a origem do movimento ligado aos Estados Unidos, preferindo atrelá-la à própria origem da raça negra: a África. Isso soa como reivindicação de domínio sobre o “produto”.

Considerando a fragmentação da pós-modernidade e as dimensões alcançadas pelo movimento em esferas diversificadas, o desvendamento das origens do hip hop nos parece irrelevante. Importa que, desde sempre, o escopo essencial do hip hop é a composição de múltiplos discursos sobre as carências dos menos favorecidos, os problemas econômicos vividos por essa gente, a violência nos subúrbios, estando sempre ligado aos anseios de negros e pobres das periferias urbanas.

Apesar de, no Brasil, o hip hop ter-se desenvolvido primeiramente em São Paulo, há grandes evoluções do movimento no Rio de Janeiro, em que o hibridismo rítmico tem predominado nesta arte reprodutora de insatisfações.

No Rio de Janeiro, a tendência hip hop é fundir groove com reggae, samba, sons de terreiro de candomblé, da capoeira e funk carioca, misturando em um só estilo todos os sons característicos da cidade e da cultura que o produz. A unidade sonora produzida é resultante de uma gama de sons significantes para a cultura negra (todos os estilos sonoros presentes possuem este referencial) e carioca.

(MACEDO, 2003)

O movimento paulistano, porém, renega essa mistura, alegando que há nela uma descaracterização do movimento. Mas tudo o que se combina, na composição de um hip hop plural, parece visar aos mesmos propósitos de denúncia e reivindicação daquele estilo que se propagou a partir do Brooklin.

O hip hop é uma cultura dividida em quatro elementos: mc (espécie de mestre de cerimônias), rap (expressão verbo-musical)[1], graffiti (arte plástica, expressa por desenhos coloridos feitos por grafiteiros, nas ruas das cidades) e break (dança). A princípio, destacaremos o rap, mas sempre citando os outros elementos como coconstrutores de imagens.

O rap é a manifestação musical e poética do hip hop. Através do rap, evidenciam-se as características que identificam o hip hop enquanto movimento político (em processo de organização) e sócio-cultural, ou simplesmente cultura hip hop, como enfatizam alguns, por criar uma poética do compromisso: o compromisso com a transformação do estado de miséria e de violência às quais vivem submetidos os moradores das comunidades da periferia, e das favelas das grandes cidades.

(ARAUJO, 2003)

Atualmente, o rap incorporou-se no cenário musical brasileiro. O ritmo vem postergando preconceitos e saindo da periferia para tomar o grande público, com seus alvoroços de autoafirmação e exigência do acesso a direitos de cidadão. Inúmeros discos de rap são lançados anualmente, sem que o movimento tenha deixado esvair sua característica de denunciar injustiças. Há ainda (não tanto quanto há tempos) uma tentativa de silenciamento desse tipo de manifestação, para que se evitem os transtornos que provoca, com vistas a alimentar uma ordem social condizente com as aspirações de um eixo central que direciona a manutenção de realidades favoráveis ao sistema.

Hoje em dia, têm-se como novos simpatizantes do movimento muitos jovens de classe média. Alguns chegam a adentrar as favelas, outros frequentam boates em zonas privilegiadas, onde o hip hop é a principal atração. Isso prova que, entre a juventude, o preconceito está dando lugar à vontade de se deixar levar por um ritmo contagiante? Ou o interesse desses jovens está muito mais associado ao que esses ambientes proporcionam? Afinal, eles não vivem a realidade retratada nas canções!

Se a identidade não pode estar separada da sua narrativa, o rap potencializa essa construção, fazendo dela não apenas uma forma de consolidação de identidade, mas também de inclusão, gerando uma nova forma de expressão artística que não se descola de seu produtor, nem do território onde é produzida. O território é local; a cultura é global. Capão Redondo e zulu nation , no Brasil e no ciberespaço, os integrantes do movimento hip hop definem-se a partir de seu território, mas cantam para todo o mundo.

(Guimarães, 2007)

           

A citação antecedente remete à composição do rap, uma construção em que a identidade do sujeito se forma pela própria narrativa, como impregnado nela e impregnando-se da mesma. Está, pois, no discurso, nos sons, nas cores, no lugar e no movimento, vinculando-se todos, numa relação de intimidade composicional, de modo que um é compleição do outro. Cada elemento produz sentido acoplado ao outro, devido a uma espécie de constituição hip hopeana que conforma uma unidade, em qualquer espaço do planeta, ainda que as reivindicações sejam locais.

O desprezo em relação aos discursos (re)produzidos em cada ambiente atua como combustível que impulsiona engrenagens de máquinas protestadoras, estruturadas sob um formato artístico. Estar à margem do convencionalmente aceitável pela classe dominante significa ter a voz calada, o soluço abafado e os direitos violados. E é contra esse domínio e a favor de uma reinvenção social que o movimento se coloca.

 

 

[1] A palavra Rap provém da expressão estado-unidense rhythm and poetry, que em português significa ritmo e poesia.