Revolta da Vacina: Costumes populares e o preconceito por trás da vacinação obrigatória.
Bruno de Oliveira Moreno 
Fundação Educacional Unificada Campograndense - FEUC 
 [email protected]

Elanny Suely Brabo de Matos 
Fundação Educacional Unificada Campograndense - FEUC 
 [email protected]


Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a sociedade carioca no início XX, compreender as razões que levaram a população pobre, descendentes de escravos a irem as ruas manifestar sua insatisfação em relação as medidas tomadas pelo recente governo republicano. Analisaremos a questão dos costumes populares, as moradias muito conhecidas como Cortiços e a questão religiosa de matriz afro ainda muito presente ao alvorecer do século XX.
Palavras-chave: Revolta da Vacina, preconceito, costumes populares.
Abstract / Resumen: The present study aims to analyze the society of Rio de Janeiro in the early twentieth century, to understand the reasons that led the poor population, descendants of slaves to go to the streets to express their dissatisfaction with the republican government. We will analyze the question of the popular customs, the houses very well known like Cortiços and the religious question of Afro matrix still very present at the dawn of century XX.
 
 Keywords / Palabras clave: Vaccine revolt, prejudice, popular customs.


INTRODUÇÃO
 O presente trabalho tem como objetivo tratar as relações e repressões do governo republicano instaurado no final do século XIX, e da resistência das diversas populações que habitavam na capital do país, e como esta sociedade se organizou para reagir contra a imposição da vacinação obrigatória, contra a derrubada de cortiços e a proibição dos costumes populares. A Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, ao alvorecer do século XX, é uma revolta que envolverá diversos motivadores, e que a imposição da vacinação foi só um estopim para os populares irem as ruas, quebrando lâmpadas e bondes, reivindicando o que o que acham ser seu direito ainda no início do período republicano.


Nosso objeto de estudo será a população do Rio de Janeiro as vésperas do século XX, na qual possuía uma grande pluralidade cultural e religiosa e como ela se organizará para enfrentar as reformas urbanas e medidas governamentais, que tinham como objetivo “civilizar” e tornar o Rio uma capital moderna, com o preconceito racial mascarado por de trás da atuação governamental e médica do início do século XX. Ao longo do estudo observaremos o Rio de Janeiro como ponto de encontro de diversas culturas e religiões. 


O porto do Rio de Janeiro nos últimos anos de escravidão, por volta de 1850 a 1888 recebeu números expressivos de escravos Africanos, e escravos vindos do Nordeste com a proibição do tráfico internacional (Chalhoub, 1996). Assim, a dinâmica na capital do Brasil nos fins do século XIX era diferente de qualquer parte do país, neste período, observaremos mudanças nas relações de trabalho, com a presença dos escravos de ganho, os escravos de aluguéis, forros etc. que mudavam o cenário urbano da cidade. As relações sociais, as formas de trabalho no Rio de Janeiro serão fortemente influenciadas pela cultura negra. (Benchimol, 2003) 


Analisaremos um outro (possível) fator motivador para a Revolta da Vacina em 1904, Chalhoub (1996), abordará a questão das práticas culturais negras africanas e afro-brasileira, ainda muito presente no século XX. O estudo das culturas e religiões afros presentes no Rio de Janeiro, abordado por Chalhoub, será de extrema importância para o estudo historiográfico da Revolta da Vacina. Dentro das concepções das matrizes africanas, Omulu seria o orixá curador e difusor das doenças epidêmicas, portanto, não caberia ao governo lidar o caso da doença puramente através do método cientifico e truculento como foi, para os adeptos religiosos, apenas Omulu seria o encarregado de livrar a população do mal (a varíola).


A compreensão sobre a sociedade carioca no século XIX e o no início do século XX será um fator de grande importância para compreender as medidas governamentais de repressão aos costumes e hábitos da população com um preconceito racial e religioso por trás do discurso civilizador. 


O Rio de Janeiro será palco da grande mobilização popular ao alvorecer do século XX, em que se protagonizará a população negra, pobre e excluída do Rio, defendendo seus interesses pessoais, religiosos, morais ou insatisfações. E o “vilão” será o recente governo republicano, que com o objetivo de tornar uma capital salubre, “civilizada”, uma verdadeira capital europeia branca, irá derrubar casas e cortiços, criar leis discriminatórias, proibições de manifestações religiosas (principalmente de origem afro), proibição de jogos ou entretenimento popular, perseguição a trabalhadores ambulantes. (Benchimol, 2003 p 264)


Toda a rua estava cheia de manchas de sangue. Por trás de um montão de paralelepípedos e madeiras um grupo resistia em prodígios de coragem, tornando-se invencível a barreira que encontrava a força no trecho compreendido entre as ruas do Hospício [atual Rua Buenos Aires] e Marechal Floriano Peixoto [atual Avenida Marechal Floriano]. Os combustores da iluminação pública, as vidraças do Tesouro e de outras casas eram espatifadas a pedradas. Os bondes eram virados, arrebentados e incendiados uns, atravessados outros ao longo da rua para servirem de trincheiras. (Sevcenko, 1983, p. 15)

1. Características da sociedade carioca e a influência da escravidão no Rio.  


O final do século XIX é marcado por duas datas importantes, a primeira é a abolição da escravatura em 1888 e o golpe republicano em 1889. A Revolta da Vacina em 1904 será influenciada por estas duas datas, uma por abolir o trabalho escravo, no qual uma pessoa escravizada não desfrutava da liberdade individual, religiosa, política. 


E o golpe republicano no ano seguinte, que pouco mudará a estrutura política e não se preocupará com a sociedade negra que foi excluída por mais de trezentos anos de escravidão. 


Muito pelo contrário, o recente governo republicano a fim de afirmar sua identidade aos moldes positivistas da época, promoverá os símbolos republicanos, a remodelação do espaço urbano “botando a baixo” todo remanescente colonial e imperial que dominava o espaço público, as ruas, os monumentos, as casas, etc. 


O historiador Nicolau Sevcenko (1983), aborda a relação do governo a essas comunidades e como a atuação do governo mascarava uma política discriminatória:


O estilo da repressão assinalado na Revolta da Vacina era indicativo ainda de outros elementos discriminatórios e brutais, ligados à política de contenção e controle das camadas humildes. O aprisionamento arbitrário dos pobres da cidade, a humilhação pelo desnudamento, a fustigação cruenta revela um comportamento sistemático e não casual da autoridade pública. A inspiração desses gestos procede do modelo de tratamento reservado aos escravos e em plena vigência até a Abolição.

Vamos nos ater brevemente aos últimos anos de escravidão no Brasil e como ela se manifestava na capital do Império. O porto do Rio de Janeiro ao longo de sua história, recebeu mais de 2 milhões de pessoas escravizadas vindas da África. No Rio de Janeiro atualmente, há pontos históricos que remetem a este período sombrio, como o Cemitério dos Pretos Novos, também conhecido como Memorial dos Pretos Novos e o Cais do Valongo onde desembarcavam as pessoas escravizadas vindas da África.

O trabalho escravo no Rio de Janeiro do século XIX se manifestava de diferentes formas, o espaço urbano era dominado por escravos postos ao ganho, escravos de aluguéis, forros etc. A cidade era um ponto de encontro onde diferentes ofícios eram exercidos por estas pessoas. Haviam vendedores de frutas, de comida típica, carregadores de água, desentupidores de bueiro, ajudantes de sapateiro e diversas outras profissões. 

O historiador Sérgio Barra (2008) estuda o espaço urbano do Rio entre 1808 e 1821 no qual se aprofunda nas relações de trabalho, no cotidiano dos escravos presentes na capital da Corte, e como a cidade mudou após a chegada de Dom João VI. 

À medida que cidade crescia, e com ela a demanda por serviços, muitos senhores colocavam os seus escravos ao ganho. Esses escravos passavam o dia nas ruas alugando seus serviços, com a obrigação de entregar aos seus senhores uma quantia preestabelecida. (...)Colocar ao ganho escravos deveria representar uma grande oportunidade de lucros, pois o senhor, além de livrar-se dos custos do sustento deste escravo, muitas vezes ainda era mantido pelo trabalho deste nas ruas da cidade. (Barra, 2008 p. 230) 

A escravidão de uma forma indireta, molda o espaço urbano. As ruas da cidade do Rio do século XX, são reflexos nítidos ainda do século XIX, muitas profissões de ex-escravos, como vendedor ambulante de frutas, legumes e objetos, serão empreendidas por negros forros e brancos pobres no Rio.
O reflexo e exclusão da escravidão será permanente a estes grupos, com a instauração da republica poucos terão acesso à educação, acesso à escola, de participar do cenário político da época, tendo assim, que exercer os ofícios de seus ancestrais, ofícios quase sempre relacionados ao trabalho braçal, que é preconizado até os dias de hoje.


Durante a segunda metade do século XIX, observamos através de artistas como Debret, diversas pinturas que retratavam o cotidiano da população carioca desta época. Nas ruas encontravam-se escravos postos ao ganho, escravos de aluguéis, vendedores ambulantes, barbeiros e sangradores. A cidade era dinâmica, não havia uma forma única de trabalho. Segundo o historiador João José Reis (2000). Ele revela que a escravidão não se resumia apenas as fazendas e aos engenhos, Reis aponta que:


A escravidão difundiu-se de tal maneira que a propriedade sobre escravos não se limitava a grandes senhores de engenho, fazendeiro e mineradores. Tanto no campo como na cidade era grande o número de pequenos escravistas, donos de um, dois ou três escravos, trabalhadores na pequena lavoura, nos serviços de rua ou de casa. Por essas características, os escravos marcaram em profundidade os costumes, o imaginário, a cultura e até, através de uma intensa miscigenação, o próprio perfil étnico-racial de nossa população.

Reis, João José In: Mota, Carlos Guilherme. op. cit. p. 245. MOTA, Carlos Guilherme (org). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500 – 2000). Formação. São Paulo, Senac, 2000. 


Concluímos que escravidão africana modificou completamente a cidade do Rio de Janeiro, as faces da escravidão aqui presente não se limitarão as fazendas, minas e engenhos, aqui se cruzará todo tipo de cultura.
 O Rio de Janeiro será o entrecruzamento, onde as culturas da diáspora africana se encontravam com a da cultura indígena, com população pobre, com as relações pessoais, e formação de laços de sociabilidade. Os laços comunitários aqui construídos através da resistência, do sincretismo religioso, marcarão a cidade profundamente tendo suas raízes até hoje vivas, através do samba, do folclore, da culinária e das palavras.


O historiador Luiz Antonio Simas, em seu artigo publicado na revista Z Cultural:  Revista do programa avançado de cultura contemporânea. Dos arredores da praça onze aos terreiros de Oswaldo Cruz: Uma cidade de pequenas Áfricas, 2016. Aborda que: 

Os primeiros governos republicanos incriminaram as diversas manifestações da cultura popular no Rio de Janeiro — quase todas marcadamente vinculadas às Áfricas que existem nas ruas cariocas. Jogar capoeira passou a ser crime pelo Código Penal de 1890 (Dias, 2001), os terreiros de macumba foram sistematicamente reprimidos e a posse de um pandeiro era suficiente para a polícia enquadrar o sambista na lei de repressão à vadiagem, conforme aconteceu com João da Baiana. 


O preconceito por trás da Revolta da Vacina 1904, fica evidentemente claro quando apontamos a permanência e a resistência das culturas africanas no Brasil, o objetivo político e ideológico do governo republicano era bem simples: apagar o passado colonial e promover o embranquecimento cultural e fisiológico. 


Cultural na tentativa de apagar e extirpar todo remanescente da cultura negra, como a proibição da capoeira, perseguição aos candomblés, como as rodas de pernada e batucada na praça XI.  E fisiológica no sentido de promover o ideal embranquecimento, à medida em que as obras do Rio cresciam, aumentavam também o número de imigrantes brancos para ocupar os postos de trabalho e de “embranquecer” esteticamente e culturalmente a cidade do Rio de Janeiro. 


2. O Rio de Janeiro no século XIX e XX.


2.1 As pesquisas médicas e o seu componente racista.


Segundo Chalhoub (1996), durante o século XIX, médicos e higienistas da época estavam preocupados em combater o surto de doenças epidêmicas que faziam centenas de vítimas anos após anos. Os debates em torno das doenças e dos focos de proliferação sempre apontavam a um dado “curioso”, para os médicos e higienistas da época, quase sempre, os culpados pela difusão das doenças eram as classes pobres, as casinhas, os cortiços ou o navio negreiro.


Boa parte dos médicos e higienistas estavam de acordo a respeito dos culpados pelos esculápios: a população negra e pobre da sociedade. Estes eram vítimas preferidas destas autoridades. As teorias médicas da época abriam espaços para discussões sobre como livrar a cidade dos surtos epidêmicos, e como tonar a cidade um espaço salubre para que o branco europeu recém-chegado se mantivesse em bom estado de saúde. 


O historiador Sidney Chalhoub (1996), aborda a questão do preconceito por trás das pesquisas médicas e das reformas urbanas. A medida com que os casos iam ocorrendo com mais frequência, o debate sobre as doenças, principalmente sobre a varíola que matava mais brancos que negros na época, servirá de apoio para medidas autoritárias de “manutenção” do espaço público.  


Chalhoub, em sua obra Cidade Febril: Cortiços e epidemias na corte imperial, aponta que política e as medidas médicas possuíam um componente racista na sua atuação. Assim, segundo Chalhoub, 


Conforme nos aproximamos do fim do século XIX, torna-se cada vez mais óbvio que o pensamento médico e as políticas de saúde pública no Brasil estavam profundamente informados por uma ideologia racial bastante precisa: ao menos Rio de Janeiro e São Paulo, tratava-se de promover o ideal de embranquecimento da população. (Chalhoub 1996, p. 109).


Ao longo de sua obra, Chalhoub disserta sobre como o racismo esteve   presente no serviço de higiene e de “modernização” do Rio de Janeiro. Ele examina com detalhe os objetivos políticos e ideológicos mascarados por uma eventual modernização da capital. 


Sendo assim, o serviço de atuação médica, e os responsáveis pela urbanização do Rio, tinham como objetivo de não somente promover a vacinação e higienização da população do Rio, mas também de coibir os costumes das classes pobres, “classes perigosas”, de segregar e desabrigar a população que morava no centro da capital. 


Em 1893 a demolição do cortiço Cabeça de Porco, marcará para história como uma das primeiras ações do governo em promover a política de urbanização, sanitarização e desalojamento das classes pobres. “O mal habitava no cortiço”, o prefeito Barata Ribeiro foi um verdadeiro “herói”, (Chalhoub, 1996, p.21).


Fica evidente portanto, que o processo de urbanização estava fortemente comprometido em lidar com práticas culturais negras enraizadas na cidade do Rio. Portanto, não podemos cometer erros ou anacronismos, nem todos os médicos possuíam uma intenção maquiavélica, Sidney Chalhoub menciona a importância das campanhas contra os flagelos humanos, ele menciona o caso mais óbvio, que foi a campanha bem-sucedida de Oswaldo Cruz contra a febre amarela. (Chalhoub,1996, p. 66)


Entretanto, não podemos fechar os olhos para o preconceito que estava engendrado por trás do serviço sanitário, de como o governo lidava com a questão da moradia, dos costumes da época, e a imposição da vacinação obrigatória. Isso fica claro quando Chalhoub faz uma análise sobre a saúde pública do Rio de Janeiro entre aproximadamente 1850 e 1920.
Durante esses anos, a tuberculose matou muito mais do que quaisquer das outras doenças epidêmicas. A tuberculose, porém, parecia atacar indiferentemente brancos e negros, nacionais e estrangeiros e, desculpa suprema, era doença extremamente grave até mesmo em Paris, o que nos eximia de qualquer culpa por abrigar a peste. A febre amarela significava basicamente o oposto: além de não acometer em Paris e deflagrar o Rio anualmente, era um verdadeiro flagelo principalmente para os imigrantes. (Chalhoub, 1996 p. 66)


Compreendemos então que o atual governo republicano tinha assuntos sérios para lidar; o caso das doenças que faziam centenas de vítimas todos os anos, urbanizar a cidade, lidar com as moradias populares (como cortiços e estalagens) e estimular a imigração estrangeira. 


O presidente Rodrigues Alves e o prefeito Pereira passos eram os encarregados de promover essas mudanças na capital, um projeto de afirmação do republicanismo, de extirpar os remanescentes da cultura negra do centro da cidade, promover o embranquecimento fisiológico e cultural do Rio através da política de imigração europeia, do incremento espacial urbano como avenidas e ruas, e que para isso será necessária a demolição de diversas moradias populares; entre elas os cortiços (Simas, 2016) Esse episódio ficará conhecido como “bota-a baixo”, pois as reformas do prefeito Pereira Passos, botará abaixo muitas casas, alargará ruas, etc. (Benchimol, 2003, p. 240) 


2.2 As habitações populares e os cortiços.


“A identificação dos cortiços como os focos geradores dos germes da febre amarela foi fato de enorme significado simbólico e político. (...) Na realidade, logo que concluíram que a febre era originária dos cortiços, os higienistas iniciaram uma luta para ampliar ao máximo a abrangência do conceito de cortiço. Acabaram descobrindo que o mal infestava toda a área central da cidade, e passaram a defender planos de transformação radical do espaço urbano.”
 (Chalhoub, 1996, p. 102)


As Reformas Urbanas do Rio ocorreram em conjunto com o processo de vacinação obrigatória, o objetivo do governo era resolver esses dois problemas simultaneamente. À época, o conceito de cortiço era destinado a estalagens, e não havia um padrão de construção correto sobre o que era exatamente um cortiço. 


Chalhoub observa que a partir de então o governo procurará estabelecer o que seria um cortiço. Logo, qualquer casa com algum problema arquitetônico, seja ela baixa, sem janela, no chão batido, úmida ou com muitas pessoas alojadas, já seria o suficiente para a interdição e o desalojamento desta população.


A rigor, um cortiço seria uma habitação coletiva, onde majoritariamente os moradores eram de origem pobre, negros, que moravam no centro, pois era próximo ao seu lugar de trabalho. Estas habitações foram ganhando popularidade à medida que a escravidão se findava e quando as formas de trabalho se diversificavam, assim surgindo as primeiras oportunidades de trabalho formal.


A enorme pressão por habitações levou os proprietários dos grandes casarões imperiais e coloniais, que ocupavam o centro da cidade, a redividi-los internamente em inúmeros cubículos, por meio de tabiques e bimbos, os quais eram então alugados para famílias inteiras. (...) Esses casarões acomodavam a maior parte da população urbana e transformava a região central num torvelinho humano.
 (Sevcenko, 1983 p. 40)


Como boa parte da população era composta por ex-escravos e pobres; as casas populares, os velhos edifícios abandonados foram dando espaço a população que, não tinha recursos financeiros para comprar uma casa. As pessoas se abrigavam nestes lugares e suas famílias ficavam bem próximas a outra, além disso, pessoas de diferentes regiões do país que se estabeleceram no Rio, e sem nenhum recurso se viam obrigadas a morar nas habitações coletivas.


Na literatura brasileira temos o clássico literário O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, no qual seu autor tem como cenário uma habitação coletiva. Fazendo uma breve sinopse da obra, o romance difunde as teses naturalistas, que explicam o comportamento dos personagens com base na influência do meio, da raça e do momento histórico.


Na obra o escritor nos apresenta diversos personagens que se estabelecem no cortiço, personagens da Bahia, portugueses, pobres e etc. A obra confirma que nestas habitações coletivas habitavam grupos de diferentes identidades culturais, religiosas e etc. 
 Assim, com o conceito de Cortiço abrangido, qualquer habitação popular poderia ser considerada um cortiço, bastava o governo dizer que era um cortiço e pronto. Não havia uma regra ou técnica estabelecida, se houver qualquer característica de parentesco com uma habitação popular “irregular”, as casas eram passivas de ser interditadas. (Chalhoub, 1996, p. 102).


2.3 As reformas urbanas e projeto “civilizador europeu”.


Os higienistas foram os primeiros a formular um discurso articulado sobre as condições de vida no Rio de Janeiro, propondo intervenções mais ou menos drásticas para restaurar o equilíbrio do “organismo” urbano. (...) Os médicos incriminavam tantos os seus hábitos ignorância e sujeiras físicas e morais.
 (Benchimol, 2003. p. 240)


As campanhas de vacinação e sanitarização do Rio de Janeiro no alvorecer do século XX, atuavam em conjunto com obras de remodelação do espaço geográfico da cidade. Os dois precisavam estar alinhados em “duas frente de batalha”; uma frente dominava o cenário urbano com as obras, aterrando o centro, alargando ruas, promovendo iluminação, derrubando moradias irregulares.


E a outra frente se alinhava para erradicar as doenças epidêmicas, se livrar dos ratos, dos estabelecimentos irregulares e promover a higiene da cidade através de leis estabelecidas. O presidente Rodrigues Alves e o prefeito Pereira Passos serão responsáveis pela missão de “civilizar” os costumes, transformar a cidade em uma capital moderna, e claro, erradicar as doenças que assolavam a população por décadas, A historiadora Lená Medeiro de Menezes aponta que;


 (...) O barulho e a poeira das demolições anunciavam o progresso e a busca de novas representações para a cidade significava a condenação das tradições. A modernidade abria seu caminho numa voracidade sem limites. Vencendo a topografia acidentada, ela tragava os morros, pântanos e lagoas, definindo mudanças sensíveis no ser, no ter, no fazer e no sentir.
 O centro do Rio de Janeiro vestiu-se de luxo e modernidade à medida que as elites se dedicaram a especializar espaços, reprimir costumes tradicionais, esconder a pobreza e as contradições mais aparentes na invisibilidade da periferia, procurando manter sob vigilância e controle as vozes dos excluídos.


Passos será encarregado de apagar o passado imperial e colonial e promover uma espécie de cidade-vitrine, destinada a atrair o capital estrangeiro e garantir às elites um viver “civilizado”. Menezes (1999, p. 119). Pereira Passos terá como objetivo embelezar a cidade do Rio de Janeiro, dando um tom característico do padrão Francês da Belle Époque. Apelidado de Haussmann Tropical, Pereira Passos se inspirou na reforma promovida pelo prefeito Georges Eugene Haussmann, que promoveu uma reforma em Paris, capital da França.


Como aponta os historiadores (Chalhoub, 1996) e (Benchimol, 2003) as ruas do Rio eram estreitas, muitas delas alagavam em dias chuvosos, as casas com pouca circulação de ar, em sua maioria úmidas devido à proximidade do chão, haviam valas ao céu aberto, animais mortos atirados a rua, lugares alagados etc. Ou seja, lidar com a urbanização da cidade implicava diretamente em torna-la salubre, de embelezá-la esteticamente inspirada em Paris, e também ao mesmo tempo, lidar com as questões sanitárias, como os estabelecimentos irregulares e mal higienizados, de arejar as avenidas com alargamentos, erradicar a varíola, febre amarela, peste bubônica e malária.


 Havia uma urgência em providenciar o embelezamento através do desaparecimento rápido dos cortiços que dominavam o cenário urbano do centro da capital. Assim, entre as principais obras realizadas pelo prefeito Pereira Passos, para atingir tal objetivo, podemos destacar a Abertura da Av. Central, atual Av. Rio Branco, a construção do Cais do Porto ou Novo Porto do Rio de Janeiro, entre outras como;


 Alargamento das Rua 13 de Maio, Rua Uruguaiana, Rua da Carioca, Rua da Assembleia, Rua do Acre, Rua Camerino, Rua Frei Caneca, Rua de Sant’ Ana e Rua Estácio de Sá; Prolongamento das seguintes ruas: Rua do Sacramento (atual Avenida Passos), Rua Marechal Floriano e Travessa São Francisco (atual Rua Ramalho Ortigão). Nesta última construiu um mercado de Flores; asfaltou muitas ruas do centro do Rio e outras ligando aos bairros. Abertura de Avenidas: Av. Mem de Sá, Av. Salvador de Sá, Av. Gomes Freire e Rua Amapá; Abertura da Avenida Beira Mar: Seguindo da Rua Santa Luzia, passando em frente ao Passeio Público até Botafogo; reformou o Matadouro de Santa Cruz, melhorando suas condições de higiene e inspeção sanitária.
 

3. Os costumes populares e a questão Religiosa.


3.1 A perseguição aos costumes populares.


A reforma Passos conseguiu realizar boa parte dos objetivos propostos, o corpo médico responsável pela higienização liderados por Oswaldo Cruz procurou lidar com os problemas que assolavam a população, conseguindo erradicar a febre amarela, varíola e peste bubônica. Porém, a maneira de como o serviço de urbanização e vacinação atuava será passiva de inúmeros questionamentos, como a forma com que o governo tratou as camadas populares, através de seus decretos impostos à força de forma autoritária a fim de modernizar e “civilizar” a qualquer custo, mesmo que seja de forma bruta, indo contra a opinião popular, seus costumes, crenças, etc. Como aponta (Benchimol, 2003; Sevcenko, 1983):


Durante este período o governo perseguiu boa parte da população pobre, pequenos comerciantes, igrejas, terreiros religiosos. Começou uma guerra contra os quiosques, proibindo construções de madeira, consumo e comercialização de cachaça, broas de milho, lascas de bacalhau, fumo. Passos interferiu no abastecimento de alimentos, procurando inviabilizar práticas rurais que persistiam na malha urbana. (...) O vendaval de interdições visou também à regeneração dos maus hábitos e costumes. Um decreto proibiu urinar e cuspir nas ruas. Para não embaraçar os cabos de energia elétrica, as crianças foram proibidas de soltar pipas. 
 (Benchimol, 2003, p. 264)


“Independentemente das razões invocadas para justificar cada um desses atos, eles traduzem um discurso, uma mentalidade, um projeto moralizador e autoritário ao extremo: ao Estado cabia transformar na marra, a multidão indisciplinada de “pés descalços” em cidadãos talhados segundo os estereótipos que serviam à burguesia europeia para o exercício de sua dominação. Isso se observa nitidamente, na repressão policial a festas profanas e sagradas: o carnaval, a serenata, a boêmia e o candomblé. Nada mais ilustrativo do furor burguês de regeneração do que o projeto de lei discutido no Conselho Municipal visando a acabar com “a vergonha e a imundície dos em mangas de camisa e descalços nas ruas da cidade”
 (Sevcenko, 1983, p. 33)

 

A questão de reprimir ou conter a população a força, de forma autoritária é recorrente durante a história do Brasil. O historiador Sérgio Barra (2008), relata o caso da criação da Guarda Real de Polícia em 1809, um ano após a chegada da Família Real no Rio, e tinha como objetivo, a grosso modo, proteger a corte, manter a boa ordem civil e reprimir crimes. Também eram responsáveis pela captura de escravos fugidos, destruição de quilombos como os do morro de Santa Teresa (em 1823), prisão de capoeiras e perseguição aos candomblés do Catumbi. (Barra, Sérgio. 2008, p. 228). Fica claro que a Guarda da Polícia possuía uma suspeição generalizada contra os negros em sua atuação, como observa Sérgio Barra: 


Registros de furtos, fugas, provocação de arruaças por bandos de capoeiras, embriaguez, brigas, porte de armas como facas e comportamentos suspeitosos como ser encontrado dentro de casas e chácaras alheias. Uma análise da documentação da Polícia pode nos servir como guia para a exploração dessa Cidade oculta por trás da pompa da Corte nas memórias oficiais do período, como a de Luís Gonçalves dos Santos. Da leitura dessa documentação fica clara, em primeiro lugar, que a principal preocupação da Polícia era com o grande contingente de negros, fossem eles forros, escravos fugidos ou escravos de ganho, que circulava pelo espaço público da cidade. (Barra. 2008, p. 229)


Logo notamos que o governo brasileiro sendo ele Republicano ou Imperial, se manteve debruçado sobre preconceito e sobre o racismo, como por exemplo, as leis criadas para manter a “boa ordem civil” no século XIX e XX, tendo a segunda herdando todas as características da primeira e sendo muito mais autoritária também. Como a Lei de Vadiagem do Código Penal de 1890, que condenava o jogo da capoeira, o exercício de rituais religiosos, e que também abrangeu qualquer ato como “vadiagem”, bastava um simples assovio ou ser encontrado “fora de hora” que tal atitude era passiva de punição. Simas (2016). 


Os negros, as “classes perigosas “, os moradores dos cortiços, os donos de quiosques, os pobres vendedores ambulantes, os afro-brasileiros, foram vítimas do processo de “aburguesamento” brasileiro, como propõe Nicolau Sevcenko. Esse povo, herdeiro do sangue indígena e do sangue africano que possuíam seus costumes, suas raízes e suas ambições, considerados “classes pobres e perigosas” foram subjugados e segregados durante século XIX e boa parte do século XX como aponta Sidney Chalhoub.


O projeto civilizador em curso desde meados do século XIX, com a vontade de tornar o Rio uma capital moderna e o transformar em uma Paris da Belle Époque, não mediu esforços para conseguir tal feito. Foi preciso mudar na “marra” os costumes da população, promover a imigração estrangeira e inserir seus costumes ocidentais “sofisticados” na capital fluminense, afim de remover os traços negroide do Rio de Janeiro e seus remanescentes culturais. 


Para L. A Simas o projeto civilizador nada mais é que um projeto de Estado que deu certo.  Até os dias atuais a comunidade pobre, negra do Rio, sofrem com a ausência de políticas públicas, vivem segregados, agora não mais em cortiços, mas sim em favelas, abandonados pelo descaso governamental, largados à criminalidade e distantes da educação escolar ideal. Para o Rio melhorar é preciso que façamos com que esse projeto dê errado, pois ele deu certo, à medida que vemos todos os dias nas mídias negros sendo mortos, vítimas de racismo, excluídos do mercado de trabalho e das universidades. (Simas. 2017). 
 
'A redenção de Cam': representação das teses de embranquecimento da população Foto: Divulgação/MNBA.
 A redenção de Cam, de 1885. (...)Na obra, vê-se três gerações da mesma família, separadas por diferentes gradações de cor de pele. A avó, negra, ergue as mãos aos céus, num gesto de agradecimento pelo nascimento do neto branco, filho de mãe parda. Em um gestual dramático que remete ao romantismo de Eugène Delacroix e Théodore Géricault, os quatro personagens da pintura encarnam o projeto de embranquecimento da população brasileira que encontrou eco nas políticas de imigração europeias, sobretudo de italianos, alemães e espanhóis na virada dos séculos XIX e XX.

https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/conheca-tela-redencao-de-cam-de-1895-destaque-em-mostra-no-mnba-22740416


Gobbi, Nelson. ‘A redenção de Cam’, 1885. O Globo. Rio de Janeiro, 04 de jun. de 2018. Disponível em: . Acesso em: 30 de mai. de 2019. 


3.2 A questão Religiosa e a Revolta da Vacina, 1904. 


A nova historiografia sobre a Revolta de Vacina em 1904 vem nos ajudando a compreender melhor as motivações dos revoltos que participaram do motim popular em 1904 contra a lei de vacinação obrigatória, a lei já escrita, foi colocada em “pratica”. Esta lei declarava a obrigatoriedade da vacinação e revacinação contra varíola em todo território da República.


Como historiadores mais conhecidos no campo de estudos sobre a Revolta da Vacina, temos; Nicolau Sevcenko (1983) José Murilo de Carvalho (1987), que procuraram entender outros motivos que revoltou a população carioca, além da imposição da vacincão.


Já Sidney Chalhoub (1996) integrará seus estudos apontando a questão das tradições negras, e as religiões de matrizes afro que se instauraram no Brasil a partir do tráfico de escravos. E como o “projeto civilizador” foi de encontro a essas pessoas que possuíam tais tradições e cultura religiosa.


O caminho é sinuoso até chegarmos a Omulu e as religiões de matrizes afro estabelecidas no Brasil durante o século XIX. Como abordado no início do artigo, apontamos a questão da escravidão de pessoas negras no Rio e como elas se organizaram para se estabelecer e exercer sua religião, seus cultos através do sincretismo e seus costumes no Brasil. 


Como falado, Chalhoub (1996) fizera um estudo acerca das religiões de matriz Afro. Para o autor a população negra, adeptas das religiões de matrizes africanas, a varíola era uma doença ligada ao sagrado, e que não podia ser combatida da maneira como os governantes estipularam, com a introdução da vacinação obrigatória, dentro do universo simbólico das religiões africanas, a varíola e outras doenças epidêmicas seriam combatidas pelo orixá Omulu. 


Chalhoub (1996) acredita que a presença e o crescimento dos cultos aos orixás na Corte, especialmente na segunda metade do século XIX foram motivados por alguns fatores como: a as migrações baianas que seguiram à revolta dos malês em 1835 e o fim do tráfico internacional de africanos em 1850, fato que causou o incremento do tráfico interprovincial de escravos.


Os afro-baianos chegavam ao Rio chegavam ao Rio com seus santos, e Omulu estava certamente entre eles. (...) Em épocas epidêmicas, a cidade apresenta-se coberta de sacrifícios – milho torrado com azeite de dendê e pilado ou não. (Chalhoub, 1996, p. 165)


Para Chalhoub o culto a Omulu está estreitamente ligado as doenças epidêmicas. Durante os períodos epidêmicos, seja na Bahia ou no Rio de Janeiro, os adeptos das religiões afro, se organizavam para cultuar Omulu para este lidar com as doenças que assolavam a população.


Vale ressaltar, que as práticas de curas populares eram muito presentes por toda a história do Brasil, o uso medicinal de cura exercido através de plantas e cultos religiosos eram práticas constante durante toda nossa história. 


As práticas populares e sobretudo as de religiões de matriz afro, serão perseguidas e vítimas de preconceito por todo século XIX e início do XX. As comunidades negras e adeptos as religiões africanas serão combatidas dentro do campo físico; como a derrubada dos cortiços em que esta população se abrigavam e dentro do campo religioso; como a lei de vadiagem que perseguia manifestações religiosas diferentes do catolicismo durante toda história do Brasil.


Sidney Chalhoub (1996) cita reportagens de João do Rio, escrevendo sobre as religiões do Rio da Belle Époque, o qual dedicara vários capítulos ao mundo dos orixás e babalorixás, revelando de forma inequívoca a importância que estes vinham adquirindo na cidade no período. João do Rio foi conhecer “as casas das ruas de São Diogo, Barão de S. Félix, Hospício, Núncio e da América onde se realizavam os candomblés e viviam os pais de santo”. 


João do Rio publicou tais reportagens pela primeira vez na Gazeta de Notícias exatamente em 1904, ano da Revolta da Vacina; as ruas onde diz que se concentravam os candomblés eram locais onde havia grande número de cortiços – até mesmo o lendário Cabeça de Porco, na Barão de São Félix, já demolido nessa época; esta região serviu de cenário e escaramuças importantes durante a Revolta de 1904, e é próxima ou vizinha aos bairros da Gamboa e da Saúde, redutos tradicionais de bairros de baianos e candomblés, e onde a resistência popular às forças de repressão ficou famosa.
 (Chalhoub, 1996, p. 165, 166)


Logo fica evidente alguns fatores já abordados aqui; como a presença de cortiços no centro do Rio; as populações negras que neles habitavam; a resistência que estes grupos possuíam para estabelecer seus ritos na capital do Brasil.


O historiador Sidney Chalhoub (1996) elabora uma análise profunda a respeito das religiões africanas. Este estudo conta com diversos historiadores e antropólogos que são citados em sua obra. A fim de compreender a presença de Omulu e dos orixás no Rio de Janeiro do século XIX, o autor estudou as origens das pessoas escravizadas trazidas para o Rio de Janeiro.


Este aponta a concentração de afro-baianos na cidade e suas características culturais e religiosas; os africanos provenientes da África-Ocidental (Daomé, Nigéria) devotos prováveis dos vudus e orixás, e a cultura religiosa dos povos da África centro-ocidental (Congo e Angola) que eram maioria no Rio de Janeiro.
Uma das características principais das práticas religiosas dos escravos do Rio seria a falta de “conservantismo”; ou seja, ao contrário da rígida tradição iorubá, eles teriam relativa facilidade em formar grupos religiosos e aceitar novos rituais, símbolos, crenças e mitos. Está flexibilidade permitia que santos católicos ou orixás do candomblé fossem incorporados como objeto de devoção e ritual, sem que isso implicasse, todavia, o abandono das visões cosmológicas básicas que informavam as estruturas religiosas dos povos provenientes da África centro-ocidental. 
 (Chalhoub, 1996, p.167)

Chalhoub (1996) aponta que entre os africanos de Congo e Angola havia um não conservantismo quanto as crenças e mitos específicos, havia uma flexibilidade religiosa (sincretismo religioso) e que tal flexibilidade religiosa prevalece na umbanda até os dias de hoje.


“Robert Slenes vem demonstrado que as culturas religiosas da África central informavam muito do que os escravos do Sudeste pensavam de sua condição, sendo mesmo decisivas na articulação de formas de resistência ao cativeiro. Sendo assim, o que é necessário fazer para reforçar a hipótese da importância de Omulu à resistência à vacinação é mostrar a possibilidade real de reinterpretação desse orixá em termos dos pressupostos cosmológicos básicos de povos da África central.”
 (Chalhoub, 1996, p. 168)


Sendo assim, fica claro perceber a presença de adeptos da religião afro na Revolta da Vacina em 1904, pois, para estes, as doenças epidêmicas deveriam ser combatidas por Omulu ou Sapona, orixá dos iorubanos que tinha o poder de espalhar a varíola e proteger os devotos contra seus estragos. O Orixá iorubano chegou ao Brasil junto aos escravos conduzidos nos tumbeiros. Passou a ser conhecido como Omulu, ou Obaluaiê.


A Revolta da Vacina, que eclodiu em 1904 foi causada por diversos agentes motivadores e a questão religiosa esteve presente. Como vimos, as mesmas ruas em que moravam as classes pobres, estavam os praticantes da cultura religiosa africana. Assim, compreendemos que os cortiços eram elementos físicos e religiosos dos remanescentes da cultura religiosa africana ainda muito presente durante o século XX, símbolos da cultura religiosa que resistiu, mesmo através do precário, e do processo de aburguesamento do Rio.


Logo, podemos aferir que o processo de urbanização e a campanha de vacinação obrigatória, tem em seu ensejo o preconceito. Portando o viés racista, autoritário, burguês, que tinha como norte o projeto civilizador e de embranquecimento da sociedade, cujo objetivo era “civilizar” os costumes, hábitos, e as religiões de matriz africanas praticadas pelas “classes perigosas” do Rio de Janeiro, pode ser devidamente percebido.

   


CONCLUSÃO
 Concluímos que a Revolta popular de 1904 contra o serviço de vacinação obrigatória, foi um movimento popular contra todas as medidas governamentais da primeira república, um repúdio as ações de Pereira Passos, que impuseram um conjunto de medidas autoritárias do início do século XX, que tinha como objetivo central tornar o Rio uma capital moderna na “marra”. 


Para isto foi necessário combater os setores populares desde o final do século XIX, o centro do Rio de Janeiro era o coração destes, compostos por famílias de ex-escravos, comerciantes, moradores de cortiços. O centro era seu espaço de sociabilidade por excelência, de onde retiravam das ruas o seu sustento diário.
As obras de urbanização, as leis municipais, um conjunto de medidas governamentais com o intuito de culpabilizar os menos favoráveis pelo “atrasado”, pelas doenças, pela religião demonizada. O preconceito tomava conta das medidas de sanitarização do Rio de Janeiro, o expurgo aos costumes populares, o ódio destilado às religiões de matrizes africana era evidente.


Assim, como aponta Carvalho (1987), os revoltosos de 1904, se sentiam ofendidos moralmente, quando os funcionários do serviço de saúde tocavam, em suas mulheres e filhas, pelo medo do contagio e morte proporcionado pela vacina (Sevcenko, 1983), pela agressividade municipal em relação aos tipos de moradias e costumes da época (Benchimol, 2003, p 264), e também os recentes estudos sobre a Revolta Vacina, que insere a questão religiosa em torno do debate. (Chalhoub, 1996).


Pintou a situação em que ficaria a família proletária com a nova lei. Ao voltar do trabalho, disse, o chefe fica "sem poder afirmar que a honra de sua família esteja ilesa, por haver aí penetrado desconhecido amparado pela proclamação da lei de violação do lar e da brutalização aos corpos de suas filhas e de sua esposa".
"A messalina", prosseguiu, "entrega-se a quem quer, mas a virgem, a esposa e a filha terão que desnudar braços e colos para agentes da vacina." Não apelava para a constituição por já estar poluída e esfarrapada. Contra a violência, apelava para legítima defesa "e essa se faz com armas e mãos".
 (Carvalho, 1987, p. 100,101)

A Revolta da Vacina deixou um forte legado para a historiografia, a qual diversos historiadores ao longo dos anos vêm estudando e tentando compreender o que motivou os revoltosos a irem as ruas contra as medidas impopulares do governo. 
 

Vale destacar a importância da vacinação, havia uma certa necessidade para a uma modificação na cidade do Rio de Janeiro no que diz respeito a melhoramentos de ruas, esgotos, erradicação de doenças, etc. Não devemos generalizar que o preconceito tomava conta de toda equipe sanitária. A bem-sucedida campanha de Oswaldo Cruz é a prova de que era necessário o combate a varíola e as doenças que assolavam o Rio.


Porém, a elite governamental, a classe média que se formava no início do século XX, possuía um estranhamento aos setores populares e descendentes de escravos, a religião negra, seus costumes e hábitos, eram alvos do governo, as obras de urbanização e a campanha de vacinação eram realizadas na força, o governo não informava aos populares o porquê daquilo. 


Entretanto, mesmo que os houvesse informado, para o governo os cortiços, as habitações coletivas, as rodas de batucadas, os jogos de azar, os vendedores ambulantes eram um mal a ser removido da paisagem da capital do Brasil, era “necessária” assim, uma ação, mesmo que fosse truculenta para tornar o Rio de Janeiro uma bela capital moderna da Belle Époque.

Referências Bibliográficas
Benchimol, Jaime. Reforma Urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. in: FERREIRA, Jorge, O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente.  Rio de Janeiro. Civilização brasileira, 2003.
CARVALHO, José Murilo de. “Cidadãos Ativos: A Revolta da Vacina.” In “Os Bestializados” 3. ed. São Paulo. Companhia das Letras. 1987.
CHALHOUB, Sidney, Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Gobbi, Nelson. ‘A redenção de Cam’, 1885. O Globo. Rio de Janeiro, 04 de jun. de 2018. Disponível em: . Acesso em: 30 de mai. de 2019. 
MENESES, Lená Medeiros de. Nas trilhas do progresso: Pereira Passos e as posturas municipais (1902-1906). In SOLLER, Maria Angélica, e MATOS, Maria 
Obras de Pereira Passos e Rodrigues Alves | 1902-1906. Rio de Janeiro Aqui. 2013. Disponível em:. Acesso em: 26 de abr. de 2019.
Sérgio Barra: Entre a corte e a cidade: o Rio de Janeiro no tempo do rei (1808-1821) Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 2008.
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. Ed: Scipione, 1993.
Simas, Luiz Antonio. Brasil: Um tremendo sucesso. Justificando, 2017. Disponível em: . Acesso em 20/06/2019.
 Simas, Luiz Antonio. Dos Arredores da Praça XI Aos terreiros de Oswaldo Cruz. Z Cultural, Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, 2016. Disponível em: . Acesso em 26/04/2019.