A trajetória da pecuária bovina, como atividade econômica, confunde-se com a própria história e a ocupação de Roraima. Das criações extensivas, em área de cerrado, com baixíssimos índices de produtividade ocorreram mudanças quando esta deslocava-se para as pastagens cultivadas em área de floresta. Mas a atividade poderia estar em outro patamar, quanto ao desfrute, se houvesse ações e políticas voltadas para a solução dos problemas encontrados ao longo de toda a cadeia de produção (insumos, tecnologias, abate e processamento, barreiras sanitárias e mercados). O início da pecuária nos campos gerais do Rio Branco As primeiras penetrações pela bacia do rio Branco foram realizadas por espanhóis, holandeses e portugueses. A partir do século XVI, os portugueses vindos pelo rio Negro (Amazonas), os espanhóis oriundos da Venezuela e os holandeses instalados nas Guianas percorriam a região, à princípio, sob o ponto de vista econômico, pelo interesse pela possível presença de grande quantidade de minerais (vislumbrada pelos espanhóis) e pelo extrativismo e comércio de produtos da fauna e da flora, as drogas do sertão. Deixando-se de lado os aspectos históricos e as disputas ocorridas, notadamente, na região conhecida como alto rio Branco, a construção, pelos portugueses, do Forte de São Joaquim, finalizado entre os anos de 1775 a 1776, praticamente iniciava e consolidava o domínio destes sobre a região. A fortaleza foi construída, estrategicamente, nas confluências entre os rios Uraricoera e Tacutu formadores do Branco, onde predomina extensas áreas de campos naturais conhecidos como cerrados (OLIVEIRA, 2011; BEZERRA, 2013; GOMES FILHO; MILDER, 2014). Os cerrados de Roraima são citados, por alguns autores, como savanas, campos gerais ou lavrados. Este ecossistema ocupa a área nordeste do estado, sendo extensão do mesmo bioma que se estende pela Guaiana, Suriname e Venezuela (BARBOSA et al., 2007). Dos 225 mil km² de área territorial, cerca de 17% (quatro milhões de hectares) são constituídos por este ambiente. A vegetação é composta, principalmente, por diferentes fitofisionomias formada por vegetação não florestal (MIRANDA et al. 2002), ou seja, há grande predominância de pastagens naturais ou nativas, um estrato graminóide (gramíneas e ciperáceas), entremeado por vegetação arbustiva. Dentre as gramíneas presentes destacam-se o Trachypogon plumosus e espécies dos gêneros Andropogon, Axonopus e Paspalum (BRAGA, 2000 e COSTA et al., 2009). Outras informações sobre os cerrados da região serão apresentadas no discorrer deste capítulo. Reportando-se ao ano de 1775, apesar da construção do Forte, o alto rio Branco não possuía atividade econômica de expressão, foi quando, em 1786, o então governador da Capitania de São José do Rio Negro incumbiu o coronel Manoel da Gama Lobo D’Almada, que realizasse uma viagem à região no sentido, dentre outros objetivos, de apresentar alternativas que justificassem a presença portuguesa na região. Das potencialidades vislumbradas relatava a possibilidade da introdução de gado bovino, muito provavelmente devido à exitosa experiência que acontecia na ilha de Marajó, onde, no ano de 1756, existiam cerca de 400 mil cabeças criadas em sistema extensivo nas pastagens nativas daquela região, à semelhança dos pastos encontrados no rio Branco. De fato, em 1789, o próprio governador trouxe as primeiras cabeças de bovinos, provenientes de Tefé, no Amazonas. Eram 17 bovinos transportados em grandes canoas, para, a partir dessas e de outras iniciativas darem início as três primeiras fazendas na região, conhecidas como as fazendas do Rei ou fazendas Reais (referência ao Rei de Portugal), denominadas de São Marcos, São Bento e São José. O então Governador da Capitania de São José do Rio Negro, Lobo D’Almada, instalou a primeira fazenda da Coroa a qual chamou de São Bento, cujo objetivo era integrar a região do rio Branco, de formas a atrair e fixar colonos e, indiretamente, manter o controle das terras da região. Nos anos seguintes, foram criadas as fazendas São Marcos e São José, todas nas confluências entre os rios Uraricoera e Tacutu, formadores do Branco. Tais fazendas passaram a ser conhecidas, posteriormente, como fazendas Nacionais. Este é, de fato, o início da criação de bovinos, equinos e de outros animais domésticos na região (MAGALHÃES, 1978; REIS, 1989 apud SOUZA, 2011; FREITAS, 1996; FARAGE; SANTILLI, 2003 apud SOUZA, 2011; REIS, 2006 apud BEZERRA, 2013; GOMES FILHO; MILDER, 2014). 2 Ainda com relação a introdução de bovinos na região existe a hipótese de que os primeiros animais poderiam ser oriundos das colônias instaladas pelos holandeses, visto que estes estavam presentes, desde 1570, por todo o litoral do Atlântico Norte citado por Oliveira (2011) como Amazônia Caribenha, território dividido posteriormente entre o Brasil, Guiana Francesa, Suriname, Guiana e Venezuela. Uma síntese sobre a presença dos holandeses na Amazônia Caribenha Colonial está relatada em Oliveira (2011), quando se constata que, entre 1585 e 1650, os representantes dos Países Baixos praticavam a agricultura, o comércio e possuíam diversas fortalezas. Neste sentido, fica evidente o início do processo de colonização na região das Guianas, antes do efetivo domínio português no alto rio Branco (Forte de São Joaquim), entretanto, as principais colônias ‘agrícolas’ estavam localizadas no litoral do Atlântico e, não há citação, por aquele autor, de que os holandeses praticavam a pecuária nas savanas do Rupununi, contíguas as savanas do alto rio Branco, de onde poderiam ter sido introduzidos os bovinos. É fato notório a presença holandesa nos rios Rupununi, Tacutu, Maú e Branco realizando, principalmente, o comércio de produtos manufaturados, e, um dos motivos que levaram os portugueses a construírem o Forte nas confluências dos rios Uraricoera e Tacutu. A exploração das savanas do Rupununi, atualmente pertencente a Guiana, tiveram início após 1860, quando se instalaram as primeiras fazendas na região e as mesmas adquiriam bovinos e adotavam as mesmas práticas de criação que vinham ocorrendo nas savanas do Alto Rio Branco. Cita-se, inclusive, que um garimpeiro de Barbados (H. Melville) possuía uma fazenda na margem esquerda do rio Tacutu (lado brasileiro) e, posteriormente, transferiu-se para o outro lado daquele rio (lado guianense) onde fundou a fazenda Dadanawa, dando início a pecuária extensiva naquela região. Estas e outra informações sobre a pecuária na Guiana estão disponíveis em Allicock (2014); Silva (2005) e Sanderson (1963). Por outro lado, analisando-se os relatórios escritos por Lobo D’Almada quando de sua viagem pela região do alto rio Branco, em 1787, ao se referir sobre as possíveis potencialidades econômicas para a região, descreve, dentre outras alternativas, a existência de imensos campos naturais próximos aos rios Maú, Surumu e Amajari, favoráveis para a prática da pecuária bovina. Para ele, a introdução de bovinos atenderia a demanda por carne de toda a região, inclusive podendo ser exportada para São José do Rio Negro e todo o Grão-Pará (D’ALMADA, 1787 apud BEZERRA, 2013). Não há nenhuma evidência ou relato sobre a existência de bovinos, naquela ocasião, que poderiam sustentar a tese de que estes animais teriam sido introduzidos nos campos do rio Branco, pelos holandeses, antes da proposição daquele militar. Portanto, baseado nessas constatações, é mais prudente argumentar de que os bovinos foram introduzidos, a partir de 1789, conforme relatado anteriormente, entretanto, também é fato, a chegada de bovinos oriundos da região das Guianas, muito provavelmente, após aquele ano, conforme relata Magalhães (1978), no item sobre raças e tipos de bovinos introduzidos. De início, a pecuária bovina era atividade secundária ao extrativismo praticado na região, visto que a distância para centros comerciais como Manaus e as péssimas condições de acesso, via fluvial, não eram favoráveis ou atrativas para novos investimentos. Entretanto, aos poucos, aqueles que exploravam os produtos da floresta passaram a investir na atividade pastoril, com destaque para Sebastião Diniz, vindo inicialmente para o rio Branco explorar o látex da balata e do caucho, nas últimas décadas do século XIX e, com o capital acumulado buscava novos investimentos, entre os quais a pecuária (SANTILLI, 1989 apud SOUZA, 2011). Com a construção do Forte de São Joaquim, entre 1775 e 1778, o mesmo foi comandado por militares. Soldados, cabos, majores e capitães trouxeram famílias ou as constituíram na região. Basicamente no século XVIII (1789 a 1799) existiam as fazendas Nacionais e, a partir do século XIX (1827 a 1899) surgem diversas criações pastoris, de propriedade daqueles militares que prestavam serviços no Forte, como por exemplo, o major Carlos Batista Mardel, o capitão Inácio Magalhães (primeira fazenda particular), o capitão Bento Brasil e o cabo Pedro Rodrigues. Ainda naquele século, a literatura cita, que o primeiro superintendente de Boa Vista, o sargento do Exército João Capristano da Silva Mota, também havia fundado sua propriedade para criação de bovinos e outros animais domésticos (MAGALHÃES, 1978; FREITAS, 1996; OLIVEIRA, 2003 apud BEZERRA, 2013; SOUZA, 2011). Uma das mais antigas citações sobre a introdução de bovinos em Roraima, data de 1861, quando o fazendeiro Sebastião Diniz transferiu-se da Ilha de Marajó, no Pará, para o Amazonas e, de lá trouxe para os lavrados do rio Branco, uma grande quantidade de bois, cavalos, cabras, ovelhas e aqui fundou mais de vinte fazendas, dentre elas: Truarú, Pau-Rainha, Iracema, Bonfim, Cunhã-Pucá e outras na região da Serra da Lua (CÂNDIDO, 2009). 3 A história revela que, em 1878, as fazendas Nacionais foram arrendadas para Sebastião Diniz e, em 1886 eram 80 fazendas, passando para 142, em 1906, todas em posse de particulares cujas terras pertenciam a União. A partir de 1904, surge na cena histórica do Rio Branco, uma empresa que significou muito para a época, a J.G. de Araújo e Cia (a qual iremos nos referir daqui para frente como JG). Naquele ano, aquela empresa criava uma filial em Vista Alegre (rio Branco). Recordando, a empresa JG, na década de 1920, era a maior empresa da economia regional, com sede em Manaus, atuando no comércio de importação e exportação, em praticamente todos os ramos de atividade, nos setores primário, secundário e terciário, inclusive na pecuária, por meio de uma rede constituída por 23 empresas (SOUZA, 2011). Ainda no século XIX, a JG fornecia diversas mercadorias para os militares instalados no Forte de São Joaquim, mas vendia para extrativistas, fazendeiros, plantadores de fumo e garimpeiros. A relação comercial era praticamente do tipo ‘aviamento’, onde a firma JG entregava, antecipadamente, mercadorias em troca dos produtos da região (balata, castanha, gado, tabaco, ouro e diamante) os quais seriam entregues posteriormente. Na maioria das vezes os clientes compravam da firma, uma quantidade de mercadoria superior a sua capacidade de pagamento com seus produtos. Dada a esta situação, fica evidente que em algum momento a firma JG iria cobrar pelas notas promissórias emitidas e, como o devedor, não tinha capacidade para pagar, a empresa recebia terras, como moeda de venda ou entrava na justiça e, tendo ganho de causa, ficava com a posse das propriedades com todos os bens nela existentes, inclusive e, principalmente, com os animais domésticos existentes. Se inicialmente, a firma JG tinha interesse comercial no Rio Branco, talvez a maior parte dos bens adquiridos na região tenha sido da forma descrita no parágrafo anterior, onde os fazendeiros iam até Manaus, adquiriam suas mercadorias e se comprometiam em pagar com a venda dos bois. Em muitas situações, a dívida dos fazendeiros ia se acumulando e a JG entrava na justiça e recebia, como forma de pagamento, fazendas com todos os animais. Este fato pode ser constatado pelos inúmeros conflitos surgidos, inclusive sendo relatado casos de chacinas, onde morreram pessoas ligadas a firma, aos fazendeiros e ao próprio poder judiciário por ocasião dos ajustes de contas. Desta forma, a firma JG aumentava, a cada ano, seu patrimônio, influenciando fortemente sobre questões econômicas e políticas na região. Não se pode, entretanto, desmerecer a contribuição socioeconômica que os empreendimentos daquela família deixaram para a Amazônia. Entre as décadas de 1920 a 1940, a J.G. Araújo possuía, na Amazônia, 23 empresas em diversas regiões. No caso de Boa Vista do Rio Branco possuía a Balata Ltda., na região do rio Jauaperi, uma filial (J.G. Araújo & Cia Ltda.) voltada para a exploração das indústrias pastoril, madeira de lei, borracha e castanha, e a Charqueada Calungá cuja finalidade era produzir carne de charque (este assunto será abordado em item especificamente voltado para a tentativa de agregar valor à bovinocultura praticada na região) (ALVES, 1994-1996 apud SOUZA, 2011). No caso da atividade pastoril, embora encontre-se referências de que a firma JG tivesse mais de 40 fazendas no Rio Branco, o relatório apresentado por Antônio Augusto Martins, de 1950, citava 34 fazendas que ocupavam uma área de 280 mil hectares, onde existiam 35 mil cabeças de bovinos, ou seja, a empresa possuía metade da área ocupada com à criação de gado e cerca de um terço do rebanho existente (120 mil cabeças) (SOUZA, 2011). Sem citar data, Magalhães (1978) enumera os vinte maiores fazendeiros, dentre os quais três (Sebastião Diniz, J.G. de Araújo e Bento Brasil) possuíam cerca de 170 mil cabeças (60% do rebanho bovino). Nesta breve descrição apresentada sobre a expansão da criação de animais e das fazendas nos campos gerais do Rio Branco, deixou-se de mencionar os diversos relatos sobre os conflitos sobre posse e legitimidade das terras, a apropriação de animais e outras questões, visto que o interesse deste trabalho está voltado, essencialmente, para descrever a contribuição da pecuária bovina na ocupação histórica da região, cujo foco são aspectos técnicos, econômicos e de mercado. De qualquer modo, percebe-se que as maiores fazendas na região estavam nas mãos de militares ligados ao Forte de São Joaquim, de funcionários públicos ou de grandes comerciantes instalados na região Norte. Dessa condição formula-se a hipótese de que os primeiros fazendeiros, provavelmente, não tinham grandes experiências anteriores com atividade pastoril. O mesmo sucedia-se, posteriormente, com os novos fazendeiros que, também eram comerciantes ou tinham atividades ligadas aos garimpos. Talvez por este e outros aspectos culturais a pecuária bovina na região tenha permanecido, até os dias de hoje, com baixos índices de produtividade, pela pouca ou nenhuma adoção de práticas de manejo que pudessem modificar a visão meramente extrativista. Outras informações neste sentido encontram-se no capítulo referente a 4 colonização e organização rural quando se comenta sobre o processo de colonização na Amazônia e seu possível impacto sobre o desenvolvimento da região. [...]