Resenha do livro O Dom do Crime, de Marco Lucchesi
Por Jean Carlos Neris de Paula | 31/03/2011 | ResumosO Dom do Crime
O livro O Dom do Crime, de Marco Luccchesi, o mais novo, em todos os sentidos, imortal da Academia Brasileira de Letras, lançado em 2010, pela Editora Record, 159 páginas, primeiro romance do autor, revela-se uma obra para quem gosta de literatura brasileira, porque se mostra entrecruzado com discursos literários de autores do século XIX, principalmente Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho.
A leitura se apresenta analiticamente por Nélida Piñon, e a capa de Carolina Vaz constitui uma obra de arte, na medida em que destaca uma fotografia amarelada, antiga, um retrato da cidade do Rio de Janeiro de dois séculos atrás. A mancha de sangue contextualiza-se com o título, visto que há muitas hemácias nas páginas da vida carioca, nos tribunais e na literatura, principalmente na Rua dos Barbonos, tão recheada de conflitos amorosos descritos por Machado.
Já no início, lê-se uma epígrafe irônica de Huidobro, a qual evoca incertezas e imprecisões da vida: "Os quatro pontos cardeais são três: o sul e o norte". Com uma linguagem machadiana, próxima de um diário, explicitada em capítulos curtos, breves, cortantes, rápidos, como um golpe inesperado, tal qual Memórias Póstumas de Brás Cubas, o texto-poema do autor relata uma pretensa e abandonada biografia de um personagem sem filho, como Brás Cubas, e sem nome, talvez porque afirma que "... cada qual suporte o peso de seu nome", especialmente num romance que traz "Nomes de pompa e circunstâncias que evocam o Primeiro Reinado...". O narrador se esconde e deseja que seu livro só venha a público no futuro, no século XXI, em 2010, ano do lançamento de O Dom do Crime, mas se mostra nos costumes de uma época de ouro para o processo cultural brasileiro, advinda com a chegada de Dom João VI ao Brasil.
O fio condutor da narrativa trágica que costura a história de Bentinho e de José Mariano com a de Capitu e Helena é a linha do ciúme, alinhavada na suspeita de traição, haja vista que a passionalidade daquele tempo foi registrada nos Júris e nos compêndios literários, em verso e em prosa, o que pode ser comprovado por citações enriquecedoras de autores e obras. Bentinho vai sozinho ao teatro e, ao voltar, encontra Escobar com Capitu, em sua casa. José Mariano vai sozinho ao baile e, ao voltar, encontra o indiferentismo de Helena. Agregados e funcionários ironicamente são aproximados e acusados de descobrir "erros" familiares, implantando suspeitas e frases maliciosas, como José Dias o faz por diversas vezes, instigando Bentinho, em Dom Casmurro. Por isso, Bento Santiago se especializou na "semântica da insinuação". A abordagem do ciúme de Bentinho contra o cavaleiro que passa na janela de Capitu resgata a crítica de Sabino, em Amor de Capitu, acerca de informações sobre a vida do referido homem de casamento marcado. Esperidiana, criada de Helena, e Juliana, de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, se comparam, ao tramarem contra suas patroas, que ficam sem defesa, visto que Bentinho fala por Capitu, e os mandarins emergem Helena em suas retóricas.
Os folhetins da época eram lidos e discutidos na sociedade, assim com os julgamentos de crimes famosos, que recebiam tratamento novelístico, exatamente como nos telejornais dos dias de hoje. Isso se comprova quando o narrador confessa que um de seus "... vícios consiste em assistir ao julgamento dos crimes levados à barra do tribunal". Os rábulas e os péssimos cursos de Direito são criticados nas absolvições de crimes passionais, em uma época em que se corroborava "lavar a honra com sangue", como no caso do alferes Almada, que matou sua mulher por motivo de traição. No romance, Alferes é apontado criticamente como Genocida na Guerra de Canudos. Os recursos argumentativos dos advogados se mostram metalinguisticamente, como o belíssimo discurso que Evaristo usou para vencer seu oponente Busch Varella e conseguir a absolvição do réu, ao empregar, para defender o acusado, o próprio texto de Busch em outro julgamento.
O médico José Mariano usa o bisturi para matar Helena, sua esposa, desviando "condenavelmente" o instrumento de sua função principal. Uma epígrafe na tese de José Mariano ironiza, com aforismo de Hipócrates, essa utilização da ferramenta cirúrgica: "Quando os remédios não curam, cabe ao ferro trazer de volta a saúde".
José Mariano foi defendido e absolvido como portador de loucura transitória, hiperemia cerebral, insanidade temporária, por sorte de a ciência ainda estar confusa com relação a esse tema, à época do julgamento. Entretanto, aproximadamente três décadas posteriores e quatorze anos depois de O alienista, Viveiros de Castro questiona a tese de mania transitória e indica, com argumentação comprobatória cientificamente, ação premeditada de José Mariano.
Dom Casmurro e O Dom do Crime trazem a palavra Dom em seus títulos, não sem razão, já que dialogam entre si num século marcado por outro Dom, O Dom João VI, responsável por uma revolução sociocultural no Brasil do início do século XIX. Os muitos dons sugerem em Machado o aproveitamento de matéria real para a construção de Bentinho e Capitu, o que aproxima realidade e ficção: "Muitas novelas partiam de casos criminais...". A postura da corte com relação à Guerra do Paraguai também é criticada nas páginas do texto recheado de História, amalgamando obra e vida de Machado em um contexto geográfico-temporal.
O céu tem nas páginas da obra significação simbólico-teórica, visto que se sabe a representação astronômica do dia da morte de Helena, da mesma forma como se explica, pela constelação e pelo cosmo, o modelo de teoria dos sósias, segundo o qual tudo se repete: "... para Blanqui as edições, mais que numerosas, circulam pelo cosmo e se reeditam no seio de um presente infinito. Voltamos iguais, ou com pequenas variantes, notas de pé de página, prefácios, biografias. A biblioteca do universo. E sua espiral de eternidade".
Lucchesi é um poeta e destila sua poesia em prosa, como se vê em explicação que exibe assonância: "Espalham-se as vogais em harmonia pela capela, o a indo mais longe, o i elevando, e o u escurecendo as imagens, quando necessário".
Por tudo isso, a leitura do livro torna o leitor de Machado ainda mais encantando pela linguagem machadiana.
Jean Carlos Neris de Paula