RESUMO

A guerra dos cem anos, entre os reinos da França e Inglaterra, foi um período de conturbações na Europa do século XV. Joana d’Arc, uma camponesa que se tornou símbolo de resistência francesa e personagem importante na vitória sobre os ingleses, tem sido, há muitos anos, alvo de representações fílmicas. O cineasta, tal como o historiador, lança seu olhar sobre o objeto de estudo, e mostra sua visão sobre o mesmo. Tratando-se de um produto de seu próprio tempo e meio social, o produto cinematográfico, assim como a história, tem por vezes lançado olhares distintos sobre o mesmo objeto. Nosso trabalho tem como objetivo, analisar as diferenças e semelhanças observadas nas leituras cinematográficas realizadas por Victor Fleming (1948), e Luc Besson (1999), sobre a mítica figura de Joana d’Arc, bem como, utilizando-se de revisão bibliográfica, criar um paralelo entre História e Cinema, dentro da abordagem sobre a ascensão e martírio da padroeira da França. 

Palavras-chave: Joana d’Arc; guerra dos cem anos; cinema; história.

INTRODUÇÃO

Até as primeiras décadas do século XX, consideravam-se como fontes historiográficas, apenas os documentos oficiais, respeitando-se sua hierarquia. Segundo Ferro (2000), “essa hierarquia reflete as relações de poder do início do século”, onde a História era compreendida pelo ponto de vista do homem de Estado.

Entretanto, a ciência histórica se transformou. O advento da Escola dos Annales e o surgimento da Nova História possibilitou que fosse aberto um leque, nem sequer sonhado antes, de fontes de pesquisa histórica. Dentro desse novo locus, encontram-se as obras cinematográficas. Santiago Júnior (2001) estipula que com os recentes trabalhos da Nova História e o pioneirismo de Marc Ferro, na década de 1970, a historiografia rendeu-se à importância das obras cinematográficas.

Da mesma forma que o clérigo, o profissional liberal e o cidadão comum vão ao cinema, assim também ocorre ao historiador. E, o filme, sendo ou não uma manipulação, uma fábrica de sonhos, “imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História” (FERRO, 2010, p. 32).

Dessa forma, as obras cinematográficas figuram como importante ferrament no processo ensino-aprendizagem de História, Como destaca Silva:

 

Na busca de novos caminhos para o ensino da História, o filme revela-se um recurso pedagógico com grande potencial explicativo. [...] as narrativas fílmicas têm sido consideradas não como meras confirmações do conteúdo histórico transmitido em sala de aula – no sentido de que o filme reproduziria a realidade – mas como representações do real e produtos cujas significações são socioculturais (SILVA, 2012, p. 214).

 

O cinema foi classificado por Alves (2006) como a mais completa arte do século XX, por ser uma síntese aprimorada de outras expressões artísticas como a música, literatura, pintura e urbnismo, entre outras. Além disso, o filme consegue ser forma mediada da própria realidade, permitindo-nos descobrir, através de sugestões inseridas no mesmo, um novo conhecimento do ser social.

O filme  “possibilita àqueles que o assistem de terem diante de seus olhos uma representação da realidade social da época em que vivem ou até mesmo de épocas passadas” (LIMA, 2015, p. 94). Ou seja, o cinema nos permite visualizar, com uma possível verossimilhança, algum fato de nosso passado. Essa encenação do real é propícia a um melhor entendimento sobre determinado fato, movendo o espectador a realizar novos questionamentos sobre o mesmo.

Macedo (2013, p. 119) chama a atenção para a “natureza ficcional” do cinema. Da mesma forma, trata do fato que, por vezes, um filme tem mais a nos dizer sobre a época que foi produzido do que aq época que procura retratar.

Munido de determinada cautela sobre a utilização de filmes como fontes de pesquisa histórica, cabe ao historiador utilizar-se, da melhor forma possível, deste recurso.

 

FONTES E METODOLOGIA

 

Nosso trabalho tem por objetivo destacar pontos comuns e divergentes entre os filmes Joana d’Arc, realizado por Victor Flemming, lançado em 1948, e Joana d’Arc de Luc Besson, do diretor francês Luc Besson, lançado em 1999, bem como relacioná-los com os fatos históricos documentados sobre Joana d’Arc. Além disso, torna-se pertinente a observância sobre outras obras cinematográficas, durante o século XX, que tiveram a padroeira da França como tema central.

A literatura serviu de apoio na tentativa de criação da imagem de Joana como pessoa, filha, católica e guerreira. Da mesma forma que o cinema, há muito rendeu-se e a transformou em ícone, sendo que diversos autores já se debruçaram sobre o tema.

 

Em direção a reflexão sobre os mitos construídos e legitimados na historiografia podemos perceber que o personagem Joana D’Arc e tudo que envolve sua biografia estão imersos em névoas que separam a imaginação, o romance e a história (MATOS, 2011, p. 129).

 

 Dessa forma, a representação da figura de Joana d’Arc tem oscilado entre História e ficção, ou realidade e imaginação. O historiador francês Jules Michelet se dedicou em construir uma imagem de Joana d’Arc ainda no século XIX. Segundo Amaral (2012), Michelet deu a Joana o papel de quem salvou a França das mãos inglesas, bem como de mártir supliciada em nome da liberdade francesa. De acordo com a autora, os pobres a amavam logo que a viam, e os nobres nutriam desconfiança por ela. Dessa forma, “Joana d’Arc aparece na história da pátria francesa como alguém que foi capaz de redefinir rumos” (AMARAL, 2012, p. 77).

Em 1935, Érico Veríssimo lançou A vida de Joana d’Arc, onde segundo o autor, a obra estava destinada, inicialmente, a crianças de 6 a 13 anos de idade. Entretanto, à medida que conheceu a história da heroína francesa, resolveu esquecer as limitações tipográficas a que estava limitado e decidiu escrever seu trabalho “sem trair a verdade histórca” (MATOS, 2011, p. 131).

Na década de 1990, Régine Pernoud (1996) publicou Joana d’Arc, a mulher forte. Assim como eles, outros autores realizaram leituras e releituras sobre a heroína francesa, fomentando, dessa forma, a imagem de santa, guerreira e, por vezes, louca Joana d’Arc no imaginário popular.

Os trabalhos acadêmicos, assim como a literatura e o cinema, são profícuos em analisar a participação de Joana d’Arc nos embates entre franceses e ingleses. Mesmo dentro do contexto cinema e história, há uma miríade de trabalhos que tentam relacionar a figura da francesa com as batalhas, a Inquisição ou os costumes de sua época. Nesse contexto, fazendo uma leitura cinematográfica da imagem de Joana d’Arc, sua religiosidade e sua belicosidade, traçamos um paralelo entre duas obras fílmicas, distantes cinquenta anos uma da outra.

Por último, utilizamos críticas e entrevista, publicadas em periódicos, à época do lançamento dos filmes, com o objetivo de quantificarmos a recepção da obra cinematográfica, quando de seu lançamento, por parte do público em geral, bem como diante da análise especializada.

 

REPRESENTAÇÕES FÍLMICAS SOBRE JOANA D’ARC

 

Joana d’Arc tem sido tema de diversas obras fílmicas e literárias nos últimos anos, inclusive, explorado nos primórdios do surgimento do cinema (BUENO, 2013). Sua biografia “se tornou um tomo da história da França, inaugurou uma nova maneira de ver a história e sua representação das sociedades” (MATOS, 2011. p. 130).

Segundo Pernoud (1996, passim), Joana d'Arc nasceu em Domrémy provavelmente em 1411 ou 1412, filha de Jacques d’Arc e Isabel, bons e fiéis católicos. Tinha como irmãos Tiago, Pedro e João. Era conhecida em seu vilarejo como de boa conduta e uma pessoa que gostava de dar esmolas.

A sua primeira visão ocorreu aos treze anos, em 1424 ou 1425. Após ouvir a voz, prometeu manter-se virgem “enquanto a Deus a aprouvesse” (PERNOUD, 1996, p. 23). Convenceu a liderança de seu vilarejo a ser ouvida pelo delfim, e a deixá-la comandar soldados em nome da França. Conquistou vitórias importantes e logo tornou-se uma pessoa venerada, sendo conhecida como Joana, a Pucela (virgem). Em apenas dois anos surgiu - tornando-se a figura mítica que permaneceria, mesmo após sua morte - foi capturada, julgada e condenada à fogueira.

Joana d’Arc, assim como o período medieval de uma forma geral, cria um certo fascínio em realizadores, que escolhem o tema a ser transformado em filme, bem como no público, cada vez mais ávido por temáticas relativas ao Medievo. Os lugares comuns que servem de temática para as produções relativas ao medievo são geralmente as guerras, as epidemias e a hegemonia da Igreja Cristã (ANDRADE, 2013).

Desde os primórdios do cinema, como arte e entretenimento, a trajetória da heroina francesa foi levada às telas. Na virada do século XIX para o século XX, Georges Méliès escreveu, produziu, dirigiu e atuou em Jeanne d'Arc (1899), filme francês mudo, preto e branco, com apenas 19 minutos de duração

Em 1928, o dinamarquês Carl Theodor Dreyer realiza La passion de Jeanne d’Arc, com roteiro baseado nos documentos históricos do julgamento de Joana. Tal filme é reconhecido mundialmente como um marco na história do cinema. A obra detalha as últimas horas de vida de Joana e apresenta a prisão, tortura, julgamento e execução da mesma. O filme é inovador. Seu trabalho de câmera, revolucionário para a época, e o método utilizado pelo diretor, impedindo que seus atores usassem maquiagem no filme, de maneira que suas expressões faciais, tomadas em close, sobressaíssem mais, tornou A paixão de Joana d’Arc um clássico cinematográfico. Segundo Bazin (1991, p. 112), Dreyer deu preferência aos close ups, por entender ser o rosto, “o rastro mais legível da alma”. Seu negativo original foi dado como perdido durante décadas, até uma segunda fita ser encontrada em um hospital para doentes mentais em Oslo, na Noruega, em 1981. Em 1985, a película foi restaurada e a ela foi adicionada uma sonoplastia.

Em 1954 Roberto Rossellini lança Giovanna d'Arco al rogo, chamado no Brasil de Joana d’Arc de Rossellini, estrelado mais uma vez por Ingrid Bergman. A película é a filmagem de uma peça teatral apresentada em dezembro de 1953 no Teatro San Carlo, em Nápoles.

Em 1962,  o cineasta francês Robert Bresson lança o Processo de Joana D’Arc, retomando a temática do julgamento da francesa, como o fez Carl Theodor Dryer, em 1928. Segundo Murari (2012), o enfoque dado pela obra de Bresson foi de enaltecimento histórico-religioso da personagem, relatando o processo final de sua vida e canonizando-a em seu desfecho. Além disso, o autor afirma que apesar do filme de Bresson (1962) retratar o mesmo enfoque da obra de Dreyer (1928), o julgamento da virgem francesa, baseados nos autos jurídicos da época, cada filme apresenta visões distintas, por terem sido realizadas por diferentes cineastas em diferentes épocas.

Sobre as diversas versões fílmicas protagonizadas pela heroína francesa, o crítico de cinema Inácio Araújo, em artigo para o jornal Folha de São Paulo, faz um interessante paralelo.

Dreyer fez a sua [versão] na era muda extraindo tudo da expressividade de sua atriz, Falconetti. [...]. Robert Bresson fez sua versão contra a de Dreyer [...], retirando de Joana toda expressividade. [...]. A versão de Victor Fleming é pouco feliz, talvez por ter no centro uma estrela como a atriz Ingrid Bergman. Já a de Luc Besson corresponde, tristemente, eu diria, aos dias atuais. Temos uma Joana d'Arc em cena, mas poderia ser também Bruce Lee. [...] sua religião é a porrada [...] (ARAÚJO, 2006, p. 6).  

 

Com poucas palavras, Araújo consegue sintetizar as diferenças encontradas nas diferentes versões sobre a vida e morte de Joana d’Arc, levadas às telas de cinema. Entretanto, além das disparidades, muitas características em comum se sobressaem nas obras cinematográficas apontadas. Além disso, como produtos de um determinado tempo, os filmes devem ser entendidos como tal, levando-se em consideração sua produção, sua época e seu discurso implícito.

 

JOANA D’ARC SEGUNDO FLEMING

 

A obra de Victor Fleming, lançada em 1948, foi baseada em uma peça teatral que fez grande sucesso na Broadway, estrelada por Ingrid Bergman, que repetiria o papel de Joana d’Arc no filme. A atriz interpretaria novamente a heroína francesa, anos depois, na obra de Rosselinni. O filme foi vencedor dos prêmios de melhor figurino colorido e melhor fotografia colorida pela Academia, o Oscar.

A obra de Fleming, mostra-nos uma figura cálida e passiva de Joana d’Arc. Talvez pela interpretação de Ingrid Bergman, a heroina francesa pareça, por vezes, indecisa e frágil. Entretanto, é preciso compreendermos qualquer obra cinematográfica como uma realização de seu próprio tempo, carregado de ideais, conceitos e preconceitos inseridos em suas entrelinhas.

A religiosidade da personagem principal é um dos pontos mais fortes observados em sua caracterização. A própria imagem que se produz, através da fotografia criada para o filme, faz  com que associemos a imagem de Joana d’Arc à imagem da Virgem Maria. Sua própria condição casta remete-nos a tal comparação. Ingrid Bergman conduz sua interpretação criando uma Joana, por vezes, confusa e ingênua, dando luz a uma personagem virginal e pueril.

O roteiro escrito para o filme traz muitos pontos em comum com o relato de Pernoud (1996), que por sua vez foi escrito com base na documentação original do processo ao qual levou Joana d’Arc à fogueira.

Exemplo disso, é relatado, no livro de Pernoud, bem como no filme de Fleming, que Jacques d’Arc teve repetidos sonhos em que sua filha Joana fugia com o exército. Da mesma forma, o encontro entre Joana e o delfim, que a tenta ludibriar fazendo com que outro homem se passe por ele, sendo este ardil, descoberto pela virgem.

O que fica expresso, de forma indelével no filme de Fleming, é a carga de religiosidade a que Joana d’Arc se entrega. Suas falas, seus gestos e, principalmente, seu olhar, mostram uma jovem pronta a doar-se a uma causa maior, não importando o preço a ser pago. Segundo as suas palavras durante a prisão, seu resgate está próximo. O que a faz cogitar um resgate pelo exército francês, não compreendendo que se trata de um resgate espiritual, o que irá descobrir ao final do filme.

Para a Igreja, recaía sobre Joana a interpretação de que ela se vestia como homem, por meio de suas roupas e corte de cabelo, como uma transgressão. Pernoud (1996) afirma que os homens que a acompanhavam, e inclusive dormiam ao seu lado durante as campanhas, não a tinham como sexualmente desejada. O fato de Joana se vestir e agir como homem pode ser uma hipótese na qual, deliberadamente, ela destruísse qualquer perigo de desejo sexual entre ela e os homens que a seguiam.

 

Durante a viagem, Bertrand e eu deitávamos ambos com ela, e a Donzela deitava-se a meu lado, conservando o gibão e os calções. [...] eu a temia tanto que jamais ousaria desejá-la. Eu digo sob juramento que jamais a toquei com desejo físico (METZ apud PERNOUD, 1996, p. 33).

 

Mesmo em se tratando de um filme realizado há quase setenta anos, com seus figurinos de cores berrantes e seus cenários pintados, Joana d’Arc (1948) pode ser encarado como um retrato muito verossímil do que realmente aconteceu, tornando-se uma imitação  da realidade bastante crível, uma vez que estabelece uma conexão próxima aos eventos relatados por Pernoud (1996), por sua vez baseada em eventos reais e documentados.

O filme de Fleming abre dentro de uma grande igreja, onde ouvimos uma voz dizer que Joana, filha de Deus e filha da França tem seu lugar junto aos Santos. Podemos perceber, de imediato, nos primeiros momentos do filme realizado por Fleming, que sua mensagem principal é transpor para a tela, a história de Joana, a santa. Daí, a percepção da figura frágil, pura e virginal dada à heroína francesa, nessa obra. Logo após, apresenta-se na tela, um grande livro onde pode ser lido: Sancta Joanna de Arc.

Os primeiros minutos da projeção do filme nos dizem muito sobre sua mensagem. Nas cenas iniciais, surge uma voz em off, que nos diz que por disposição da misericórdia divina, Joana deve ser colocada entre os santos. Logo em seguida, por volta de 4 minutos e 40 segundos, vemos Ingrid Bergman, caracterizada como a virgem francesa, de joelhos, rezando em uma pequena igreja semidestruída.

O filme de Fleming apresenta muitos pontos em comum com o relato de Pernoud (1996). Entre esses momentos, observamos quando a mãe de Joana conta sobre os sonhos de seu pai, em que vê a filha seguindo o exército, e prefere afogá-la à permitir que Joana abandone sua família. Segundo as palavras da própria Joana:

 

Minha mãe me disse várias vezes [...] que meu pai lhe contara haver sonhado que eu, Joana, sua filha, haveria de ir-me com pessoas armadas [...]. Também ouvi de minha mãe que meu pai dizia a meus irmãos: 'Na verdade, se eu soubesse que meus receios se concretizariam para minha filha, eu preferiria que vocês a afogassem. E se vocês não o fizessem, eu mesmo o faria' " (apud PERNOUD, 1996, p. 23).

 

Joana acaba fugindo de casa, indo em busca do representante de sua comunidade, com o objetivo de ser levada ao encontro com o delfim. Após muita insistência, consegue ser ouvida pelo delfim. Além disso consegue convencê-lo de suas intenções.

Esse primeiro contato entre Joana e o delfim é comum nas duas obras cinematográficas, tanto de Fleming (1948) quanto de Besson (1999). Destacamos ainda, como pontos de comparação entre as duas obras, as cenas do chamamento ao ataque contra os ingleses, realizado por Joana d’Arc e seu comportamento após a vitória. Estas três cenas tem muito a nos dizer, pois, sendo momentos em comum nas duas obras, suas interpretações e direções distintas, acabam por nos mostrar a diferença das visões dos dois cineastas que, tal como historiadores, criam interpretações sobre o mesmo tema, o que será exposto adiante.

Seguindo na narrativa de Fleming, Joana consegue sair vitoriosa sobre os ingleses, possibilitando que Carlos VII seja coroado em Reims. Entretanto, o rei tem planos diferentes, optando pela negociação, ao contrário de Joana, que prefere a luta armada. Dessa forma, abandonada, Joana acaba caindo em batalha, fazendo-se prisioneira dos borgonheses, aliados dos ingleses.

Após sua prisão, Joana d’Arc foi julgada e condenada à fogueira. A cena final, onde Joana se encontra acorrentada, em meio ao fogo que emerge em direção ao céu, representa toda a síntese de ambas as obras. Tal cena deixa-nos à mostra a mensagem implícita que cada diretor pretende comunicar em sua obra.

JOANA D’ARC SEGUNDO BESSON

A película de Luc Besson, cineasta francês, lançada na época do aniversário dos 210 anos da Revolução Francesa, mostra-nos uma Joana d’Arc mais incisiva, colérica e, por vezes, insana. Para ela o que importa é livrar a França dos ingleses, custe o que custar.

No filme de Besson, a voz que Joana ouve tem corpo e apresenta-se a ela. Podemos, inclusive, ouvir o que é dito a francesa. Na película de Fleming não temos esta oportunidade. Tal diferença de atitude entre os cineastas diz mais do que poderíamos, a princípio, imaginar.

Fleming nos diz que ela ouve vozes, mas não há registro disso na obra. Apesar de Joana d’Arc parecer uma reprodução da Virgem Maria, estaria ela enganando a si própria e aqueles que a seguiam? Da mesma sorte, as vozes que Joana ouve na obra de Besson existem, pois o espectador é apresentado a quem a emite. Entretanto, poderia ser fruto de um surto esquizofrênico, tendo em vista a atitude desenfreada, realizada pela interpretação de Milla Jovovichi?

Diferentemente do relato de Pernoud (1996), a Joana d’Arc de Besson vê, ainda criança, sua mãe ser estuprada e assassinada por soldados ingleses. Tal fato não corresponde à realidade. Provavelmente com essa atitude, o diretor quisesse mostrar que seu trabalho seria muito mais ficcional do que histórico, tentando assim construir um caminho diferente do que os outros cineastas anteriormente tenham realizado, criando sua marca própria, mesmo polêmica.

Dessa forma, Joana é adotada pelos tios e ressurge já adulta, indo ao encontro do delfim. Da mesma forma que apresentado no filme de Fleming, Joana consegue convencer Carlos VII a colocá-la como líder de seu exército e partir contra os ingleses. Assim também, ao ser coroado, o rei da França abandona Joana à própria sorte, sendo a mesma capturada pelos borgonheses e sendo colocada em julgamento, com posterior condenação à fogueira.

Podemos observar que, inicialmente, há mais diferenças do que similaridades entre os dois trabalhos. Entretanto, tal observação só vem enriquecer a temática, uma vez que estamos diante de duas obras distintas, sobre um tema em comum, resultando em interpretações de seus idealizadores, com resultados particulares e relevantes, semelhantes a um caleidoscópio, apto a criar novas imagens sobre o objeto visualizado.

O OLHAR EM COMUM ENTRE FLEMING E BESSON

E SUAS DIFERENÇAS

 

Escolhemos tratar com uma lente de aumento quatro cenas similares dos dois filmes em questão: o encontro de Joana e seu delfim; o chamamento de Joana para o ataque contra os ingleses; a reação de Joana após a vitória francesa; e a cena final da morte da heroína.

O encontro de Joana d’Arc e seu delfim foi marcado por um embuste, na tentativa de levar Joana ao erro, desmascarando-a. Segundo Pernoud:

 

[...] o rei estava em conluio com os membros da corte e teria tentado induzir ao erro a pequena "pastorinha ", apontando-lhe, como rei, um de seus familiares, o que não impediu Joana de dobrar os joelhos diante dele, passando-lhe a mensagem para a qual tinha vindo [...] (1996, p. 42).

 

No filme de Fleming, por volta dos 32 minutos de exibição, Joana chega acompanhada e cruza o salão, sendo recebida por um representante da corte, que após gracejos a encaminha para falar com o falso delfim. O verdadeiro está escondido por trás das senhoras presentes no salão. Ao se aproximar do delfim, Joana percebe que há algo errado, afastando-se e misturando-se aos presentes, prosta-se diante do verdadeiro delfim, e quase entre lágrimas, diz: “Meu gentil delfim, vim de longe para achá-lo e nenhum outro pode tomar seu lugar.”

No filme de Besson, Joana chega acompanhada (00:32:25). Ao entrar no salão diz: “Eu vim ver o delfim.” O representante de Carlos VII, sem nada dizer, simplesmente ordena que ela siga. Chegando ao suposto delfim, Joana exclama: “Posso ver que é um bom homem, mas não é o delfim.” Sua fala causa alvoroço nos presentes, enquanto o verdadeiro Carlos VII está escondido atrás de uma coluna. Com seu semblante profundamente triste e decepcionada, Joana (Milla Jovovich) passeia entre os convidados, e defronte ao verdadeiro delfim, diz: “Meu gentil delfim. Tenho uma mensagem do Rei dos Céus para o senhor!”

Comparando-se as duas construções de realidade crível, referida por Ferro (2010), observamos uma representação mais lúgubre na obra de Besson, graças à iluminação, cenário e principalmente a música que compõe o contexto criado. De qualquer forma, tal fato não diminui a obra de Fleming, mas esclarece suas diferenças.

Na segunda cena escolhida, Joana, após pedir aos ingleses que abandonem pacificamente a França e não ser atendida, realiza um chamamento das tropas para o embate. Na película de Fleming (00:56:40), Joana (Ingrid Bergman), observa, placidamente, a fortaleza onde se encontram seus adversários, fecha candidamente seus olhos, olha para o céu (como a procurar o conselho de Deus), e como se estivesse realizando uma prece diz: “Esta é a hora, agora é o tempo. Em nome de Deus, ataquem. Ataquem com coragem! Em frente!” Com isso, os soldados sentem-se estimulados a atacar os ingleses.

No filme de Besson, da mesma forma, após pedir aos ingleses que abandonem pacificamente a França, e do mesmo modo ser ridicularizada por seus adversários, Joana chama seus soldados para o embate (1:11:30). Desta vez o discurso é outro. Joana (Milla Jovovich) diz: “Esta manhã, Deus nos deu uma grande vitória. Mas não é nada comparado ao que ele vai nos dar agora.” Observemos que a Joana de Besson atribui a Deus o sucesso dos franceses, da mesma forma que a Joana de Fleming chama os soldados para o combate em nome de Deus. Entretanto, nas próximas falas da personagem poderemos notar as nuances das diferenças da criação entre os dois cineastas. Joana continua: “Agora, aqueles que me amam, sigam-me!” Esse discurso da Joana de Besson faz explodir seu exército, e todos saem em disparada, inspirados nas palavras da francesa, contra os ingleses, ignorando, inclusive, os preparativos a serem realizados pelos cavaleiros. Tal atitude, por parte do diretor, pode ter um significado de elevação das forças mais baixas do exército francês em detrimento dos nobres, responsáveis pelo comando, como também coloca como protagonista da vitória francesa a própria Joana. No filme de Fleming os soldados devem lutar por Deus. No filme de Besson, eles devem lutar por Joana, pois é ela que os soldados amam.

A terceira cena escolhida diz respeito ao comportamento de Joana d’Arc após a tomada da fortaleza. Com o resultado positivo para seu exército, Joana observa que o preço da vitória foi alto, pois houve um grande número de baixas dos dois lados.

O filme de Fleming traz um cenário pintado de rubro (1:06:30), em uma tentativa de transmitir a ideia do sangue derramado. Joana caminha pelo campo de batalha desolada, enquanto ouvimos a música criando o clima de tristeza e destruição. Joana se aproxima e se prosta em um carro de batalha e chora copiosamente. É o espírito infantil da guerreira que aflora, quando um cavaleiro lhe pergunta por que motivo chora. Joana (Ingrid Bergman) responde: “Porque estão mortos! Horrivelmente mortos!” Ou seja, será que para Joana d’Arc o preço da liberdade não teria sido alto demais. Quantas vidas seriam capazes de pagar pela vitória da França. E continua: “E fui eu quem os matou!” Joana assume para si a culpa pelas inúmeras mortes no campo de batalha, tanto de franceses como de ingleses. “Eu achei que a vitória fosse linda, mas é tão feia e sangrenta!” Com essas palavras, Fleming reforça a imagem de virgem indefesa e passiva que carrega em sua Joana.

Besson não pintou o céu de sangue como Fleming. Sua Joana está comemorando a vitória (1:37:17) quando percebe que muitas vidas foram ceifadas em nome da vitória francesa. Aqui observamos a diferença na perspectiva das duas obras. Enquanto a Joana d’Arc de Ingrid Bergman esconde o rosto entre as mãos e chora copiosamente, a personagem interpretada pela modelo e atriz croata Milla Jovovich  tem um surto psicótico, discutindo até com seus próprios companheiros. Nesse interim, um dos soldados franceses tenta arrancar os dentes de um inimigo feito prisioneiro. Joana, ao ver tal ato de selvageria, tira um dos anéis que usa e o troca pelo soldado inglês, libertando-o em seguida. A Joana de Besson é visceral, colérica, explosiva. É a Joana da luta, do embate. Entretanto, da mesma forma que Fleming, Besson (à sua maneira) mostra que o preço da vitória pode ter um custo enorme.

Finalizando, a quarta cena escolhida mostra em definitivo o discurso escolhido por cada cineasta. As duas cenas que tratam da morte de Joana d’Arc são de extrema semelhança. Luc Besson parece ter tido a obra de Fleming como modelo, o que traz para o nosso debate um elemento de extrema importância, uma vez que, apesar da grande semelhança, Besson tomou um caminho totalmente diferente do caminho escolhido por Fleming.

No filme de Fleming, em seus momentos finais (2:23:56), um representante da Igreja diz: “Vá, filha de Deus, filha da França. Vá!” Tal discurso tenta mostrar uma ruptura dentro da própria Igreja, onde uma facção condena, deliberadamente, Joana d’Arc, e outra a reconhece como inocente e enviada de Deus. Joana (Ingrid Bergman), já devidamente acorrentada e sendo consumida pelas chamas, diz candidamente: “Doce Deus, esteve sempre comigo. Esteja comigo agora!” Em suas palavras finais, Joana repete: “Jesus! Jesus! Jesus!” Tal acontecimento vem corroborar o relato de Pernaud (1996, p. 156), que nos diz que em seus últimos momentos de vida, Joana “não parava de clamar pelo nome de Jesus”. A cena final fica por conta do enquadramento de uma cruz cristã e da imagem do céu, onde pode ser vista uma luz que penetra por entre nuvens escuras, iluminando o mundo. Configurando seu discurso, Fleming nos mostra a redenção da carne pelo espírito, onde a fé é a salvação, tornando sua Joana d’Arc uma santa, uma emissária do divino ao povo francês. Além disso, segundo Fleming, a condenação de Joana d’Arc à fogueira teria sido orquestrada por uma parte da Igreja, e não por ela como um todo. Tal facção teria agido por interesse da coroa inglesa. Dessa forma, a Igreja, como instituição, não seria a responsável pela condenação à morte da francesa, mas um pequeno grupo dentro dela.

Besson, apesar de aparentemente seguir a trilha traçada por Fleming, nos mostra o contrário. Sua cena final (2:31:48) é impressionante e reveladora. Para Besson, a Igreja é, antes de salvadora, assassina. A cruz cristã surge por trás das chamas que consomem o corpo da inquieta Joana d’Arc. Enquanto a Joana de Fleming morre passivamente entre as chamas, em uma tentativa de transformá-la em santa, a Joana de Besson morre debatendo-se, tentando a todo custo sobreviver enquanto é devorada pelo fogo, como um animal na abatedouro, prestes a ser sacrificado. Joana não é santa, mas humana, agindo como qualquer outra pessoa que estivesse sendo consumida pelo calor das chamas. Aqui não há Deus salvador, mas há uma Igreja que se refestela com o crime de um julgamento falso, que serve apenas a interesses particulares, onde os poderosos dizem quem deve ir para a fogueira. A Joana d’Arc de Luc Besson é louca, insana e violenta, tal qual a Igreja que segue e o Deus que tanto venera.

Segundo Monestier (2004), queimar criminosos na fogueira fazia com que eles fossem purificados, e seus vestígios desaparecessem. De acordo com o autor, Jona d’Arc foi queimada em uma grande fogueira, alimentada por seis a oito carretos de lenha. Entretanto, seu corpo não foi inteiramente consumido pelo fogo. Seu coração e suas entranhas foram lançados no rio Sena quase intactos.

CONCLUSÃO

As obras cinematográficas permitem uma infinidade de interpretações e uma figura tão retratada como Joana d’Arc faz com que essa exuberância de análises se multiplique. Além disso, o cinema permite que sejamos inseridos no contexto espaço-tempo ao qual assistimos. Por algumas horas somos levados aos campos de batalha da Guerra dos Cem Anos, seguimos Joana d’Arc em seus embates e assistimos ao seu julgamento e morte.

Mesmo sendo uma imitação do real, não podendo ser vista como a realidade, mas como uma tentativa de encenação da mesma, o cinema torna-se cada vez mais uma importante ferramenta do processo ensino-aprendizagem de história. É necessário que o professor, como agente conhecer das tecnologias atuais, saiba utilizar o cinema como auxílio à sua exposição em sala de aula.

A grande disponibilidade de obras relacionadas a Joana d’Arc, torna o tema rico em várias análises. Cada cineasta que resolveu se dedicar a essa temática, lançou um olhar próprio. Tal como um historiador, o cineasta coloca seu ponto de vista, exacerbando certos pontos em detrimento de outros.

Nas obras aqui comparadas, temos a oportunidade de examiná-las de acordo com a época em que foram realizadas. Para Fleming, no final dos anos 1940, a imagem da mulher, submissa e frágil, resulta em uma narraiva sobre Joana d’Arc caracterizada pela passividade e devoção. Diferentemente, a heroína de Besson, materializada em fins dos anos 1990, apresenta-se independente, ativa e belicosa.

Tudo isso torna a temática sobre as representações fílmicas de Joana d’Arc extremamente atraente para aqueles que se dedicam à História, principalmente à História Medieval.

* Este artigo foi apresentado como comunicação no IV Encontro de História Antiga e Medieval de Pernambuco. UPE. 03 - 06 out. 2017.

 

OBRAS CINEMATOGRÁFICAS

 

A PAIXÃO de Joana d’Arc. Título original: La Passion de Jeanne d'Arc. Direção: Carl Theodor Dryer. França: Société Générale des Films, 1928. 82 min.

GIOVANNA d’Arco al rogo. Direção: Roberto Rossellini. Itália: Produzioni Cinematografiche Associate, 1954. 76 min.

JOANA D’Arc. Título original: Joan of Arc. Direção: Victor Flemming. Produção: Walter Wanger. Estados Unidos: Sierra Pictures, 1948. 145 min.

JOAN D’Arc de Luc Besson. Título original: Jeanne d’Arc. Direção: Luc Besson. Produção: Patrice Ledoux. França: Gaumont, 1999. 158 min.

JEANNE d'Arc. Direção: George Méliès. Produção: George Méliès. França: Star Film Company, 1899. 19 min.

O PROCESSO de Joana d’Arc. Título original: Procès de Jeanne d'Arc. Direção: Robert Bresson. Produção: Agnès Delahaie. França: 1962. 65 min.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALVES, Giovanni. Trabalho e cinema: o mundo do trabalho através do cinema. Londrina: Praxis, 2006.

AMARAL, Flavia Aparecida. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX. 2012. Tese de Doutorado em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

ANDRADE, Meiriane Santos Oliveira. Uma donzela na guerra: a Joana d’Arc de Luc Besson. VI Encontro Estadual de História ANPUH. Salvador, Bahia, ago. 2012.

ARAÚJO, Inácio. Luc Besson cria Joana d’Arc da pancadaria. Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada, p. 6, 7 nov. 2006. Disponível em http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2006/11/07/21/

BAZIN, André. O cinema. Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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FRODON, Jean-Michel. Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada, p. 24, 17 dez. 1999. Disponível em http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1999/12/17/21/

LIMA, Daniel Rodrigues. Cinema e história: o filme como recurso didático no ensino/aprendizagem da história. Revista Historiador, [S.l.], n. 07. p. 94-108, jan. 2015.

MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no ensino de História. In: KARNAL, Leandro. História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2013.

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MONESTIER, Martin. A agonia da morte no fogo purificador. História Viva. n. 10, ago. 2004.

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SILVA, Edlene Oliveira. O cinema na sala de aula: imagens da Idade Média no filme Cruzada de Ridley Scott. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, p. 213-237, dez. 2012. Editora UFPR