MEMÓRIAS DA SEDIÇÃO DE JUAZEIRO DO NORTE RELATADAS POR UM FARIAS-BRITENSE

 

Antônio Anicete de Lima[1]; Antônio Ferreira Lima[2]; Sousa Nunes[3]; Raimundo Laurismundo Veloso[4]

 

INTRODUÇÃO

A sedição de Juazeiro foi um levante popular capitaneado pelo Padre Cícero e o Deputado Floro Bartolomeu, culminado com a destituição do governador do Ceará, Franco Rabelo, em 1914. Essa história ficou registrada na memória dos nossos antepassados do antigo Quixará e São Mateus e alguns desses fatos foram transmitidas por Aniceto aos seus descendentes de forma oral, reiteradas vezes nas noites enluaradas do sertão, sentado num banquinho de cumaru no alpendre de sua residência em Vacaria, atualmente distrito de Ibicatu, Várzea Alegre.

Os registros históricos da época relatam os embates políticos travados na Primeira República pela manutenção da hegemonia da Oligarquia Accioly, naquela época ameaçada pelo surgimento de uma oposição até então considerada frágil, mas que, com o apoio do governo federal Hermes da Fonseca, conseguiu eleger o coronel Marcos Franco Rabelo como governador do Ceará em 14 de julho de 1912.

Ao chegar ao poder, Franco Rabelo subestimou a força da Oligarquia Accioly, atraindo a fúria dos coronéis aliados à antiga oligarquia dominante e ao messianismo religioso católico, liderado pelo Padre Cícero Romão Batista, fundador da cidade de Juazeiro do Norte.

Mas a gota d’água para o início da chamada Sedição de Juazeiro foi quando o governador do Ceará, no seu intento de destruir o ‘banditismo’, enviou uma tropa de soldados para o vale do Cariri, onde dominava a Oligarquia Accioly, que contava com a lealdade do Padre Cícero.

“Cerca de 200 homens da polícia estadual efetuaram várias prisões de jagunços que estavam ligados a coronéis da oposição e que haviam prometido lealdade à família Acióli. O coronel no poder ainda destituiu políticos de confiança de Padre Cícero, que atuavam em cargos públicos, e demitiu o sacerdote de seu posto de intendente na cidade de Juazeiro. Esse fato ultrapassou todos os limites da oligarquia dominante culminando na represália comandada por Floro Bartolomeu que planejou com Nogueira Accioly a queda de Franco Rabelo” (Camurça, 1994).

Em 15 de dezembro de 1913, uma assembleia dissidente, no Ceará, declarou o governo de Franco Rabelo como ilegal, nomeando, prontamente, um governo provisório com Floro Bartolomeu como presidente. Mas, três dias mais tarde (em 18 de dezembro), Rabelo enviou tropas estaduais para uma invasão à cidade de Crato e, em seguida, a Juazeiro, sob comando de Alípio Lopes para dar fim à sedição (FGV, 2018).

 

ESTRATÉGIAS DE ANICETO DURANTE A GUERRA DE JUAZEIRO

Esse conflito foi acompanhado com muita expectativa por Aniceto Ferreira Lima, pois, nessa ocasião, a Vacaria se tornou uma das rotas dos soldados de Rabelo que vinham de Fortaleza para atacarem Juazeiro do Norte a partir de dezembro 1913. É importante ressaltar que havia muitas dificuldades de transporte e logística, já que somente em 1927 os trilhos da Rede Ferroviária Federal chegaram à cidade de Crato.

“Grande parte das tropas legais de Franco Rabelo era constituída de soldados sertanejos, ignorantes e sem condições de reagir às influências supersticiosas do ambiente e entre eles muitos eram ‘afilhados’ do padre Cícero. A maioria não usava farda e a indisciplina era generalizada. Além disso, juntamente com os oficiais, estavam embriagados, pois volumosas cargas de aguardente faziam parte do municiamento das tropas” (Andrade, 1980).

Essa tropa indisciplinada e barulhenta passou algumas vezes pelas trilhas do sertão várzea-alegrense com destino a Crato, causando pânico e apreensão, especialmente na população rural. Quando as tropas de Franco Rabelo passaram por Vacaria, indo em direção à cidade de Juazeiro do Norte, Aniceto, muito sagaz, corria até encruzilhada do caminho para evitar que os soldados se detivessem no alpendre de sua residência e lhe causassem prejuízos, roubando as suas galinhas, presas no chiqueiro e que seriam utilizadas no resguardo de sua querida Joana.

Com um lenço branco cerrado na ponta dos dedos, de longe começava a acenar e gritar de forma histérica, apontado o caminho em que deviam embrenhar-se.

- Viva Franco Rabelo! Viva Franco Rabelo!

Da mesma forma, não dava para confiar nos romeiros do Padre Cícero, já que corriam os boatos dos saques por eles realizados na cidade de Crato. Nesse caso, Aniceto utilizava a mesma estratégia, segurando uma fita amarela, e em frente à encruzilhada do caminho apontava em direção à cidade de Várzea Alegre, gritando:

- Viva o meu Padim Ciço! Viva o meu Padim Ciço...!

- Viva Nossa Mãe das Dores de Juazeiro!

E logo se apressava em ensinar-lhes o caminho que deveriam seguir. Essa estratégia era importante, pois os romeiros costumavam levar o mantimento necessário que encontrassem no caminho.

A preocupação de Aniceto era maior em relação aos romeiros, devido às notícias que chegavam de Crato, após o conflito que culminou com a tomada da cidade pelos revoltosos no dia 24 de janeiro de 1914.

 “Uma multidão de famintos e maltrapilhos invadiram a cidade incendiando e saqueando as principais casas de comércio e as residências de simpatizantes de Rabelo. Um enorme comboio com material e comida, produto dos saques, ocupou a estrada em direção ao Juazeiro. Apesar de o Cícero haver condenado os roubos, Floro Bartolomeu estimulava os saques, alegando que o vencedor tem direito aos bens do vencido” (Farias, 2015).

Segundo depoimento de Antonio Ferreira Lima, esses saques nunca saíram da memória de seu querido e respeitado médico Antonio Macário de Brito de Crato. Durante a consulta, Antonio gostava de ouvir a opinião do seu médico particular sobre a façanha dos romeiros de Juazeiro. Então,  ele fica furioso e inflamado:

- Antonio, Juazeiro só enriqueceu depois saquearam o Crato!

- As minhas tias tinham ouro e joias e os jagunços do Floro levaram tudo!

À medida que as tropas comandadas por Dr. Floro se preparavam para conquistar a cidade de Crato, as forças rabelistas chefiadas pelo capitão Ladislau Lourenço retiraram-se para a cidade de Barbalha. Diante desse novo curso de conflitos, as tropas revoltosas começavam a adentrar no interior do Ceará, ocupando as cidades mais próximas de Crato. Nesse avanço em direção à capital do estado, a cidade de Quixará seria o primeiro ponto a ser controlado, já que o principal foco do conflito naquele momento seria Barbalha de Santo Antônio.

Nesses interiores sertanejos ninguém queria indispor-se com o influente e venerado Padre Cícero, portanto muitos intendentes assumiam a posição de neutralidade ou de ativistas da causa dos revoltosos, adequando-se às circunstâncias das ocupações das tropas rabelistas ou dos sediciosos. Nesse período de tensão e conflito, coube ao Sr. Vitor Ribeiro da Silva, intendente do Quixará, atuar como pacificador das tensões políticas divergentes, mas, diante das dificuldades enfrentadas, “renunciou ao cargo por pressão dos antirrabelistas (revoltosos), que, vindos de Juazeiro para a capital, invadiram a cidade, que, embora preparada para o ataque, terminou sendo vencida. Faleceu em 9 de fevereiro de 1917”. (Menezes, 2019). Vitor Ribeiro da Silva foi intendente de Quixará no período de 1912 a 1914.

O conflito uniu política e religião em busca de manter os interesses do ‘Padim Ciço’ e da oligarquia dominante ameaçada por um governo rival que ignorou a força dos adversários, para isso todos precisavam estar em consonância com a causa dos revoltosos, especialmente à época em que os feitos e prodígios notórios do padre  dominavam o ideário da população do Cariri. É nesse contexto que toda circunvizinhança de Juazeiro do Norte foi contagiada pelo fanatismo religioso que motivou o ingresso de muitos nessa causa santa, unindo o sertanejo na missão sagrada de defender o seu mentor espiritual.

Ao longo da linha de avanço em direção à capital do estado, os revoltosos construíram piquetes e trincheiras como estratégia para emboscada e defesa das cidades. O Quixará também foi palco dessa extraordinária história que assinalou sua participação como protagonista, até então esquecido.

Floro, responsável pela organização das tropas revoltosas, teve aliados na região do Cariri, inclusive em Quixará. Em Farias Brito (antigo Quixará), os romeiros levantaram barricadas baseadas no sucesso do “círculo da mãe de Deus” construído na defesa de Juazeiro do Norte. Na grota antigamente chamada Juriti, onde havia frondosas árvores de oiticica, local onde na época do inverno as mulheres lavavam roupas, existia uma cerca natural de pedra que foi remodelada e usada por muitos religiosos: como os irmãos santíssimos e outras pessoas comuns da época que se colocavam a disposição para defenderem o ‘Padim Ciço’ a qualquer custo.

Entre os entusiastas desse grupo da grota dos Juritis se destacaram: Mestre Vicente (Vicente Veloso de Souza), Velho Tista (Francisco Aves Branco), Raimundo Padre e outras pessoas comuns do Quixará que exibiam e exteriorizavam com ansiedade sua disposição de defenderem o ‘Padim Ciço’ (como era chamado), a qualquer custo, até com as suas próprias vidas (Veloso, 2019).

Esse local ficava na saída do Quixará (Farias Brito), onde era possível ver a cerca de pedra situada à margem direita de um pequeno córrego na saída para Crato, conhecido como ‘Cerca de Pedra’. Essa cerca desapareceu durante a construção da rodovia CE 386, que liga Farias Brito a Crato em 1970, sendo totalmente descaracterizada com os loteamentos urbanos desenvolvidos ao longo da estrada. 

 

DESARMAMENTO DA POPULAÇÃO DO QUIXARÁ

O CASO PETRONÍLIO DA FAZENDA CAJAZEIRAS

Em 24 de janeiro de 1914, Crato foi ocupada pelas tropas de Floro Bartolomeu, permitindo aos revoltosos partirem intempestivamente em direção a Fortaleza com o objetivo de derrubar o governador Franco Rabelo. A passagem dos romeiros por Quixará deixou uma lembrança amarga na memória de Francisco Martins, mais conhecido como Chico Martins das Cajazeiras do antigo município de São Mateus (Jucás), devido à apreensão das armas de seu irmão Petronílio. 

Por onde as tropas do Dr. Floro passavam, mesmo nos lugares mais pacíficos, a primeira providência era o desarmamento da população, tendo como objetivo debelar qualquer tipo de resistência. Depois da conquista de Crato, reunidos em frente à antiga Capela de Nossa Senhora da Conceição, na cidade de Quixará, os revoltosos atraíam os olhares de centenas de curiosos que comemoravam a segunda vitória do Padre Cícero na conquista da cidade cratense.

Muitas pessoas colaboraram com os revoltosos como informantes, ou trazendo as suas armas para serem utilizadas na conquista de Iguatu e outras cidades. Os revoltosos tinham carta branca dos coronéis e demais aliados, podiam se arranchar nas fazendas, matar bois e outros animais para atenderem às suas necessidades e suprimentos.

As armas tinham que ser apreendidas em qualquer local do munícipio. Um dos colaborados foi Raimundo Padre, do distrito dos Barreiros (Betânia), homem de profunda fé religiosa e convicto dos milagres da hóstia consagrada que se tornava em sangue na boca da Beata Maria de Araújo, por ocasião das celebrações da Santa Missa em Juazeiro do Norte.

Nessa ocasião, Raimundo Padre informou que, na Betânia dos Martins, havia um homem chamado Petronílio, irmão de Aniceto da Vacaria, que tinha um revólver e um rifle modelo Mauser com carregador de caixa de coluna e capacidade de cinco munições recarregáveis. Isso pareceu muito agradável aos olhos do comandante, que imediatamente mandou fazer a diligência nas Cajazeiras, tendo como guia o informante Raimundo Padre.

Então, os romeiros foram até a Betânia, município de Várzea Alegre, e tomaram, sem nenhuma resistência, o rifle e o revólver de Petronílio. Chico Martins, das Cajazeiras, que era irmão de Petronílio, quando soube do ocorrido ficou extremamente furioso com a façanha do delator de Quixará, mas não pôde fazer nada, já que não conseguiria o apoio de nenhum dos políticos e coronéis da região. Mas guardou aquela mágoa no coração por 14 anos, até que um dia resolveu prestar as contas com seu desafeto em Barreiros. Essa vingança demorou muitos anos, mas tinha um motivo implícito, o pavor imposto por Floro Bartolomeu, o ‘xerife’ mais temido na região do Cariri.

Chico, o homem mais corajoso e destemido da família dos Martins, quando estava numa festa, todo mundo obedecia às suas ordens, evitando as brigas e encrencas. Na época dos coronéis, os homens valentes eram honrados pelas oligarquias locais, afinal de contas eles faziam o papel policial, sendo-lhes, às vezes, delegada autoridade até para prender, se fosse necessário.

Numa madrugada do ano de 1927, Chico saiu das Cajazeiras armado até os dentes para reaver as armas de seu irmão Petronílio e cercou a casa de Raimundo Padre, um cidadão honrado e pacífico. Seu propósito era não sair de lá, enquanto não voltasse com as armas de Petronílio.

Um grito raivoso ecoou naquela madrugada de 1927 no distrito de Barreiros.

- Chico Padre!!! Chico Padre.......! Aqui é Raimundo Martins! 

- Vim buscar o rifle e o revólver de Petronílio.

- Se não devolver ainda hoje vai levar uma surra, seu desgraçado!

O pobre homem acordou assustado e acendeu o ‘murrão’ de cera de Abelha-Irapuá, e respondeu com voz trêmula e balbuciante:

- Raimundo Martins!!! Pelas sete chagas de nosso Jesus Cristo! Faz tanto tempo!

- Tenha misericórdia de mim e da minha família!

- Eu faço o que você pedir, mas me dê um tempo para resolver isso.

Chico, enfurecido, responde lá de fora:

- O prazo é só até nove horas da manhã!

- Só saio daqui com as armas, morto ou vivo.

Raimundo destramelou a porta da casa e suplicou humildemente:

-  Por favor, Chico, poupe a minha vida!

- Vou agora mesmo até o Quixará arranjar as armas com os meus amigos José Liberalino Duarte e Manuel Pinheiro de Almeida.

- Dê-me um prazo pelo menos até ao meio-dia.

Então Chico, diante da expressão de sinceridade do seu desafeto, atendeu-lhe o pedido, mas não arredou o pé de sua residência, enquanto aguardava ansiosamente o seu retorno.

Lá pelas onze horas da manhã, Raimundo veio acompanhado de seus amigos coronéis e do padre Emídio Lemos, todos com o propósito dissuadi-lo de seus intentos funestos a fim de evitar uma tragédia. Então pararam diante do homem desvairado a uma distância de 20 metros e começaram a demovê-lo do seu mal intento. O problema é que o Raimundo Padre só tinha conseguido o rifle, mas, com muita habilidade de Manuel Pinheiro de Almeida e aconselhamento do vigário, ele aceitou negociar um prazo de mais uma semana, com uma condição - Raimundo teria que entregar o revólver na sua residência lá nas Cajazeiras. No prazo combinado a arma foi entregue, desacerbando o conflito entre os dois conterrâneos.

Essa questão só teve menor gravidade, porque todos eram vizinhos e amigos desde a infância. Em 1912, João do Recanto vendeu a sua propriedade a Pedro de Petronílio, tio de Antônio de Aniceto e foi embora para Barreiros, hoje Nova Betânia, onde adquiriu uma propriedade no município do Quixará. Depois de algum tempo, o seu irmão Raimundo Padre deixou Vacaria e foi morar no Quixará, perto de seu irmão.

Raimundo Padre era um agricultor, homem simples e pacífico, mas, como devoto de Padre Cícero, fez o que todo mundo faria se estivesse no seu lugar: sacrificar-se na consecução da missão libertadora da causa dos revoltosos.

Raimundo Padre morava no sítio Várzea, distrito de Barreiros. Casou-se com Isabel Fernandes de Oliveira, de cujo enlace matrimonial nasceram cinco filhos: Maria Lia Fernandes, Josefa Fernandes Oliveira, Chagas Fernandes, Oliveira, Francisco Fernandes Oliveira (Chico Padre) e Francisca Fernandes de Oliveira (Veloso, 2019).

Chico Martins, desde esse episódio, passou a ser um sujeito muito respeitado na região, por isso em toda festa que participava nas redondezas era o guardião da ordem, uma espécie de ‘xerife’, e todo mundo tinha medo de contrariá-lo. Ser valente naquela época era uma questão de honra; além de conferir ‘status’ na sociedade, o indivíduo tinha apoio e proteção dos coronéis, mesmo quando cometia alguma arbitrariedade.

A raiz da amargura alimentada pelo ódio é um veneno letal, com dizia o famoso Ramón "Madruga" Valdez, vulgo Seu Madruga:

“A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena”.

 

EMBOSCADA E VINGANÇA NUMA TRINCHEIRA

Durante o período do levante de Juazeiro ocorreram vários crimes, assassinatos, saques que ficaram sem punição, pois os ‘fins justificavam os meios’, porquanto a causa dos revoltosos estava acima de tudo - era ‘santa’.  Numa das trincheiras próximas à cidade de Crato, um grupo de romeiros inexperientes cometeu um desatino contra um fazendeiro simples, porém muito querido dos coronéis de São Mateus.

O fazendeiro morava próximo às terras de ‘Papai Raimundo’ e viajava com seu filho à cidade de Crato no final do mês de janeiro de 1914, logo após a tomada da cidade pelos revoltosos. Em frente a uma trincheira camuflada por arbustos, o fazendeiro viu à beira da estrada um chapéu de massa, aba larga marrom escuro, uma verdadeira pérola de uso muito comum nas melhores festas do sertão. O incauto agricultor não observou o perigo que estava a sua espreita, saltou do seu ginete alazão, e disse para seu filho:

- Segura as rédeas do cavalo, enquanto eu vou apanhar aquele chapéu!

O filho montou na sela e esperou o pai, enquanto ele se distanciava até alcançar o chapéu, preso à meia altura num arbusto de jurema-preta. Naquela manhã fatídica, um estampido ensurdecedor ecoou de forma vibrante, quebrando o silencio augusto do agreste. Uma bala atravessou o abdome do pobre agricultor, causando uma terrível cena de horror! Enquanto o cavalo relinchava e erguia as duas patas dianteiras, o homem agonizante gritou desesperado:

- Fuja, meu filho! estou morto! 

- Fuja, meu filho...! Depressa...!

O Jovem, assustado, deitou-se sobre o lombo do cavalo. Enquanto isso, mais dois estampidos fortes assobiaram por cima de seu dorso. A toda pressa ele se embrenhou por uma trilha, a fim de se despistar dos ‘jagunços’, conseguindo escapar ileso ao inesperado ataque. 

O assassinato do agricultor causou uma tremada comoção e revolta nos moradores da região, culminando no planejamento meticuloso de uma vingança que seria perpetrada em forma de emboscada ao romper do arrebol.

Foram mobilizados para essa operação 30 homens fortemente armados com rifles, bacamartes e revolveres, depois de uma espionagem cuidadosa feita por dois experientes vaqueiros da região.

O planejamento da vingança tinha como alvo principal o abjeto responsável pelo disparo, afinal de contas ninguém queria guerra contra o Padim Ciço.

Assim, ao alvorecer daquele dia sinistro de março de 1914, dois dias depois do ocorrido, o grupo responsável pela emboscada estava de prontidão, à retaguarda dos amotinados. Ocultos ainda pela penumbra da vegetação, foram se aproximando sorrateiramente e começaram a disparar.

O grupo de aproximadamente 25 homens, aturdidos com os disparos, não puderam correr nem reagir, pois, se cruzassem a cerca de pedra, poderiam ser alvo fácil dos franco-atiradores.

Na primeira chuva de balas, o chefe dos sediciosos gritou:

- Larguem as armas, vamos nos render!

- Estamos cercados pelas tropas de Rabelo!

O chefe da emboscada gritou:

- Larguem as armas, seus imbecis.

- Aqui tem para mais de duzentos homens escondidos no mato e na estrada.

O líder da emboscada decretou de forma curta e grossa a condição de vida ou morte do bando:

- Queremos apenas o covarde que matou o homem do chapéu.

Enquanto todos manobravam os rifles, houve um momento de silêncio, rompido pelo líder da emboscada:

- Ou entregam o criminoso, ou morrerão todos juntos!

Naquele momento, todos se entreolharam atônitos e o chefe dos revoltosos segurou no braço de um ‘jagunço’ trapaceiro e disse:

- Foi esse cabra safado!

- Podem matá-lo!

O homem, assustado e esperneando, ouviu a furiosa sentença de morte:

- Prepara-te para morrer, cabra covarde!

- Por que não deixou o meu pai passar em paz?!

- Tragam-me um punhal afiado. Será degolado.

Depois da execução cruel e dolorosa, os ‘justiceiros’ tomaram todas armas e munições dos revoltosos e levaram o cadáver dentro de um surrão de couro cru, a fim de ser enterrado em seu torrão natal.

 

UM SOLDADO DESENGONÇADO E CRUEL NAS TROPAS LEGALISTAS

Grande parte das tropas rabelistas foram recrutadas nos interiores do sertão, nas fazendas, vilarejos, cidades e até nos botecos dos bares, portanto era constituída de pessoas analfabetas, rudes, mas alguns sabiam manusear rifles, bacamartes, espingardas e revólveres, armas essas utilizadas tanto na caça como na defesa pessoal. Era fácil naquela época recrutar, em Monte Alegre e circunvizinhanças, de 20 a 30 homens armados com rifles ou bacamartes para resolver conflitos, especialmente disputas políticas e de demarcação de terras.

Nos relatos de Aniceto, um dos recrutas chamado Chico de Bilinha foi o único candidato voluntário da região que se apresentou às tropas rabelistas, no entanto foi inicialmente rejeitado por ser um adolescente alto e desengonçado.

O rapaz de dezesseis anos ficou encantado com a farda e as divisas estampadas nos ombros do sargento, mas o que mais o impressionou foi a quantidade de ‘espingardas’ e cartuxos que viu dentro de uma carroça. Chico implorou para seguir a tropa, queria ajudar a catar cartuxo, tanger burros e até a fazer comida, se fosse necessário. Depois de muita insistência e com o consentimento do pai, foi, então, admitido na tropa.

Durante a viagem, o sargento percebeu que o rapaz era muito afoito, desconhecia o medo e era um exímio caçador noturno. Então observou que ele poderia ser utilizado nas operações mais perigosas, especialmente onde os revoltosos armavam emboscadas ao longo das trilhas do sertão.

Deram-lhe, depois de pequeno treinamento, um rifle de cinco tiros e coloram-no na linha de frente para servir de ‘isca’. Sempre que se ouvia o estampido de tiros anunciando alguma armadilha na estrada, a sua voz ecoava estridente:

- Viva São João, viva São Pedro! Viva a tropa de Franco Rabelo!

Quando as balas assobiam aos seus ouvidos, era como se fossem exames de Abelha-Irapuá, desalojadas dos troncos ocos de aroeiras, pois nada lhe metia medo. Parece que seu ‘corpo estava fechado’, nem bala penetrava! Diante desse desempenho, ganhou a confiança da tropa.  Daí por diante já podia usar armas de fogo, tomar uns de goles de cachaça, pois se revelara como o mais destemido das forças rabelistas.

Ninguém pensava que aquele rapaz fosse cometer tamanha barbaridade! Como sempre era utilizado na linha de frente de batalha, como espécie de ‘kamikaze’, seguia à meia distância imitando o gorjeio dos pássaros do sertão.  Numa ocasião, já a certa distância da tropa nas proximidades de Crato, Chico avistou um jovem casal de romeiros que vinha das bandas de Juazeiro do Norte.

Após constatar de onde vinha e que eram devotos do Padim Ciço, ele, impulsivamente, manobrou o rifle e matou os dois inocentes de forma absurda e cruel. Quando o sargento ouviu os estampidos e gritos agonizantes, enviou soldados como reforço, porém o mais triste dessa história é que a mulher estava grávida.

Enquanto o sangue jorrava de seu ventre, Chico puxou o seu punhal afiado e dilacerou as vísceras e útero da mulher agonizante e, com frieza mórbida, tirou a criança ainda presa ao cordão umbilical e, segurando-a viva no seu braço esquerdo, gritou para os soldados que se aproximavam, lentamente:

- Tragam água, depressa!

- Tragam água, depressa...!

- Não pode morrer pagão!

- Eu te batizo no nome do...!

Estarrecidos, todos assistiram à cena, mas, infelizmente, precisavam do desgraçado, especialmente depois da derrota no primeiro embate que culminou com a contundente vitória dos revoltosos na tentativa da conquista de Juazeiro do Norte pelos rabelistas.

Os relatos dizem que Chico permaneceu incólume em todas as refregas contra os revoltosos, e nenhuma bala lhe traspassava o corpo franzino e esguio. Alguns até pensavam que ele tinha pacto com o ‘capeta’. Esse relato ficou registrado por muitos anos na memória coletiva dos sertanejos na região de Monte Alegre e Vacaria, com uma das maiores atrocidades do conflito que nunca foi investigado nem punido.

 

TRABALHO FORÇADO E JUSTIÇAMENTOS EM JUAZEIRO COMANDADOS POR FLORO BARTOLOMEU

O banditismo em Juazeiro se alastrou como fruto da proteção inicial aos ‘jagunços’, tanto pelas oligarquias quanto pelos coronéis que participaram ativamente na conquista dos revoltosos. Os criminosos que confessavam os seus delitos de menor gravidade ao Padre Cícero eram encaminhados ao Dr. Floro para um corretivo menos severo, uma espécie de ‘penitência’, sendo a mais comum carregar pedra na cabeça da Serra do Horto até Juazeiro para fazer o calçamento da cidade.

“A ‘revolta contra o povo’ relatada pelo poeta Manuel Caboclo ocorreu quando, em nome do ‘combate ao banditismo’ e após as estratégias anteriores não terem tido a eficácia almejada, Floro Bartolomeu instaurou na cidade o terror, a lei do ‘olho por olho, dente por dente’, executando publicamente os acusados de cometer algum delito, sem que as vítimas tivessem qualquer direito à defesa. A violência foi a estratégia utilizada por Floro Bartolomeu para se defender das acusações que lhe imputaram os deputados da Câmara Federal, que o responsabilizavam por transformar Juazeiro num reduto de banditismo” (Melo, 2013).

De vez em quando, Anicete, sentado no banquinho de madeira, relembrava para os filhos os horrores cometidos em Juazeiro na administração do Dr. Floro. Uma das mais temidas punições aos bandidos em Juazeiro era a ‘vala de potassa’, forrada de grampos de ferro, onde eram colocados os presos denunciados por roubo, furto, latrocínio ou homicídio doloso sem pré-julgamento. Assim, muitos morriam de forma cruel, dentro de pouco tempo.

A história mais chocante das atrocidades relatadas foi a de uma mulher que denunciou a vizinha pelo desaparecimento de uma perua. Então, imediatamente a pessoa acusada foi encaminhada para a vala, sem ter sido feita nenhuma investigação, muito menos qualquer tipo de julgamento prévio.  No entanto, no dia seguinte a denunciante voltou para dizer que tinha encontrado a perua. Então, o delegado Manoel Timóteo, responsável pelo caso, deu o veredito funesto e em cima da bucha:

- Agora já é tarde demais. A mulher já foi para a vala!

- Mas como você fez uma acusação falsa, irá para o mesmo lugar.

- Aqui não tem reza e nem choro, nós fazemos a própria lei.

Infelizmente a mulher não teve como se defender e seguiu, também, para a mesma fossa.

Esses relatos se espalhavam por toda a região e causavam medo aos bandidos e adversários políticos que ousassem afrontar a liderança de Floro Bartolomeu. Tudo era feito à margem da lei com a cobertura dos coronéis, da oligarquia dominante, mesclada pelo messianismo religioso predominante no Juazeiro do Norte. Mais tarde, Padre Cícero foi se afastando do ‘caudilho de beatos e cangaceiros’, pois, como deputado federal eleito em 1926, precisava manter a sua imagem ilibada e carismática no parlamento federal, desvinculada das atrocidades de Floro.

Os criminosos, antes de serem levados ao suplício, passavam pelas ruas de Juazeiro com uma placa de madeira nas costas exibindo a sua sentença de morte. De janelas e portas entreabertas, as pessoas olhavam desoladas a triste cena que marcou os dias sombrios da cidade. Ninguém ousava nem apanhar uma moeda perdida na rua por algum transeunte para não ser acusado e condenado injustamente. 

Essas e outras histórias de abuso de poder foram sofridas também por aqueles que eram seus adversários políticos. Zé Geraldo da Farmácia dos Pobres em Juazeiro do Norte e Dr. Floro travaram uma histórica batalha jornalística veiculada através dos jornais O Ideal (de Geraldo) e a Gazeta de Juazeiro (de Floro). O foco da discórdia era o vigário de Juazeiro, Monsenhor Macedo, amigo de Zé Geraldo e inimigo de Dr. Floro. O caudilho baiano foi tão prepotente, que chegou ao ponto de destruir as instalações da gráfica do jornal O Ideal. E seu diretor, para não morrer, foi obrigado a se refugiar na vizinha cidade de Crato (Juanorte, 2010).

O triste fim de Floro Bartolomeu ocorreu em 1926. Ele faleceu na Capital Federal solteiro e pobre, mesmo tendo recebido o título de general honorário do Exército e de deputado federal. Os crimes da “Estrada da Rodagem”, execuções sumárias de pessoas à revelia e atrocidades, permaneceram vivas no imaginário popular como uma mistura de justiçamento divino e humano, já que o silêncio dos ‘bons’ foi uma das bases para sustentação do caudilho de Juazeiro do Norte por mais de 14 anos de influência política.

Com dizia Martin Luther King:

 “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons”.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ANDRADE, J.M de. A meca do Cariri e a Guerra Santa. Revista de Pesquisa Histórica, CLIO, n. 3, p. 155-165, 1980.

CAMURÇA, M. M. Marretas, molambudos, rabelistas: a revolta de 1914 no Juazeiro. São Paulo, SP: Editora Maltese, 1994. 

FARIAS, A. História do Ceará. 7ª. ed. rev. atul. Fortaleza, CE: Armazém da Cultura, 2015. 624 p.

FGV - Fundação Getúlio Vargas. A Nova Jerusalém. Atlas Histórico do Brasil, FGV, CPDOC. Disponível em: . Acessado em: 9 de dezembro de 2019.

JUANORTE. Fundação da associação de Juazeiro. Jornal de Opinião da Metrópole do Cariri, edição 064 de 10/11/2010. Disponível em: . Acessado em: 9 de dezembro de 2010.

MELO, R. A de.  Arcanos do Verso: trajetórias da Tipografia São Francisco em Juazeiro do Norte, 1926-1982. Fortaleza, CE: Universidade Federal do Ceará, 2013. 221p.: il. (Dissertação em História Social - Universidade Federal do Ceará, UFCE).

MENEZES, C.D de. Memórias do Quixará. Disponível em:. Acesso em: 9 de outubro de 2019. 

VELOSO, R. L. História da cerca de pedra do antigo Quixará. Farias Brito, CE: Pesquisa não formal, 2019.

 

Trechos de ‘Meu Sertão, Minha Gente e Minha Vida”, 2019.

Relatores: Aniceto Ferreira Lima (1873 – 1943)

Antônio Ferreira Lima (1914 – 1910).

Colaboração – Raimundo Laurismundo Veloso.

Antônio Anicete de Lima

Antônio Ferreira Lima

Revisor: Prof. Sousa Nunes   

Ano de publicação: outubro de 2019.

 

[1] Dr. professor do IFRO, Campus Ariquemes, RO.

[2] Relator dos fatos históricos comerciante em Farias Brito – CE (‘in memoriam’).

[3] Professor de Português, Organização Educacional Farias Brito - Fortaleza, RO.

[4] Professor de Português, Chefe de Arrecadação Fiscal de Farias Brito, CE.