RELATOS DO FLAGELO DA SECA DE 32 NOS SERTÕES VARZEALEGRENSES

Por Antonio Anicete de Lima | 18/05/2020 | História

RELATOS DO FLAGELO DA SECA DE 32 NOS SERTÕES VARZEALEGRENSES

 

1. INTRODUÇÃO 

Na época da grande seca de 1932, Roberto Carneiro de Mendonça da Aliança Liberal foi nomeado interventor federal pelo presidente Getúlio Vargas, permanecendo no poder de 22 de setembro de 1931 a 5 de setembro de 1934. Era capitão do Exército Brasileiro, natural do Rio de Janeiro, tendo sido designado para esse cargo por Osvaldo Euclides de Sousa Aranha, como substituto de Dr. Manuel do Nascimento Fernandes Távora ao cargo de interventor do estado do Ceará (CPDOC, 2020).

Natural do Rio de Janeiro, não conhecedor do flagelo das secas que periodicamente assolavam as terras cearenses, não teve habilidade política para tratar adequadamente do problema da seca que nessa época, vitimou milhares de nordestinos pela subnutrição e a cólera, já que as decisões políticas de assistencialismo emanavam do governo federal e das deliberações da Assembleia Legislativa Estadual, especialmente no que se refere ao isolamento social concentrado dos flagelados da seca.

No período da grande seca de 1932, o munícipio de Várzea Alegre tinha sido extinto pelo interventor estadual Fernando Távora, através do Decreto Nº 193, de 20 de maio de 1931, quando o seu território foi anexado ao município de Cedro, no entanto, sendo posteriormente restaurado pelo Decreto Nº 1.156, somente em 4 de dezembro de 1933 (PMV, 2020).

Durante esse período para piorar a situação, o município de Várzea Alegre, estava sob intervenção estadual e tinha como interventor na cidade de Cedro, Antônio Leopoldo Serra de 24/10/1930 à 29/05/1935 (PMC, 2017). Serra era rival político do coronel Antônio Correia Lima, antigo aliado da oligarquia Aciolina, que nessa época começara a perder a liderança política na região, desde a instituição do Estado Novo por Getúlio Vargas em 1930.  

Segundo Cardoso (2010), a grande seca de 1932 iniciou-se de fato em 1926, com um breve intervalo em 1929, se configurando em verdadeiro cataclismo socioeconômico na região nordeste, cuja calamidade fez com que o flagelo, tantas vezes repetido, assumisse proporções devastadoras, principalmente à população carente.

 

2. DIFICULDADES ENFRENTADAS NO INÍCIO DA GRANDE SECA

Na entrada da seca de 1932, Aniceto passava por muitas dificuldades financeiras, pois, toda a colheita da safra de 1931 foi vendida, a fim de pagar uma dívida referente a compra das terras de seu cunhado Camilo Gino Pereira. Isso aconteceu devido a divisão de uma herança de terra, questionada por Camilo, cujo conflito gerou muita tensão, culminando numa luta corporal, entre Chico de Belinha e Higino de Anicete, resultando em um processo judicial movido por Camilo no fórum judiciário de São Mateus, contra o desafeto de seu filho adotivo.

Nessa época, Antônio Correia, genro de Aniceto, comerciante em Santo Antônio (Cariutaba), influente político do referido distrito, mediou a questão, com o auxílio do Coronel Mário Leal de São Mateus dos Inhamuns, atualmente Jucás.

O Cel. Mário Leal foi um dos políticos mais influentes da região Centro Sul do estado do Ceará, "nasceu na Fazenda Canto, Município de Cariús, na época, pertencente a São Mateus, antigo solar dos Leais. Ele era filho do abastado fazendeiro e prestigiado chefe político daquela zona, o Coronel Manoel da Silva Pereira da Costa Leal, o 'Né do Canto'. Deputado estadual em duas legislaturas, marcou presença e posição em todas as grandes decisões do Estado, principalmente nas campanhas eleitorais, sempre ao lado da família Távora, particularmente do Coronel Virgílio Távora de quem era amigo particular e compadre. Considerado o último coronel do Sertão, Mário Leal, faleceu na clínica Gêneses de Fortaleza, aos 93 anos, no dia 13 de outubro de 1990" (COSTA, 2013).

Mário Leal, se deslocou com alguns políticos de São Mateus até a Vacaria, negociando com as partes envolvidas no conflito, um acordo, no qual Aniceto se comprometia a comprar toda a herança de Camilo, com pagamento estabelecido para depois da colheita do algodão, mas, para conseguir esse objetivo, Joana Josefa Pereira, solicitou a seu filho Higino que comprasse a casa do seu tio. Mario Leal era grande amigo dos Ginos da Vacaria, leais correligionários, de 'Né do Canto' seu pai, desde da época da época do Brasil imperial.

No final do ano de 1931, Aniceto, vendeu toda a safra de cereais e algodão e quitou totalmente a sua dívida, tornando-se proprietário das terras de seu cunhado, mas, logo em seguida foi surpreendido pela grande e inclemente seca de 1932. Ainda para piorar a situação, Joana, sua esposa, adoeceu de um panarício ('unheiro'), uma doença causada por bactérias, cujo tratamento naquela época era de difícil cura, pois, ainda não tinha sido produzidos os antibióticos. Então, ele tomou emprestado 100 mil réis a Cícero Frutuoso para tratar da saúde de sua esposa em Crato, e ainda, acrescido a todos esses problemas financeiros, tinha contraído uma dívida de 80 mil reis com Pedro Rodrigues de Freitas, "influente político do antigo Quixará na década de 1930, que juntamente com o Cel. José Rodrigues da Silva e o seu filho Enoch Rodrigues, dividiram o poder até 1936, quando o Interventor Federal Francisco de Menezes Pimentel promulgou a Lei nº 268, restabelecendo outra vez a autonomia municipal de Quixará" (BATISTA & BATISTA, 2020).

 

3. A IMPORTÂNCIA DOS LAÇOS FAMILIARES E COOPERAÇÃO NA HORA DA CRISE

Mas, lá do alto, Deus, abençoa as pessoas pacíficas e honestas e não desampara os seus escolhidos. A salvação veio através de seu genro, Carlos Gomes de Alencar, conhecido como 'Carrinho', um abastado proprietário que morava no Sítio Baixio, município de Várzea Alegre. Carrinho tinha comprado um terreno quase vizinho ao de Aniceto, a propriedade tinha um amplo baixio com mais de 25 tarefas, banhada pelo Riacho Verde e um açude, cujo acúmulo de água, resistia a uma seca por até quase dois anos. Nas terras baixas dessa propriedade, Carrinho havia situado uma plantação de banana e laranja, que era regado manualmente, durante a seca.

Carrinho do Baixio, conhecendo a gravidade da seca que começava a dizimar as plantações, disse:

- Olha compadre Aniceto, o açude é para você plantar o arroz; já o sítio de banana é para você comprar o café, porém, quanto ao pomar de laranja, pode usar à vontade, e de vez em quando, leve uma carga lá para casa, quando você for a cidade.

Aniceto plantou macaxeira nos baixios, Antônio seu filho, plantou mamoeiro em volta da roça. Veio a seca, então o destemido agricultor, plantou arroz Macapá a montante e a vazante do açude. Por sorte, deu uma boa chuva nas cabeceiras do alto da Bonita, e a água encostou-se no arroz. Aniceto, formou ao redor das fileiras de plantas, pequenos diques de retenção de água e usou toda a mão de obra familiar para realizar a rega manual, formando pequenas redes de canais.

Carrinho soube do bom trabalho de irrigação e mandou por Zeba, uma quarta de arroz Vermelho e o seguinte recado:

- Compadre Aniceto vá plantando esse arroz, à medida que a água do açude for diminuindo. Esse é meu arroz preferido, além do mais, muito resistente a seca.

O arroz Vermelho era alimento proibido na antiga China, pois, era consumido somente pelo Imperador e pelos melhores guerreiros na época das batalhas. Foi introduzido no século XVI em Ilhéus, na Bahia, porém, não se adaptando a região, posteriormente foi introduzido no Maranhão, onde teve bom desenvolvimento. Em 1172, a Coroa Portuguesa passou a ter preferência pelo consumo de arroz branco, então a sua produção migrou para o Semiárido Nordestino, sendo ainda cultivado no sertão da Paraíba, no Vale do Piancó (AMARAL, 2017). 

O arroz crescia rapidamente às margens do açude, prometendo uma boa safra, por isso, Aniceto convidou o seu genro Sr. José Flor para ajudá-lo nos tratos culturais de rega, capina e pastoreio, especialmente na fase de enchimento e maturação dos grãos, devido ao severo ataque de revoadas de Chapéus-de-Couro (Casacas) que a atacavam a plantação.

Dava até para imaginar Jackson do Pandeiro espantando os pássaros e cantando em meio a revoada:

"Xô, xô, xô, xô; Casaca de couro; cantando as duas na telha; cantando as duas na telha".

 

4. HIPOTECANDO A PROPRIEDADE PARA NÃO MORRER DE FOME

O ano de 32 foi muito apertado, nessa época, Cícero Frutuoso, um dos fazendeiros e comerciante mais bem-sucedidos da região, se preocupou muito com os seus devedores, então, chamou Aniceto e disse:

- Compadre, acho com essa seca medonha, do jeito que as coisas vão, todo mundo vai morrer de fome! 

- Agora, como você me deve 100 mil réis, então, assine uma promissora e fique pagando um "jurinho", pois, no caso de morte a sua terra poderá quitar a dívida. 

Aniceto não teve saída, aceitou prontamente o acordo. Cícero Frutuoso mandou chamar José Flor, genro de Aniceto, esse lhe devia 60 mil réis. Como a seca estava se agravando e o pasto começava a aminguar, a mesma proposta de pagamento de juros lhe foi feita, porém, José Flor se sentiu muito magoado com as palavras de seu amigo, portanto, decidiu vender o gado que tinha e pagar a dívida. Essa foi uma medida muito acertada, pois, poderia perder suas rezes na seca, embora tenha vendido os semoventes por um preço abaixo do mercado.

Tio José Pereira Gino (Zé Gino), apesar de possui uma excelente propriedade na Vacaria estava passando muita dificuldade financeira, pois, a sua família era constituída de dez filhos, ainda menores de idade. Não havia trabalho na região, as notícias dos acampamentos do governo eram assustadoras, o dilema era – 'se correr o bicho pega, se ficar o bicho come'. Diante desse desafio Zé Gino procurou o seu compadre e amigo, Cícero Frutuoso e relatou a sua situação:

- Compadre Cícero não tenho mais cereais e nem dinheiro para comprar alimento! Estou numa situação muito difícil como os demais pequenos agricultores da região. 

- Teria como você me fornecer mantimento para eu pagar no próximo ano? Eu sempre fui um bom freguês e lhe paguei todas as minhas dividas.

Cícero ouviu pensativo o apelo emocionado de seu amigo, mas negócio era de alto risco, então declarou:

- Eh! Compadre a seca está cada vez mais 'braba', e vai morrer muita gente! Do jeito que as coisas vão, pouca gente vai escapar na nossa região. 

- Como sua família é muito grande, fica muito caro o fornecimento por um ano. E se você morrer, como vou receber a sua dívida?

Zé Gino esmaeceu, ficou muito pálido e suou frio.

- E agora compadre, minha família vai morrer de fome!

Cícero, comerciante arguto, coçou a cabeça e lhe falou com voz titubeante:

- Vou lhe fazer a seguinte proposta, é pegar ou largar. Vou fornecer tudo mantimento que você precisar durante todo esse ano, com a seguinte condição: você assinar um documento de hipoteca no cartório, garantido como pagamento da dívida a sua propriedade rural.

Diante das circunstâncias, Zé Gino não teve escolha, assinou o documento de hipoteca de seu imóvel, lavrando e registrando o ato jurídico no Cartório de Registro Civil da comarca de Várzea Alegre, estabelecendo-se o prazo de pagamento para depois da colheita do algodão, no final do mês de outubro de 1933, incluído uma cláusula preponderante, que a se a dívida não fosse paga no dia aprazado em moeda corrente, com os acréscimos e juros pré-estabelecidos, o devedor teria entregar a sua propriedade ao credor no valor da sua total de sua dívida. 

A medida que o tempo passa, cada vez mais a seca castigava o sertanejo e Zé Gino ficava mais endividado, pois corria juro em toda mercadoria que pegava na bodega de Cícero Frutuoso. O fornecimento terminou no início do ano de 1933, quando começaram as primeiras colheitas do feijão 'Ligeiro', agora Zé tinha que se virar, economizar, colher e vender tudo que tinha para pagar a sua dividida, mas, à medida que o tempo avançava, descobriu que seria impossível.  No final da safra, Zé Gino estava endividado, empobrecido e desesperado, pois sabia, que perderia a sua pequena propriedade, constituída por terras muito férteis de várzeas, situadas as margens do riacho Fortuna. 

Zé Gino no seu estado de desespero total, inicia a sua peregrinação batendo a porta de todos os amigos mais abastados da região, ora pedindo um conselho, ora solicitando um empréstimo, mas, infelizmente a seca deixou muita gente empobrecida.  O seu grito de angustia era de causar compaixão:

- Meu Deus! Vou ficar de esmola e trabalhando de aluguel na minha própria terra! Tô morto! 

Mas, Zé Gino, sempre foi um homem muito religioso e pacífico, nunca se meteu na vida alheia, basta lembrar o nome das suas filhas: Ceuzinha, Divindade, Floridade e Trindade que já se chega à seguinte conclusão – jamais, o Criador abandonaria um homem que apesar da sua simplicidade, cria no Deus da Providência, Jeová Jireh.  

Às vezes, a providência divina vem, de onde a gente menos espera. Aqui acontece um dos fatos mais inusitados desse dilema, pois, nas suas andanças pela Vacaria, Zé Gino foi bater à porta de seu amigo, Chico Leandro, porém, um inimigo declarado de Cícero Frutuoso. Essa inimizade, ia muito mais além das diferenças políticas, porquanto, Chico Leandro não era uma 'boa bisca', dizem que gostava de encrencas, removia marcos antigos, sempre alargando suas propriedades e chegou ao cúmulo de apropriar-se das terras de sua cunhada, após a morte de um dos seus irmãos, por esse e por outros motivos seu nome era difamado na bodega de Cícero, seu grande rival político.

Chico era um fazendeiro abastado, possui quatro propriedades rurais na região, numa delas havia um grande açude, capaz de resistir até três anos de seca. Quando Chico começou a ouvir as tristes lamentações de seu amigo Zé Gino, foi se encolerizando de tal forma que o sangue ferveu e subiu à cabeça, então falou rispidamente, dirigindo-se ao seu rival:

- Aquele canalha desgraçado, compadre, não vai tomar a sua herança, de jeito nenhum? Eu vou lhe arranjar o dinheiro, se você puder me pagar algum dia, tudo bem, se não já está pago, mas, ele não vai ter o gosto de se apossar de sua herança.

Nesse momento Zé Gino respirou fundo e sossegadamente e disse:

- Então como faremos compadre? Ele não pode saber do plano, pois poderá rejeitar.

Então, Chico Leandro lembrou-se de seu grande amigo e correligionário político da última eleição municipal, Carlos Gomes de Alencar, lá do sítio Baixio, e concluiu:

- Vou falar com o Carrinho do Baixio, deixar o dinheiro nas suas mãos e no dia aprazado, ele pagará a sua dívida, lá na bodega daquele 'bocório'. 

Assim, dito e feito, Chico, levou dentro de seu surrão de couro, dois contos de reis e entregou nas mãos de Carrinho. Atualizando esses valores, a gente fica surpreso - um Conto de Réis (Mil, mirréis) valeria atualmente a R$ 123.000,00, logo, dois Contos de Réis corresponderia, aproximadamente, 246. 000,00. Uma quantia vultuosa par um fazendeiro do sertão.

Carrinho era um dos agricultores mais abastado daquela região, por esse motivo, estava acima de qualquer suspeita e tinha ainda, um motivo a mais para fazer isso com alegria, pois, era casado com uma de suas sobrinhas, conhecida como 'Ginu' (Higina Ferreira Lima).

Naquele dia tão esperado do acerto de contas, a bodega estava lotada, parece que todo mundo veio para ouvir a triste sentença: 'Zé Gino perdeu tudo que tinha e se tornou morador de Cícero'. Enquanto atendia os seus fregueses, Cícero conversava pelos cotovelos de forma enfatuada na presença de todos:

- Hoje é último dia de Zé Gino pagar o que me deve, o prazo máximo é até o pôr do sol.

Cícero leu na presença de todos o documento de hipoteca do terreno! Ouvidas essas declarações explicitais não restava mais dúvida, as terras seriam transferidas de conformidade com o Registro de Hipoteca de Imóveis ao credor. Nesse momento faz-se entre os circunstantes um silencio de consternação, os amigos do devedor ficam cabisbaixos e inconformados com o triste veredito legal.

De repente, algo inesperado acontece, Carrinho do Baixio chega a Vacaria, apeia-se do cavalo, coloca o bornal de couro a tiracolo, e se dirige até a porta da bodega de Cícero Frutuoso. Já sentado num tamborete, ouviu silenciosamente as fanfarrices de Cícero, até que finalmente se dirigiu ao balcão e lhe falou de forma serena e tranquila.

- Meu caro amigo Cícero, quanto compadre Zé Gino lhe deve?

- Cícero de forma enfatuada lhe retorquiu:

- Dois contos de Réis! Dois contos de Réis! E o prazo de pagamento termina hoje!

 Carrinho, abriu o bornal de couro e começou a colocar os maços de dinheiro em cima do balcão. Todos ali presentes se entreolharam silenciosamente. Então Carrinho disse:

- Estou pagando a dívida de meu amigo Zé Gino, depois, quando as coisas melhorararem ele acerta comigo. 

- No momento, esse dinheirinho não me faz falta.

Cícero, ficou estupefato e começou a conferir o dinheiro, enquanto isso, Zé Gino, entra sorrateiramente na mercearia, suas pernas tremiam mais do que uma vara verde de bambu açoitada pelo vento no estio. Logo dirigiu-se a Cícero e lhe agradeceu de todo coração a sua ajuda, durante o ano mais angustiante de toda a sua vida.

Cícero ficou surpreso, aceitou o pagamento, pois, assim rezava o contrato. Zé Gino ficou 'morto de alegre' com diz o caboclo do sertão. Aquele foi dia mais feliz da sua vida. Essa foi a primeira vez na história da Vacaria, que uma grande intriga, resultou num grande ato de generosidade.

Há um provérbio antigo do século IV, registrado em sânscrito, língua indo-árico do Norte da Índia, sobre a arte de governar que diz: "o inimigo do meu inimigo é meu amigo", nesse contexto, poderia seria ser escrito da seguinte forma - "o devedor de meu inimigo do meu inimigo, também, é meu amigo".

Chico Leandro fez um admirável ato de bondade, que jamais seria esquecido pela família de Zé Gino, pois, pagou e anistiou a dívida de seu amigo, lembrando, tudo isso para vingar-se de Cícero. 

 

5. PROCURANDO AS FRENTES DE SERVIÇO EM LUGARES INSALUBRES

Na época da seca, Higino de Aniceto, filho mais velho de Aniceto, foi ‘botar' uma roça a montante do açude da Cotia, perto de Dão Quintino no Crato, onde nessa época, estava residindo padrinho Gustavo. 'A vazante de arroz era a melhor do mundo, mas, quando era a noite os ratos vinham aos bandos e deixam tudo rente ao solo - nada escapava'. Diante dessa situação, Higino voltou para a Vacaria e resolveu ir trabalhar na construção do açude do Estreito I (Lima Campos), situado no município de Icó, no leito do rio São João, pertencente à Bacia do rio Salgado, na região centro-sul do Ceará. A obra de construção ocorreu entre abril e dezembro de 1932, o açude tinha a capacidade total de armazenamento de 66,38 milhões de m3 de agua (VIEIRA, 1934). Essa era a única oportunidade de trabalho em toda região Centro sul do estado do Ceará.

Quando Higino, chegou ao acampamento do Estreito, pensou – 'tô' perdido, não conheço ninguém aqui! Mas, de repente, enquanto estava cabisbaixo, um homem apareceu em sua frente e derramou uma cuia de água aos seus pés. Então, quando ele levantou a sua cabeça, teve uma grata surpresa era seu tio, Raimundo Martins. Higino de Aniceto permaneceu por lá, até a seca acabar, comendo todo dia uma 'farinhazinha' do Pará. A comida era fácil de fazer, contava o Sr. Higino:

- Antes de sairmos para o trabalho, era só umedecer a farinha com um pouco de água e na hora do almoço o prato estava cheio e pastoso, ali mesmo sentados no chão de terra batido, agente se deliciava, pois, juntava a fome com a vontade de comer.

Por isso, sempre que algum dos seus filhos reclamava da comida, ele resmungava:

- Pirão de farinha, sem sal e sem tempero é melhor comida do mundo", referindo-se ao minguado prato dos trabalhadores do açude do Estreito.

Para construção do açude do Estreito (Lima Campos) "foi deslocada para ali, grande massa flagelada que antes concentrava-se em Buriti e Cariús, onde havia também o projeto de um açude. Aquelas pessoas eram transportadas pela estrada de ferro, como se transportava animais, em vagões fechados e eram despejadas na estação da Água Fria, de onde seguiam a pé para o Estreito. Chegando ali, aquela gente era alojada em imundas barracas de zinco ou cobertas com folhas, onde ficavam na maior promiscuidade. As necessidades fisiológicas daquelas pessoas, eram atendidas em fossas à céu aberto – grandes buracos – onde todos ficavam misturados" (LIMA, 1995).

Sr. Higino, um dos sobreviventes do acampamento do Estreito, relata que morria uma média de 30 a 40 pessoas por dia:

 "Não era de 'caçoada', dava uma caganeira danada no sujeito, que os esguichos de bosta desciam pelo fundo das calças e corriam pelas pernas, até o chão".

Essa diarreia fétida e extremamente úmida, secava rapidamente sob o sol escaldante do acampamento e servia de alimento para os jumentos, os únicos seres vivos que se mantinham incólumes, naquela tórrida paisagem do sertão.

Nessa época, os governantes temendo a invasão de Fortaleza e outras grandes cidades do Ceara, criaram Currais do Governo, tanto na capital, quanto em cidades com alguma estrutura básica e com estações de trens. Além dos campos de concentração na capital da Terra da Luz, um no já conhecido Alagadiço e um outro no noroeste da capital, no Pirambu (ou Campo do Urubu como ficou conhecido), foram instalados outros em Crato, Cariús, Ipu, Quixeramobim, Quixadá, e Senador Pompeu. Estima-se que cerca de 73.000 flagelados foram confinados nesses campos onde as condições eram desumanas, o que resultou em inúmeras mortes. Ainda durante essa seca, flagelados cearenses foram enviados para o combate nas trincheiras da Revolução de 1932 em São Paulo (Diário do Nordeste, 2008).

Também, os canteiros de obras atraíram multidões de famintos em locais sem a mínima condição de higiene, onde o lixo e os dejetos humanos se acumulavam, contaminado a água utilizada para o consumo humano, tudo isso, favorecia a proliferação de insetos, ratos e a disseminação de doenças. A comida básica era farinha e carne seca, agravando o quadro de desnutrição crônica, contribuindo assim para o surgimento de um surto epidêmico nos campos de cólera, tifo, paratifo e sarampo.

Em pouco tempo, a cólera, a varíola e a diarreia foram disseminadas no meio daquelas pobres criaturas. Soma-se a isso a fome e a sede. Calcula-se em 150 o quantitativo diário de mortos nas áreas de confinamento. As moscas se encarregavam de espalhar a doença (MONTORIL, 2017).

 

6. LEMBRANÇA DOS PARENTES QUE MORRRERAM NOS 'CURRAIS' 

 

Os cearenses foram atraídos aos "currais" pela fome e pelas promessas de assistencialismo do governo federal e estadual. No entanto, esse assistencialismo se transformou numa grande tragédia humana:

"Atraídos aos campos pelas promessas de trabalho, alimentação e assistência medica, os retirantes eram privados de sua liberdade, não podendo sair senão por convocação as obras emergenciais do governo" (UCHOA, 2020).

Quem entrava nesses currais não podia sair. Todos tinham a cabeça raspada, vestiam roupas feitas de saco de açúcar, passavam muita fome e eram controlados por senhas. As pessoas não tinham nomes, tinham números (Diário do Nordeste, 2008).

Segundo os relatos de Antônio de Aniceto, da região da Vacaria a Monte Alegre, os que morreram em decorrência da seca e de pestes nos campos de concentração do governo cearense, foram: tio Manoel Martins, no acampamento de Buriti (Crato) e suas duas filhas; tio José Martins, morreu no acampamento do Estreito, porém, os seus filhos escaparam, porque resolveram voltar para o Monte Alegre; tio João Velho, nesta época, foi embora para o acampamento de Cariús, ele nunca gostou muito de trabalhar, por isso, era 'pobre de marré deci'.

Tio João tinha uma filha muito bonita chamada Marcolina, mas, era doente, tinha fobia de gente e se pelava de medo, quando via alguém na estrada, corria rapidamente e se escondia no mato. Lembro-me da última cena, Marcolina, passando em frente à casa de papai, no meio de uma carga, coberta com um lençol esmaecido, e tio João, tangendo um burro desconchavado e magro, indo em direção ao acampamento de Cariús para nunca mais voltar.  Lá em Cariús morreram os seus quatro filhos: Juliana, Adélia, Marcolina e Joaquim, apelidado de fura Moita.

Outra vítima da cólera em 1932, no acampamento do Estreito foi tio Manoel Gino Pereira, filho mais velho de Gino José Pereira, ainda escreveu uma carta para família pedindo ajuda para retornar a sua casa, dizem que o medo dificultou a ajuda, que já chegou tarde demais, mas, possibilitou o retorno dos sobreviventes da família.

Antônio Domingo, casado com Glória de Anicete e seu pai foram sobreviventes da tragédia de 32, chegaram a Vacaria, município de Várzea Alegre, só o couro e o osso, puxando uma cachorrinha, mas, agradecidos por estarem vivos. Sr. Higino de Anicete, relata que eram feitos valados nos quais as vítimas da cólera eram jogadas e ali mesma enterradas, vítimas da miséria, não tiveram um enterro digno, mas, cuja memória jamais foi apagada pelos seus familiares até o final de suas vidas.

As viúvas do sertão, sempre olhavam à tardinha em direção ao Caminho Velho, esperando o retorno de seu esposos e filhos, pois, algumas não sabiam se tinham morrido, ou fugiram para outros estados para escaparem do flagelo da seca. Dentre aquele amontoado de gente que trabalhava na construção do açude do Estreito, alguns escaparam com vida para contar a triste história de uma malograda política de combate à seca, que até hoje e explorada pelos coronéis do sertão, como instrumento de corrupção e manutenção do voto de cabresto.

Durante o período da grande seca, Aniceto, ficou cuidando da família de Higino, nesse tempo Marcelino e Jocelina eram crianças. Todos os dias eles vinham lá para casa do vovô, ali se alimentavam e matavam a saudade de seu pai, sentados juntos num banquinho tosco de madeira no alpendre da nossa casa, ouviam as estórias das travessuras de Pedro Malasartes.

Começou muito bem o inverno chuvoso em 1933, as nuvens formam altas e belas torres, o relâmpago fuzila e o trovão bradava, quando Higino voltou do Estreito, até parece que a natureza lhe esperava festiva. Nesse tempo, Anicete já tinha plantado o milho e feijão num grande roçado que começava em frente a sua residência, perto do açudinho.

De madrugada, após a chegada de meu irmão Higino, ouvia-se os latidos estridentes dos cães no quintal da nossa casa, quando amanheceu fui olhar para ver, eles tinham acuado um grande um tatu num loca de pedra, o almoço temperado para Higino estava garantido. No dia seguinte, os cachorros estavam latindo, outra vez, atrás da casa, e não esbarravam, então papai disse:

- Vá lá Antônio, porque com uma zoada dessas, ninguém pode dormir.

Era um tatu dos 'maiores do mundo', tinha entrado numa raiz de um pau, aí foi só puxar, matar e tratar. A natureza voltava a dá sinais de vida e o sertão cobria-se de um tape verde de 'babugem'. A sobrevivência se tornava mais fácil naqueles dias, apesar dos percalços da seca, pois, no sertão quando chove há fartura e a vida brota exuberantemente.

Higino escapou por um milagre divino, pois, no final de dezembro de 1932 as chuvas retornaram ao sertão e o inevitável aconteceu através de um impressionante combinado de infecções que Barbosa, em seu célebre livro intitulado “seca de 32 – Impressões sobre a crise nordestina” distinguiu como do grupo coli-tífico-disentérico. Em janeiro, fevereiro e março de 1933 as cifras da mortandade entre os “cassacos” alcançavam números impressionantes' (BARBOSA, 1988).

 

7. UMA REFLEXÃO SOBRE A GRANDE SECA DE 32

Essa mortandade ocorreu devido à grande proliferação de moscas, contribuindo disseminação dos germes causadores de doenças gastrointestinais. As crianças e velhos, os grupos mais vulneráveis, registram a maioria dos óbitos da grande epidemia que assolou o nordeste brasileiro na década de trinta.

Vários fatores se aliaram a essa tragédia cearense: a seca, a epidemia, o confinamento concentrado, a corrupção, a manipulação política e a violência contra as liberdades individuais, pois, nos 'currais' os flagelados da seca eram mantidos sob a vigilância de um estado autoritário, com a premissa de proteção a vida e assistência social aos pobres, bem característico do populismo exacerbado de Getúlio Vargas e dos demais políticos do estado.

Esse fato traz uma marca desastrosa de descaso com a vida humana, que tende a se repetir na história em proporções muito maiores, à medida que epidemias, conflitos políticos e econômicos se disseminam no mundo. Mas, é interessante ressaltar que muitos nordestinos, preferiram morrer lutando onde havia trabalho, do que morrer nos campos de concentrações, de braços cruzados "com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar" (SEIXAS, 1973).

Nos momentos de grandes crises, aparecem sempre os travestidos de libertadores, defendendo propostas unilaterais e simplistas, que parecem ser a solução plausível do problema, aproveitando-se do estado de transe emocional fomentado pelo disseminação do medo, conseguem manipular as massas com o apoio da mídia para implantarem a contrassenso do povo, as suas ideologias e projetos de poder, atentando contra os direitos fundamentais de liberdade humana, com o objetivo de redesenharem uma sociedade na qual essa elite não sobrevive sem a autoperpetuação no poder.

Por isso, o pior uso que se faz da liberdade é abdicar dela, ou de transferi-la, ainda que temporariamente a políticos inescrupulosos. Às vezes, quando se tenta reavê-la, já é tarde demais. 

 

8. BIBLIOGRAFIA

AMARAL, C. Arroz vermelho. Um grão que veio da China. Planeta arroz, 02 de agosto 2017. Disponível em: . Acesso em: 14 de maio de 2020.

BARBOSA, O. Seca de 32: impressões sobre a crise nordestina.
2. ed. Natal, RN: Fundação Vingt-Un Rosado, 1988. 131 p.

BATISTA, C. A. A.; BATISTA, H. G. Breve história dos municípios do cariri cearense: fatos e dados. Fortaleza, CE: Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, INESP, 2020. 316 p.

CARDOSO, J. R. A. Notas sobre a seca de 32. Blog Jornastico do Rio Grande do Norte, 01/05/2010. Disponível em: <http://blogcarlossantos.com.br/notas-sobre-a-seca-de-1932/>. Acesso em: 15 de maio de 2020.

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Trechos de Meu Sertão, Minha Gente e Minha Vida

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