RELATOS DE HYGINO JOSÉ PEREIRA: DESAVENÇA IMPREVISTA E O DRAMA DA GRANDE SECA DE 1877/1879

 

1. A ROTINA DIÁRIA DA FAMÍLIA 

O Senhor Hygino José Pereira era filho do casal, Camilo Pereira e Maria Pereira, ele nasceu em 1853 no sítio Vacaria, município de São Mateus dos Inhamuns (Jucás). Era proprietário de aproximadamente 250 hectares de terra no alto sertão varzealegrense. Naquela época de tantas dificuldades de sobrevivência no sertão, o Senhor Hygino era considerado um dos mais bem-sucedidos agricultores e pecuaristas, de Vacaria ao Monte Alegre.

A família de Senhor Hygino Pereira era constituída de 14 filhos, isso lhe dava uma grande vantagem, uma vez que tinha mão-de-obra familiar, dessa forma facilitava as labutas diárias na agricultura, na pecuária e nas demais atividades da fazenda. Ele se dedicava ao plantio de culturas de subsistência, tais como: milho, feijão, arroz, mandioca e batata-doce. O algodão arbóreo, de raízes pivotantes e profundas era uma atividade importante, pois garantia uma renda extra, mesmo na época chuvas mais escassas.

Outra atividade rentável era o plantio do tabaco, cultivado nas baixadas férteis de solos aluvias, banhados pelo Riacho Fortuna.  Além do rebanho bovino, tinha uma considerável tropa de asininos e muares (jegues), destinada ao transporte de cargas, principalmente para a cidade de Icó.

É interessante salientar que em toda aquela região do sertão, os caprinos se sobressaiam devido sua resistência a seca, por isso à tardinha podia se ouvir o balido estridente da chibarrada, cujos sons se mesclavam com ovinos e mugidos de bovinos sendo recolhidos aos apriscos e currais.

Naquele tempo, como era difícil encontrar uma loja de tecidos! Era um verdadeiro luxo comprar tecido, isso só era feito raras vezes, de ano em ano, quando as colheitas eram abundantes na região. A maioria das roupas, inclusive a ceroula, era feita em um tear, usando o fio de algodão torcido no fuso-volante. Simiana, montou um pequeno tear na residência de seu pai e conseguiu muitas encomendas de redes e cobertas, porém, aconteceu um fato curioso, atraiu os olhares de um moço conhecido com Manoel Mandu das Cajazeiras. Esse namoro muito desagradou o Senhor Hygino Pereira, por esse motivo, Simiana teve que fugir com Manoel Mandu nas caladas da noite, indo morar no sítio São João, antigo Quixará (Farias Brito).

Algumas vezes, Higino Pereira ia fazer compras em Icó, uma das cidades mais importantes do interior da província do Ceará, ponto de encontro dos vaqueiros que vinham do Sertão do Cariri, da Paraíba e dos Inhamuns. Daí se estendia em direção ao litoral, a Estrada Geral do Jaguaribe por onde transitavam as boiadas dos sertões cearenses e a carne salgada, com destino aos centros de armazenamento e distribuição da cidade portuária de Aracati. A cidade ainda era cruzada pela Estrada Nova das Boiadas e comunicava-se diretamente com o Piauí e com a Paraíba (JUCÁ NETO, 2007).

Nessas viagens a cidade de Icó, Hygino Pereira levava costumeiramente os seus dois filhos mais velhos, Manoel Gino Pereira e Pedro Hino Pereira. A maioria dos fazendeiros comprava fiado, com prazo de pagamento de um ano, geralmente o acerto de contas era feito após a colheita da safra do algodão, do tabaco ou da venda do jabá. Caso o comprador precisasse garantir o negócio, então era só puxar um fio do bigode e afixá-lo nas anotações feitas pelo vendedor. O homem que fazia negócios “tinha que ser cumpridor de seus compromissos, custasse o que custasse. Tinha que ter na cara, além da barba, vergonha!" (GAZETA DIGITAL, 2020).

 

2. A ENCRENCA DE HYGINO PEREIRA COM MANOEL DE BRITO

O Senhor Hygino Pereira era um homem pacífico e trabalhador, mas não tolerava desaforos, todavia em certa ocasião, ele encontrou o que não queria, ou seja, um certo indivíduo chamado Manoel de Brito, cabra atrevido, arruaceiro, insultuoso que desfiava a vizinhança e metia o cacete nos seus desafetos. Era um sujeito forte, alto, de aparência ameaçadora, birrento, encrenqueiro com praticamente toda sua vizinhança.

Esse encontro fortuito, aconteceu depois de uma missa na capela de Santo Antônio em Cariutaba, dia 11 de junho de 1873. O desafeto e insolente Manoel de Brito se aproximou sorrateiramente, segurou as rédeas do cavalo do Senhor Hygino e disse em tom intimidador:

- Você sabia que quem manda aqui, sou eu? 

- Se prepare, porque, qualquer dia desses você vai levar uma surra! 

Naquele momento, o sangue lhe fervilhou dos pés a cabaça, mas, ele não queria enfrentá-lo de mãos abanando, especialmente depois de ter feito a primeira confissão do ano, após a sagrada missa.

Voltou para casa transtornado e com um nó bem grande atravessado na garganta, ao chegar à sua residência na Vacaria, fugiu-lhe o apetite. Naquele mesmo dia, sem o conhecimento de sua esposa Maria Teresa de Jesus, planejou de forma irascível a vingança. Essa atitude precipitada, tomada num momento de cólera lhe custou muito caro, quase o levou a cometer um homicídio, além do mais, se consumado o seu intento, isso lhe resultaria na pena de morte por enforcamento, segundo as leis vigentes no país.

A emenda no Código de 1830 de autoria do deputado Rego Barros, ratificou mais uma vez que “a pena de morte se daria por meio da forca (art. 38), sendo aplicada também aos homens livres, quando fossem líderes em crimes de insurreição, aos homicidas (art. 192) e suas circunstâncias agravantes (art. 16), e no roubo com morte (art. 271)” (BRASIL, 1830).

No dia seguinte, ainda antes da barra clarear, Hygino, encilhou o seu cavalo-baixeiro, tomou o rumo da Charneca à procura de um valentão, chamado Caetano, um ‘sujeito’ que não tolerava desaforo. O acerto da vingança custou dois mil réis (aproximadamente R$ 250,00), pagos à vista, depois de realização trabalho – uma surra de cacete no arruaceiro, Manoel de Brito, no entanto, Hygino não queria ser apenas ser um expectador na vingança, mas fez questão de participar diretamente nessa atrocidade, pois, o ódio lhe havia cegado o seu entendimento.

Manoel de Brito, nessa época, morava lá pelas bandas do Recanto, tinha situado uma lavra de fumo na vazante do riacho Fortuna e estava ansioso para vender as mudas de sua plantação. Então, Hygino pediu a Caetano, que de forma dissimulada, disse que queria comprar umas mudas de tabaco para fazer uma lavra no baixio da ribeira do Machado. No entanto, o plano era aplicar-lhe uma boa sova num lugar solitário, onde os gemidos fossem sufocados pelo matagal.

Assim como combinado, Caetano atraiu o atrevido, até a beira do riacho, enquanto isso, Hygino, seguia sorrateiramente por entre a rama da caatinga, ansioso, arfante e de olhos arregalados, conduzindo na mão um cacete de jucá. Assim, Manoel de Brito na sua insensatez, nem desconfiou, partiu em direção ao local de suplício, mas de forma previdente, seguia conduzindo à cintura, uma afiada jardineira e um facão rabo de galo. 

Ao chegar ao local combinado, Caetano disse em voz alta e irascível:

- Prepara-se para apanhar, cabra-safado! 

- Tu nunca mais vais insultar, homem nenhum! 

Manoel de Brito deu uma risada zombeteira, pulou para trás e arrastou a peixeira. Nesse instante, Hygino surge por entre os arbustos como uma jararaca enfurecida, segurando na mão direita um cacete. A luta é travada, o ‘cabra-da-peste’ é forte, não se rende facilmente, mesmo lutando contra duas feras embravecidas e com sede de vingança.

Durante o embate, Hygino tentava tomar-lhe a faca, mas na puxada súbita, a afiada lâmina lhe decepou o polegar direito. A adrenalina era forte, todavia, ele só percebeu o estrago, quando a sua cabeça esfriou, enquanto já voltava para casa.

A luta recrudesceu, o cacete caiu, até que finalmente, Manoel de Brito tomba num barranco, agora eles conseguem tomar-lhe a faca. Ele soluça ofegante, está quase sem forças.

Naquele momento, decidiram liquidar de vez com o adversário, pois, tinham medo de uma posterior vingança, caso ele escapasse com vida. O comparsa Caetano, crava-lhe duas facadas, mas num último esforço, Manoel consegue se esquivar e finge-se de morto, por sorte a faca penetrou-lhe apenas por entre as costelas.

Após a desforra, os vingadores se levantaram e fugiram, mas por sorte do destino, felizmente, Hygino não se tornou naquele dia um assassino.

Nessa luta, ficou comprovado de fato que Manoel de Brito era muito forte, pois, depois dessa sova, ainda conseguiu se recuperar, mas, nunca mais foi o mesmo, ficou com o corpo meio entrevado, dificultando a sua labuta na roça.

Esse crime praticado por Hygino, rendeu-lhe muitos anos de sofrimento e angústia. Manoel era morador de Adriano de Agostinho, este não deixou por menos, envidou todos os seus esforços para botar o Hygino na cadeia.

Tomando as dores de seu morador, Adriano, denunciou os agressores no Corpo da Guarda Nacional de São Mateus. A situação ficou complicada, a acusação de tentativa de homicídio premeditado e com um agravante, a participação de Caetano, isso lhe rendeu um grande processo e um efetivo mandato de prisão.

Agora, Higino estava em extremo aperto, acossado por Adriano e procurado pela guarda policial. Diante dessa situação complicada, ele resolveu tomar conselho com o seu amigo Neném, um político de grande influência na Câmara Distrital de São Mateus.

Como a patrulha estava na dependência dos políticos, Neném aconselhou Higino a não se render diante da guarda, era só meter medo na tropa no ato da prisão. Naquela época, os policiais da guarda de São Mateus, vestiam uma farda preta, andavam a pé e não podiam usar arma de fogo para capturar o criminoso, depois de passado o flagrante delito, a ordem era segurá-lo pela mão, pois, caso matassem alguém, poderiam ir à forca.

Diante desses fatos, Neném deu o seguinte conselho:

- Olha bem, compadre Higino, não se entregue de jeito nenhum a Guarda Nacional, senão você vai parar no xilindró!

E acrescentou:

- De hoje em diante, você passe a andar com um rifle sempre carregado, um bornal de couro cheio de balas e um facão a tiracolo.

- Agora preste atenção! Toda vez que a força chegar a sua casa e lhe der ordem de prisão, você aponte o rifle e grite forte, sem tremer: arreda o pé, senão eu toro na bala!

E assim aconteceu por diversas vezes nas tentativas de prisão, enquanto isso, Higino foi escapando da prisão. Mas, Adriano era impertinente não deixava de atiçar a polícia de São Mateus, por isso, pressionado pelas circunstâncias, Higino, resolveu acabar de vez com essa importunação que lhe atormentava noite e dia. Resolveu insanamente fazer uma tocai ao Adriano, por detrás de umas moitas de mofumbo que ficava situada na passagem do riacho, bem próximo de um lugar conhecido como Gangorra.

Elaborado o plano sinistro, armou-se de um rifle e de um facão e permaneceu na tocai, atrás de uma moita de mufumbo. De repente, surge Adriano, sozinho e de mãos abanado, o momento lhe era propício.

Naquele momento, muito ansioso e trêmulo, ele aponta o rifle em direção ao desafeto, enquadrou-o a altura do peito, mas, teve uma grande surpresa, a sua visão embaçou, viu vinte cinco ‘Adrianos’ emparelhados, então, meio confuso não sabia em qual direção disparar. Baixou o cano, mirou outra vez e a cena se repetiu.

Então, diante dessa visão, teve um pequeno momento de lucidez e pensou:

- Isso é um sinal divino, não devo levar a cabo tal intento maldito!

Naquele dia, por um milagre, Deus colocou a mão no cano da arma de Higino para que ele não se tornasse um assassino, visto que, naquela época a pena de morte ainda vigorava.

Senhor Higino era um homem muito religioso, essa briga foi uma armadilha do capeta para destruir a sua vida. Ele era um homem de bom coração, como mostram os acontecimentos posteriores. Algum tempo depois da ocorrência desse triste episódio, veio a terrível seca de 1877, que assolou a província do Ceará, de ponta a ponta. Nessa época, milhares de cearenses morrem vítima da fome e das doenças endêmicas.

A situação de Manoel de Brito era de cortar coração, não tinha onde cair morto, a fome apertava-lhe as entranhas. A sua pobre mulher, de cabelos desgrenhados e pele bastante ressequida, queimada pelo sol escaldante da caatinga, rezava para todos santos que lhe acudissem.

Foi aí que surgiu um filho de Deus que lhe deu um conselho:

- Comadre Maria, eu andei pensando, pensando, sobre a sua situação e cheguei à seguinte conclusão: do Monte Alegre a Vacaria, só há uma pessoa que poderá lhe ajudar! 

A pobre mulher de olhar tristonho e cabisbaixo, arregalou os olhos lacrimejantes e disse:

- Quem é o filho de Nossa Senhora que poderia me ajudar nessa situação de penúria?

- É Higino Pereira, pois em toda região é o fazendeiro mais abastado. 

- Pode ir lá agora, pois tenho certeza de que não lhe negará ajuda!

Diante dessa situação, não lhe restava mais nenhuma alternativa, então, resolutamente a pobre mulher, albardou o jegue alazão, munido de dois caçaús de cipó e foi até a Chapada. Muito encabulada e temerosa, a pobre e desvalida criatura, bateu a porta da casa do Senhor Higino, ao pingo do meio-dia.

Após contar a sua situação, teve uma supressa agradável! Hygno, sem titubear lhe atendeu com a maior presteza, convidou-a para sentar-se a varanda, enquanto, Dona Maria Teresa de Jesus lhe servia um café bem quentinho, acompanhado com um pedaço de beiju de mandioca. Enquanto isso, Hygino, subiu até paiol, desfolhou milho, abriu os surrões de couro batido e despejou feijão e arroz, sem pena e sem dó, atendendo prontamente as necessidades de seu velho inimigo.

Assim, com esse simples gesto de generosidade, ele jogou um balde de água fria no seu passado réprobo, daí em diante nunca mais, Manoel de Brito e nem o Adriano lhe perturbaram.

Higino contava sempre esse lamentável capítulo da história de sua vida, sentado num banquinho tosco de madeira no alpendre de sua casa, lá na Chapada, enquanto isso, o mancebo Antonio José da Silva (Antonio Gino) guardava silente, essas coisas no seu coração, planejado os rumos de seu proceder com cidadão de bem. Posteriormente, ele se tornou o principal sucessor de seu pai e o morador mais ilustre da Vacaria.

A vingança nunca é plena: mata a alma e envenena”, (Ramón Valdez, vulgo Seu Madruga (1923-1988).

Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer. Se tiver sede, dá-lhe de beber. Pois fazendo isso, amontoarás brasas sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer pelo o mal, mas vence o mal com o bem” (Romanos 12. 20-21).

 

3. RELATOS DE HIGINO JOSÉ PEREIRA SOBRE A GRANDE SECA DE 1877/1879 

Higino Pereira era considerado como um dos fazendeiros mais abastadas, da Vacaria ao Monte Alegre. No entanto, as baixas precipitações pluviométricas dos últimos anos estavam dizimando as lavouras, o gado e as demais criações, aumentando assim, a carestia, o empobrecimento e como consequência, a fome de milhares de cearense, especialmente dos mais desfortunados.

 

3.1. UMA PROVÍNCIA SEM INFRAESTRUTURA PARA ENFRENTAR A SECA

Na província do Ceará não havia praticamente, nenhuma infraestrutura básica para servir de apoio aos flagelados das secas, fenômeno esse sazonal e integrante da paisagem tórrida da região. Havia pouquíssimas obras de açudagem, barramentos e poços, afetando assim drasticamente as populações mais afastadas das áreas que margeavam as ribeiras do Jaguaribe, Cariús e Salgado.

Na região da Vacaria não há registro de nenhuma construção barragem ou açude, naquele período da Grande Seca de 1877/1879. O único local que retinha água no subsolo por mais tempo era na chamada ‘Cacimba do Gado’, onde no leito do Riacho Fortuna, aflorava uma rocha de granito no sentido transversal que retinha água, formando uma barragem subterrânea natural. Esse tipo de barragem natural, conhecida hoje como barragem subterrânea, pode ser feita atualmente com lonas plástica, escavando-se o leito seco do rio até a camada de argila menos permeável. A lona é colocada no sentido vertical do dique que é preenchido com o solo nas camadas mais profundas e com areia, esse tipo de barragem subterrânea, armazena até 30% de água por volume de solo, garantindo recursos hídricos de boa qualidade durante o período da seca, com baixo custo de implantação.

Os governos de algumas províncias, diante das constantes calamidades das secas nos sertões, começaram a incentivar os proprietários na construção de açudes com é narrado por FRANÇOIS MOLLE (1994, p. 19):

"Em 1832, ou 1833, o conselho da província [do Ceará] propôs uma resolução que pelo o poder legislativo foi convertida em lei, a qual concedia gratificação a quem fabricasse um açude de certas dimensões. Abusou-se muito da benéfica disposição dessa lei, porque muitas gratificações indevidas concederam-se. Mas, enfim muitos açudes, construíram-se no espaço de alguns anos. A verdade é que, desde 1845, com o escarmento da seca desse ano, o número de açudes cresceu, embora a lei de gratificações tivesse sido revogada por causa do abuso dela e nosso estado climatológico melhorou, de sorte que o Ceará gozou de seguintes anos de boas chuvas

Naquela época os locais de armazenamento eram precários, o milho era recolhido em paióis, o feijão e o arroz em surrões de couro cru. Para conservar os cereais do ataque do caruncho (Zabrotes subfasciatus), muitas vezes, Higino Pereira enterrava os grãos nas areias escaldantes do Riacho dos Porcos, correndo o risco de perda total, quando ocorria uma chuva imprevista.

Diante dessa situação, a Grande Seca, de três longos anos de 1877/1879, causou uma grande tragédia no Ceará, culminando com a morte de mais de 70 pessoas na Vacaria e circunvizinhanças.

Foram quase três anos seguidos sem chuvas, com perda de plantações, mortes de rebanhos e miséria extrema. Centenas de famílias migraram para outras cidades e outros estados do país. Fortaleza, converteu-se na capital do desespero. De 21 mil habitantes pelo censo de 1872 passaram a ter 130 mil. A fome, o desespero, os surtos de varíola e cólera levaram a óbito, aproximadamente 500 mil pessoas sendo o Estado do Ceará o mais atingido (GARCIA, 2010).

 

3.2. MIGRAÇÕES PARA AS PROVÍNCIAS DA REGIÃO NORTE

A grande seca de 1877 e 1890, afetou a província do Ceará provocando intensas ondas de migração. Diante dessa situação os dirigentes cearenses estimularam a migração para outras províncias, especialmente as situadas a oeste do Ceará - Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas - receberam a maior parte do fluxo migratório. Nos portos de chegada, os trabalhadores foram acolhidos e utilizados como força de trabalho em obras públicas, colônias agrícolas e seringais, porém, os desvios de verbas esgotaram a capacidade de acolhimento em outras províncias, causando conflito e pânico em Belém e Amazonas (BARBOZA, 2015).

Pompeu Filho (1893) afirma que, entre mortos e emigrados, a província perdeu cerca de um terço de sua população, aproximadamente 300.000 habitantes a menos. Em 1879, continuou a estiagem, e as chuvas só ocorrem em abril de 1880. O referido ao autor, assim descreve a situação do que ocorreu no Ceará: “A província ficou arruinada; sua principal indústria, a criação de gado, quase extinta; a população dispersa e reduzida; a flora em parte morta” (POMPEU FILHO 1893: 34).

Foi no estado do Amazonas, com extensa área territorial que os migrantes cearenses, encontram maior oportunidade de trabalho nos seringais, onde foram mantidos em isolamento total na imensa floresta Amazônica, ficando muitas vezes a mercê dos seringalistas da região.

 

MIGRAÇÕES PARA AMAZÔNIA NO PRIMEIRO CICLO ÁUREO DA BORRACHA 

Nessa calamitosa época, Joaquim Ferreira Lima, um dos filhos mais velhos de Martins das Cajazeiras, migrou para Amazônia, seguindo a trilha de milhares nordestinos, no entanto, essa aventura não teve mais volta, pois, foi brutalmente assassinado por um seringalista, quando tentava acertar suas contas, antes de regressar ao seu torrão natal.

Outro vacariense desiludido, após a Grande Seca de 1877, que migrou para a região Norte foi Miguel Correia de Lima e sua esposa Joana de Lima. Eles foram atraídos pela a propaganda de enriquecimento fácil com o ‘ouro branco’, o látex, extraído dos seringais nativos, cujos preços estavam em alta no mercado internacional.

A família foi embora para o Pará, mas foi acometida pela maleita[1] e morreram nos seringais nativos da floresta Amazônica, porém, dois de seus filhos adolescentes escaparam com vida, Maria Joana de Lima (Correia) e seu irmão João Correia de Lima (João Velho).

Os filhos órfãos foram trazidos de volta pelos tios ao Ceará, sendo criados separadamente, Maria Joana de Lima foi acolhida pela família de seu primo, Cícero Frutuoso. No de ano 1927, ela se casou com Clementino Rufino de Lima e desse enlace matrimonial, nasceram: Marcial Rufino de Lima, Adalgisa Joana de Lima, Antonio Rufino de Lima, Valdelice Maria de Lima, Noélia Maria de Lima, Raimundo Rufino de Lima, Geraldo Rufino de Lima, Francisco Rufino de Lima, Miguel Rufino de Lima, José Rufino de Lima e Margarida Maria de Lima.

Motivados por esse sonho de ganhar dinheiro nos seringais nativos da Amazônia, ainda o início do século XX, quatro jovens varzealegrenses, Carlos Gomes de Alencar, Manoel Dantas, Antonio Dantas e Fiuza, partiram do Sitio Baixio, município de Várzea Alegre, rumo ao vale do Guaporé, na divisa entre Rondônia, Acre e Bolívia.

Esses foram os únicos varzealegrenses, registrados nessa pesquisa que tiveram sucesso nessa viagem à região Norte. Arriscando a suas vidas na imensidão da floresta Amazônica, expondo-se diariamente a todos tipos de perigos que jamais imaginaram: doenças endêmicas, animais selvagens e peçonhentos, conseguiram sobreviver para contar as suas proezas.

Carlos Gomes de Alencar por problemas de saúde, devido a febre amarela, retornou mais cedo, antes de 1920, com o dinheiro ganho com suor do seu rosto, comprou uma propriedade no sítio Baixio, município de Várzea Alegre. Manoel Dantas e Antonio Dantas, casaram quando ainda estavam nos seringais do Abunã.

Manoel Dantas de Souza, casou-se com Francisca Vidal Sobreira e Antonio Dantas de Souza, amasiou-se com uma mestiça indígena, descendentes da tribo Karipunas e tiveram dois filhos. Os irmãos Antonio Dantas e Manoel Dantas e Fiuza, voltaram a Várzea Alegre em 1923, após os preços da borracha despencarem no mercado internacional, diminuindo a lucratividade do látex extraído da seringueira.

Manuel Dantas, ao chegar de volta ao Ceará, comprou a propriedade de sua antiga patroa, Maria de Figueiredo Corrêa, situada a leste da lagoa do Baixio; Carlos Gomes de Alencar, ao regressar ao Ceará, adquiriu a parte oeste da lagoa do Sítio Baixio; Antonio Dantas de Souza, comprou uma fazenda em São Vicente e Fiuza, comprou terras no Coqueiro, perto de Várzea Alegre.

 

RETIRANTES NO MARANHÃO – UMA VIAGEM SEM RETORNO

Outros retirantes da Vacaria foram para o Maranhão, onde se estabeleceram nas regiões dos Cocais, lugar onde prevalece uma vegetação transicional entre o cerrado, a Floresta Amazônica e a Caatinga, rica em palmeiras, em especial o babaçu e a carnaúba (WIKIPÉDIA, 2020 a).

Terra exaltada na Canção do Exílio pelo poeta Gonçalves Dias:

"Minha terra tem palmeiras, 

Onde canta o Sabiá; 

As aves, que aqui gorjeiam, 

Não gorjeiam como lá".

Isabel Cabocla, da Vacaria foi uma dessas pessoas corajosas que embalada pelo sonho dessa ‘terra de palmeiras’, se aventurou a procura de um lugar, livre do flagelo da seca, onde pudesse criar a sua prole. Seus planos eram de voltar, logo que as coisas melhorassem.

Antes de sair, ela chamou seu Hygino Pereira, e entregou-lhe os documentos de suas terras para que ele os guardasse até a sua volta, no entanto, os anos se passaram, nem Isabel e nem os seus filhos retornaram à Vacaria, então, Hygino Pereira tomou posse dessa propriedade, valendo-se da lei de Usucapião, instituído pelo Código Civil de 1916.

A lei a usucapião (do latim usucapio: "adquirir pelo uso") é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade sobre um bem móvel ou imóvel em função de haver utilizado tal bem por determinado lapso temporal, contínua e incontestadamente, como se fosse o real proprietário desse bem” (WIKIPÉDIA, 2020 b).

Muitos anos depois, já na década de 60, apareceram os filhos de Isabel Cabocla na Vacaria, reivindicando a Antonio Hygino a posse da propriedade de sua mãe, no entanto, pelo decorrer do prazo, já tinha sido cumprida o direito de usucapião, pois essa propriedade desde de 1930, tinha sido inventariada em nome dos herdeiros de Hygino Pereira.

Antonio Higino por força da sua própria consciência, resolveu de espontânea vontade, fazer um ressarcimento em dinheiro aos filhos de Isabel, acordo esse aceito e registrado no cartório de Várzea Alegre, por isso, essas terras pertencem até o dia de hoje aos netos e bisnetos de Hygino José Pereira.

A seca de 1877 foi devastadora na região de Vacaria a Monte Alegre, pois, além de causar inanição, cegueira, morte, foi acompanhada de terrível surto de cólera e varíola. Uma das vítimas mais conhecidas desse surto epidemiológico de cólera foi Ingraça Martins, filha de Raimundo Martins, ela foi sepultada nas Cajazeiras a beira da estrada, próximo a residência de seu avô, Martins Ferreira Lima, a seu tumba permanece ali incólume, até hoje.

A cólera é uma doença causada pelo vibrião colérico (Vibrio cholerae), uma bactéria em forma de vírgula ou bastonete que se multiplica rapidamente no intestino humano produzindo uma potente toxina que provoca diarreia intensa. Ela afeta apenas os seres humanos e a sua transmissão é diretamente dos dejetos fecais de doentes por ingestão oral, principalmente em água contaminada (WIKIPÉDIA, 2010 c).

 

3.3. A TRAGÉDIA DA SECA NA VACARIA

Antonio de Aniceto contava que seu avô materno, Higino Pereira, enterrou setenta pessoas só na Vacaria. Os locais onde foram enterrados como indigentes, as vítimas calamidade da seca, podem ser localizados ainda hoje pelas descrições de Antonio: quarenta, foram enterradas atrás da casa de seu Higino, próximo ao local onde morou Gino de Aniceto; quatorze pessoas foram enterradas na Tereza Cega, próximo a Grota Funda, na divisa dos sítios de laranja dos irmãos Antonio e Victor, tendo como referência o pé de oiticica do riacho Fortuna.

Somente da família de Manoel Lopes, Higino Pereira enterrou seis pessoas, debaixo de um pé de tamarindo, bem próximo a residência de Gonzaga. Por esse motivo, diziam os moradores mais antigos, que lá se viam assombrações e vozes de almas penadas, especialmente nas luas cheias e minguantes.

Um fato curioso que merece ser investigado, quando Higino de Aniceto, cavou os alicerces para construir uma casa na Teresa Cega, no início da década de 30, descobriu várias ossadas nesse lugar. O seu pai Anicete, havia lhe prevenido que aquele local era um antigo cemitério de flagelados da seca. Ao cavar os alicerces, os ossos foram removidos e depositados em um formigueiro nas proximidades da casa que fora construída por Hygino de Aniceto. Esse local histórico, deveria ser preservado e nele ser construído um memorial, em homenagem aos flagelados, que tombaram durante o período da grande seca de 1877/1879.

O texto de um jornal da época dizia: “O povo está desesperado. A fome vai acabar gerando a violência”. Viam-se jovens mulheres, cobertas de trapos, desgrenhadas, os pés ensanguentados, a pele terrivelmente queimada, caindo pelas ruas. Os homens, levando duas ou três crianças, andavam dezenas de quilômetros. Vendiam até as próprias roupas do corpo em troca de alguma coisa para comer. Muitas pessoas ficaram cegas, pela exposição contínua ao sol. Apareciam casos de cólera, de febre amarela e de varíola (NANNI, 2009).

As notícias da terrível calamidade ecoaram no paço do palácio imperial, então, o imperador D. Pedro II, condoído com a situação de penúria foi ao Nordeste e prometeu vender “até a última joia da Coroa para amenizar o sofrimento dos súditos da região”. Não vendeu, porém, enviou engenheiros para a construção de poços e estradas (GARCIA, 2010).

Os alimentos que chegavam a Fortaleza, dificilmente alcançavam os mais necessitados, especialmente nos rincões mais isolados da província. Animado com essa notícia, Manoel Higino, um dos filhos mais velhos de Higino Pereira, foi juntamente com o Velho Neném a Fortaleza, atrás de ajuda do governo imperial. Partiram da Vacaria com uma tropa de 15 burros e viajaram muitos dias pelos sertões secos e escaldantes.

A viagem era perigosa, pois havia riscos constantes de saque, portanto, para asseguram a sua empreitada, levaram em sua companhia um cangaceiro armado com duas pistolas e um bacamarte.

Dizem que eles conseguiram trazer oito cargas de farinha e duas de jabá, um pequeno quinhão para uma tão longa e perigosa viagem. Na volta para casa, um pobre esfomeado intentou um saque, mais foi afugentado com um disparo de bacamarte.

Naquele período de seca, muitos animais morreram de fome, até o gadinho de leite teve que ser consumido. Somando-se a todo esse quadro caótico da seca, os rebanhos de animais sobreviventes sucumbiram diante da ação de zoonoses, furtos, fome e sede. A flora e a fauna da região praticamente desapareceram (GARCIA, 2010).

Martins Ferreira, ainda salvou uma vaca leiteira, alimentando-a com mandacaru e xiquexique assados numa fogueira. Mas um dia o animal desapareceu e depois de procurar por todos os recantos, avistou de longe que a vaquinha já estava sendo esfolada na Grota Funda por um bando de famintos, então, ele voltou emudecido e trêmulo, pois temia até pela sua própria vida.

 

3.4. O CASO DA MULHER QUE MORREU EMPANZINADA DEPOIS DE MATAR A FOME

O Velho Eufrásio, morador da Chapada e pai de Benedito, tinha nessa época muitos bens e consegui escapar com muito esforço umas vaquinhas, utilizando os recursos da caatinga e de uma vazante, situada na confluência dos riachos dos Porcos e Fortuna.

Esse bravo nordestino era considerado rico, porém, muito pão-duro. Dizem que tinha muita prata, e com medo de ser roubado, carregava o metal sempre na sua algibeira, mesmo quando ia para roça. Porém, nessa época de calamidade a situação era de perigo. O velho Eufrásio, deixou o bornal na cabeça de uma estaca - e foi roubado, enquanto, distraído, arraçoava os animais na vazante do riacho. Mas dessa vez, ele teve sorte, pois, Higino Pereira conseguiu capturar o larápio na subida da ladeira dos Belizários, devolvendo posteriormente as suas pratas.

A fome na região, cada vez mais se agravava, enquanto isso, Eufrásio assistia insensível a miséria que rodeava os seus próprios familiares, uma de suas irmãs a mais pobre, já estava em estado avançado de inanição, quase à beira da morte. Muita gente tentou convencê-lo a matar uma das reses para saciar a fome de sua irmã, porém, ele era muito apegado as coisas materiais. Finalmente, depois de muita peleja, o velho foi convencido pelas palavras de seu grande amigo, o compadre José Alves, então, decidiu matar a vaquinha, Estrelinha.

A irmã de Eufrásio já muito desnutrida, mas esfomeada, avançou vorazmente sobre o prato de pirão de costela bovina, sem pena e nem dó, dizem que comeu ‘até a gata miar’. No entanto, as consequências dessa gula lhe foram funestas, o intestino estava quase fechado pelo estado de inanição, daí empacou de vez, morreu de barriga cheia. 

A notícia correu célere pela região: “uma mulher morre de barriga cheia, numa época de fome”! No momento do velório, entre choros e lamentos, alguém observou os sussurros espremidos do velho Eufrásio no parapeito do alpendre e tentou consolá-lo, dizendo:

- Não fique se sentido culpado pelo o acontecido! 

- Pelo menos a sua irmã, não morreu de fome, mas de barriga cheia!

O velho ergueu a cabeça e com os olhos lacrimejantes, sussurrou:

Eu não estou chorando pela minha irmã, mas com pena da vaquinha que matei! 

- Parece que estou vendo os dois olhos da Estrelinha me olhando, pedindo para não ser morta!

Por muito tempo essa história foi lembrada na região como, ‘lágrimas de eufrásio’, ou com se diz popularmente, ‘lágrimas de crocodilo’.

O avarento, por mais dinheiro que tenha guardado, aparenta viver sempre na pobreza. Ele nunca demonstrar o que possui, para deixar claro o fato de nada ter para doar” (Ivan Teorilang, pensador).

 

3.5. DRAMA FAMILIAR POR FALTA DE COMIDA - CORRUPÇÃO E DESVIO DE ALIMENTOS 

Os antigos moradores da região contavam que certo viajante, um dia estava passando em frente a uma casa, então, ouviu um grande pranto, desapeou da sua mula para saber o que estava acontecendo. Era uma família faminta e desesperada, não tinham mais nada para comer, já fazia alguns dias.

O homem meio assustado, dirigiu-se até entrada do ranchinho de taipa e perguntou - o que estava acontecendo. De repente apareceu na janela, um sujeito desgrenhado e raquítico, explicou-lhe que a família estava muito faminta e extremamente desesperada, tinham acabado de decidir que uma das suas filhas seria abatida com um animal para aplacar a fome. O viajante estarrecido diante de tal revelação, profundamente consternado, ofereceu-lhes a sua própria mula em sacrifício, em lugar da pobre criatura.

Frutuoso de Santa Teresa, dizia que na época da Grande Seca, resmungava com fome nos ouvidos de seu pai:

- Eu quero batata de farinha de soba (maniçoba).

Seu pai lhe respondia asperamente:

- Corno besta, não tem nem de soba, nem que chega.

Enquanto toda essa calamidade solapava a vida dos cearenses, os recursos enviados pela coroa eram insuficientes e desviados pelas autoridades constituídas. Em São Mateus dos Inhamus (Jucás), os recursos já chegaram tardiamente, mas os políticos ambiciosos retiveram a farinha armazenada em velhos galpões, a beira do rio Jaguaribe, com o propósito de venderam a mercadoria, após a normalidade das chuvas

Mas a natureza, de forma imprevisível promoveu no início de janeiro de 1889 numa chuva torrencial, de tal forma que água prorrompeu pelas biqueiras e inundou o armazém, molhando e fermentando toda farinha estocada. Os responsáveis pela mercadoria preocupados com a repercussão política do caso, durante a calada da noite, despejaram o mantimento estragado no rio Jaguaribe, próximo a cidade de Jucás, por isso aquele lugar é conhecido até hoje como o poço da Farinha.

Esse quadro de descaso, sempre se repetiu em todas a secas que assolaram o Nordeste, pois, dinheiro na mão de políticos inescrupulosos é sempre surrupiado, sem nenhum senso de culpa e sob a proteção sórdida da impunidade.

Os relatos dos dramáticos dos fatos ocasionados pela seca chegaram à Corte, assim como às demais partes do Império, pela imprensa. O Parlamento nacional também repercutiu as consequências do flagelo. Fome, morte, fuga desesperada, ineficácia dos “socorros públicos”, desvios da ajuda enviada e corrupção, repercutiram negativamente em uma sociedade que se considerava civilizada e ilustrada e que acreditava na ciência como o caminho seguro para o progresso, enquanto a seca representava a barbárie, reduzindo aquelas populações aos seus instintos mais primitivos (GONÇALVES, 2018, p. 525).

Higino Pereira e Martins, escaparam da grande seca, porque eram os mais abastados da região, no entanto, a situação foi muito difícil naquela época, inclusive, chegaram a perder quase todos os seus animais, vitimados pela fome. As duas famílias escaparam as duras penas, plantando batata-doce nas vazantes e comendo raiz de maniçoba, plantadas no sertão com intuito de extração do látex.

 

4. RESSENTIMENTO GUARDADO ATÉ QUASE A MORTE

José Higino Pereira morreu em 1929, aos 76 anos de idade, vítima de doenças provocadas pelo tabagismo. Ele a sua esposa, Josefa Pereira tinham o hábito de pitar o cigarro de palha e o cachimbo de barro, esse último acesso no borralho.

Quando ia ao roçado, Hygino conduzia sempre, a tiracolo no seu bornal de couro cru, um pedaço de rolo de fumo, um cornimboque de chifre de veado com chumaço de algodão, um pedaço de ferro e uma pederneira de granito, cujo atrito de ambos, produziam a faísca na pluma do papa-fogo, utilizada para ascender o seu cigarro de palha.

Quando o velho Higino, sentiu que o seu fim se aproximava, mandou, Antonio José seu filho, ao sítio São João, município de Quixará (Farias Brito) com o propósito de negociar uma reconciliação com o seu genro Manoel Mandu e a sua filha Simiana.

Essa mágoa de Senhor Hygino era antiga e foi alimentada por motivos fúteis de racismo, inculcado na sua cabeça no período da escravidão, pois, vivenciou essa época de obscurantismo escravocrata. Hygino, rejeitou o namoro do casal, alegando simplesmente que Manoel Mandu tinha a pele morena e sua filha Simiana, branca.

Simiana, chegou a Vacaria mais cedo que o esposo, ainda pode conversar com pai no leito de morte e foi perdoada.  No entanto, Manoel Mandu não teve a mesma sorte, ao pisar os pés no leito seco do riacho Fortuna, recebeu a notícia fatídica de um portador da família:

O velho Higino da Vacaria, acabou de falecer!

Assim, o velho Hygino da Vacaria, perdeu a oportunidade de redimir totalmente a sua culpa, mas, sua intenção foi honesta, por essa atitude, o seu genro o perdoou de todo coração.

Por isso dizia o poeta e pensador Régis L. Meireles: 

I - “Antes tarde

Que nunca...

Que o nunca

Seja pra morte,

Que o antes seja pra sorte.

II - Antes tarde

Que nunca...

Que o antes seja agora

Que o nunca seja o ontem”.

Um dos últimos desejos de Higino era ser enterrado bem próximo ao portão de entrada do cemitério de Cariutaba. Ele queria que o povo pisasse na sua cova e nunca se esquecessem do velho Higino Pereira, o Senhor da Vacaria.

Apesar de tudo, Hygino Pereira, conseguir sustentar a sua família de 14 filhos e sobreviver no sertão do Ceará durante a grande seca de 1877 a 1879, por esse motivo, o grande escritor e sertanista, Euclides da Cunha, disse a célebre frase:

- “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” 

 

5. REFÊRENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOZA, E. H. L. Retirantes cearenses na província do Amazonas: colonização, trabalho e conflitos (1877-1879)Revista Brasileira de História, v. 35, nº 70, p. 132-155, São Paulo, 2015.

BRASIL. Código de 1830. Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 15 de setembro de 1830, p. 511-2.

GARCIA. F. A Grande Seca de 1877-1879. Fortaleza em Focos, 15 de dezembro de 2010.

GAZETA DIGITAL. Negócio no "fio do bigode". Cuiabá, MT: Gazeta Digital, 2 de setembro de 2020. Disponível em: . Acesso em: 20 de setembro de 2020.

GONÇALVES, P. C. O mandacaru não floresceu: a ciência positivista a serviço do combate à seca de 1877-1879. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.25, n.2, abr.-jun. 2018, p.515-539.

JUCÁ NETO, C. R. A urbanização do Ceará setecentista. As vilas de Nossa Senhora da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. 2007. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

MOLLE, F. Marcos Históricos e reflexões sobre a açudagem e seu aproveitamento. Recife: Série Hidrologia, 1994.

NANNI, R. O drama das secas - 1958. Disponível em: . Acessado em: 18 de fevereiro de 2020.

POMPEU FILHO, T. Ensaio estatístico do Ceará. Fortaleza: Tipografia do Jornal A República, 1893.

WIKIPÉDIA. Ciclo da borracha. Disponível em: 

WIKIPÉDIA. Usucapião. Disponível em:<https://pt.wikipedia.org/wiki/ Usucapi% C3%A3o#cite_note-1>. Acessado em: 03 de setembro de 2020 b.

WIKIPÉDIA. Cólera. Disponível em: . Acessado em: 18 de novembro de 2010 a.

Meu sertão, minha gente e minha vida.

Porto Velho, 16 de setembro de 2020. 

Autores: Antonio Anicete de Lima e Antonio Ferreira Lima (in memoriam)

 

[1] Maleita, impaludismo, paludismo e febre terçã ou quartã, a malária apresenta sintomatologia típica, quase inconfundível (1). Manifesta-se por episódios de calafrios seguidos de febre alta que duram de 3 a 4 horas. Esses episódios são, em geral, acompanhados de profundo mal-estar, náuseas, cefaleias e dores articulares. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252003000100021.