Há muitos anos, uma jovem menina foi acolhida por uma amável família, fugida do pai que a maltratava. Esse casal, apesar de já ter filhos, registrou a mocinha como se fosse sua filha biológica e proporcionou-lhe uma vida feliz e repleta de afeto.

Essa história faz parte da vida de muitas crianças que são acolhidas afetivamente pelo mundo afora. Não raros são os pais que comparecem aos cartórios querendo, de forma voluntária, registrar o filho da sua companheira como se seu fosse, mesmo que biologicamente não o seja. Tais situações são vulgarmente denominadas de “adoção à brasileira”.

Ocorre que o Código Penal Brasileiro, em seu art. 242, tipifica a conduta de registrar como seu o filho de outrem, e prevê uma pena de dois a seis anos aqueles que assim procederem. Ou seja, os pais da menina, que lhe proporcionaram uma vida feliz e digna, ao registra-la como sua filha estavam, sob a ótica da lei penal, praticando um crime, sujeitos à condenação criminal.

Surge então, uma série de questões envolvendo o tema da adoção à brasileira e o crime em apreço, todas elas de notável importância, na medida em que interferem diretamente na vida de muitas famílias, que, por sua vez, constituem a base da sociedade em que vivemos.

Seria justo punir um ato de tamanha dignidade como o de adotar uma criança, mesmo que este tenha sido realizado de forma ilegal? Merece estar no banco dos réus e sofrer os reveses de ser processado criminalmente aquele que dispõe todo seu amor para que um ser, outrora abandonado, tenha uma vida feliz e plena?

Nesse aspecto, é possível perceber que o modelo patriarcal e biológico de família, o qual predominava na primeira metade do século XX perdeu força e, amparado pela Constituição Federal de 1988, ampliou os limites de formação familiar, abarcando os diversos tipos de família que existem na sociedade contemporânea.

Assim, respaldado pelo princípio constitucional da afetividade, o instrumento familiar acompanhou o ritmo das evoluções sociais e passou a considerar igualmente todos os seus membros e a sobrepor os vínculos de afeto a meros liames sanguíneos.

É possível apurar, portanto, que o tipo penal previsto no art. 242, do CP buscava a proteção do estado de filiação biológico, o qual não mais possui a relevância necessária para a intervenção do Direito Penal, o que indica claramente que a norma penal encontra-se realmente defasada em relação ao conceito de família e filiação atuais, e sua eficácia resta amplamente comprometida.

Importante salientar a grandeza da ação de cuidar de uma criança como se fosse seu filho, sabendo que biologicamente não é. A burocracia e a demora para a concretização da adoção legal de crianças acabam fomentando a ocorrência da chamada adoção à brasileira. Contudo, a forma como realizada a adoção de boa fé, em nada diminui a nobreza da conduta, que proporciona o direito à uma vida digna, saudável e feliz aquele que é resgatado de alguma situação de abuso, passando a conviver no âmbito familiar afetivo e saudável.

Assim, fica evidenciado que o debate sobre a manutenção ou não do artigo 242, do CP, no que diz respeito a tipificação da conduta de registrar como seu o filho de outra pessoa, deve sim ser posto em pauta, pois diretamente relacionado com o fundamento basilar da sociedade como um todo, que é a instituição familiar.