Reflexões acerca do transtorno da expressão escrita em escolares durante a alfabetização: da linguagem sob a ótica de wittgenstein à dimensão social e a ação psicopedagógica – Parte III

“[...] Existem evidências de que os diferentes tipos de dislexia podem estar associados a diferentes disfunções de áreas corticais específicas: a dislexia fonológica resultaria de disfunções no lobo temporal; a dislexia diseidética estaria associada a disfunções do lobo occipital e a dislexia mista a alterações funcionais do lobo pré-frontal, frontal, occipital e temporal. Tais achados têm sido alvo de muitas investigações graças aos avanços dos exames por meio de neuroimagens, particularmente as imagens obtidas através da ressonância magnética funcional, a fim de se estudar a ativação cerebral durante o processamento de linguagem, em condições variadas de apresentação de estímulos. Diferenças no funcionamento cerebral nas áreas envolvidas no processamento de linguagem de crianças apresentando problemas de leitura e escrita têm sido confirmadas”. (ZORZI e CIASCA, 2009, p.407).

Da identificação dos transtornos da escrita em escolares durante a alfabetização: a conspicuidade de uma equipe multidisciplinar e o papel do psicopedagogo preparado para refletir as vicissitudes dos jogos de linguagem

Existem duas questões importantes que tornam os TAs difíceis de definir (Fletcher, Denton e Francis, 2005 a; Francis et. al., 2005 a). A primeira é que como construto, o TA representa uma variável latente não-observável, que não existe separadamente das tentativas de mensurá-la. Dessa forma, o TA tem o mesmo status de outros construtosnão-observáveis, com o QI, o desempenho ou TDAH. A segunda envolve a natureza dimensional dos TAs (isto é, a observação comum de que os traços que representam TAs existem em um continuum e não representam categorias discretas: Ellis.1984(FLETCHER ET. AL. 2009, p.41 GRIFO NOSSO)

O apontamento de Fletcher et. al. nos parece pertinente por duas razões principais: o refrescamento da constatação de uma natureza não observável na definição de TAs, muito embora haja esforços para mudar tal quadro, bem como, a verificação da natureza contínua na definição dos transtornos.

A natureza em continuum dos TAs demonstra a necessidade de um trabalho permanente de acompanhamento da criança que possivelmente possa ter algum dos transtornos de aprendizagem. Durante a alfabetização há uma intensa construção da linguagem do escolar, o que torna o processo de diagnóstico ainda mais complexo, especialmente se tratando dos transtornos da expressão escrita.

Tal acompanhamento deve ser exercido por uma equipe de diversas áreas do conhecimento para a identificação precoce dos transtornos, bem como para otimizar o processo de ensino-aprendizagem. Tais áreas podem ser: a medicina, psiquiatria, psicologia, pedagogia e a psicopedagogia. Iremos ater-nos ao último e então demonstrar o papel do profissional psicopedagogo com aportes em linguagem na construção desse amparo ao escolar em idade de alfabetização com possíveis transtornos.

A produção de um diagnóstico psicopedagógico é o produto base do profissional psicopedagogo que trabalha em uma aferição de possível transtorno de expressão escrita, nesse sentido, destaca Bassedas:

[...] busca conhecer, olhar e escutar a relação do sujeito com o conhecimento objetivando a melhoria da do ensino e da aprendizagem, ou seja, para ajudar a família, a escola (em todos os níveis – administrativo, docente, técnico, discente) a cumprir o seu papel, atuando como um articulador do ensino e da aprendizagem. (BASSEDAS, 1996, p.24)

A natureza de articulação e mediação no fazer psicopedagógico também é notada em Porto (2006).  Sob uma perspectiva mais pragmática, Santos (2010) enumera algumas possibilidades de ações do profissional, dentre as quais destacamos:

Desenvolver pesquisas e estudos científicos relacionados ao processo de aprendizagem das diferentes faixas etárias do corpo discente

 Monitorar e intervir na relação professor-aluno nos aspectos subjetivos

Mediar no processo de construção cognitiva do estudante

Ora afirmada a pretensão do constante diálogo (no âmbito institucional) entre diferentes partes da escola, verificamos na figura do psicopedagogo uma representação prática da noção de jogos de linguagem para Wittgenstein exposta anteriormente. Se “[...]  ‘Jogos de linguagem’ (são) o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada” (op.cit., 1989, § 7. PARENTESES NOSSO) o próprio profissional tende a tornar-se a ligação das múltiplas linguagens dentro da instituição e a pretendida função de ensino aprendizagem que é buscada através das diversas ações da instituição.

No caso da aferição de prováveis transtornos da expressão escrita a relação entre a necessidade de manejo das vicissitudes de estudos da linguagem se torna ainda mais clara.  A ação psicopedagógica notadamente contextual nesse âmbito, tem que levar em conta que:

Inúmeros aspectos, tanto internos ao discurso, como relativos na situação social em que este se realiza, podem ser rotulados como contexto. Entende-se por situação social a forma como duas ou mais pessoas relacionadas entre si de maneira particular se comunicam sobre um determinado assunto, em um lugar determinado. (MACEDO, 2004, p.59)

Para, por exemplo, excluir a possibilidade de a dificuldade de aprendizagem ser causada ambientalmente e prosseguir na investigação de um crível transtorno da expressão escrita. Neste ponto, alguns pontos interessantes e multidisciplinares a serem notados na produção do diagnóstico são a consciência fonológica e memória fonológica. A consciência fonológica, segundo Cunha e Capellini (2011) podem ser definidos como:

A consciência fonológica é uma parte integrante da consciência metalinguística, está relacionada à habilidade de refletir e manipular os segmentos da fala, abrangendo, além da capacidade de reflexão (consultar e comparar), a capacidade de operar com rimas, aliteração, sílabas e fonemas (contar, segmentar, unir, adicionar, suprimir, substituir e transpor). (CUNHA e CAPELLINI, 2011, p.87)

Percebemos então a equidade do que se entende por consciência fonológica com os já citados sintomas de alguns transtornos da expressão escrita, como disortografia e dislexia. Já a memória fonológica é definida como a capacidade de fixar e conservar a consciência fonológica, e a importância do seu estudo segundo as mesmas autoras é:

Uma razão para o estudo da memória na infância é sua utilidade na educação. Métodos educacionais efetivos dependem do conhecimento do professor da capacidade das crianças em aprender e lembrar da informação. Também é importante saber que funções de memória reduzidas podem prejudicar o aprendizado e levar a diferentes perfis de transtornos de aprendizagem. Portanto, a avaliação das habilidades de memória é um método crucial para o entendimento do perfil do transtorno de aprendizagem e a identificação de métodos efetivos de sua reabilitação (CUNHA e CAPELLINI, 2011, p.89)

 

Com conhecimentos multidimensionais no âmbito da linguagem o psicopedagogo poderá realizar um diagnóstico mais efetivo dos transtornos da expressão escrita, e, contribuir na missão da escola durante o processo de alfabetização. Quanto a este último aspecto levantaremos mais informações e faremos nossas inferências finais deste trabalho como um todo.

Inferências finais

Demonstrou-se que os transtornos da expressão escrita são problemas essencialmente de ordem neurobiológica, e também, que os mesmos podem impor dificuldades ao aprendizado do escolar em processo de alfabetização.

Nesse sentido, refletimos sobre o papel do psicopedagogo na equipe multidisciplinar na escola, principalmente da importância de aportes de várias dimensões nos conhecimentos referentes à linguagem para a construção de uma abordagem mais próxima do escolar com possível transtorno, e, consequentemente, um diagnóstico mais preciso.

A urgência de uma abordagem mais contextualizada se dá pois foi identificada a dimensão sócio-política de ser alfabetizado, já que, a alfabetização é um meio de decodificar os jogos de linguagem conjunturais à vida do escolar, e, necessária para a vida na polis.

Neste âmbito ainda, concordamos com Frade quando diz que:

[...] não basta apenas ensinar a decifrar o sistema de escrita estabelecendo relações entre sons e letras. Também não é suficiente que os alunos leiam textos completos pertencentes a uma esfera escolar ou literária: é necessário que façam uso da escrita em situações sociais e que se beneficiem da cultura escrita como um todo, apropriando-se de novos usos que surgirem. Temos então uma dupla questão para a escola: precisamos tratar a língua como objeto de reflexão e como objeto cultural e isto, às vezes, implica em metodologias diferentes. (FRADE, 2007, p.32)

 

Logo, o usufruto da cultura escrita começa a partir da compreensão da linguagem escrita, atinge o estágio de decifração e segue em constante aperfeiçoamento, como segue dizendo-nos a autora “O trabalho com a compreensão, então, antecede a decifração, é paralelo ao seu ensino e segue depois dela. Assim, não precisamos postergar a compreensão, mas adiantá-la em vários aspectos. ” (FRADE, 2007, p.34).

Podemos apontar a equidade de compreensão como dever da escola enquanto instituição, e, especificamente o papel do profissional psicopedagogo como o próprio ar de família citado por Wittgenstein entre os jogos de linguagem, aproximando-os.

Dessarte, compreendemos a ação teórico-prática da psicopedagogia como um agente ativo de consolidação do acesso à decodificação dos jogos de linguagens do mundo, compreendendo aspectos neurobiológicos, de linguagem, pedagógicos, entre outros, ainda que obstante à empecilhos de origem neurobiológica, a atuação do profissional é imprescindível para uma compreensão contextualizada dos escolares no processo de ensino-aprendizagem e a comunicação multidirecional entre discentes, docência e os demais setores da escola.

REFERÊNCIAS

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