Reflexões acerca do transtorno da expressão escrita em escolares durante a alfabetização: da linguagem sob a ótica de wittgenstein à dimensão social e a ação psicopedagógica – Parte II

A prática de declarar direitos significa, em primeiro lugar, que não é um fato óbvio para todos os homens que eles são portadores de direitos e, por outro lado, significa que não é um fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por todos. A declaração de direitos inscreve os direitos no social e no político, afirma sua origem social e política e se apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos, exigindo o consentimento social e político. (CHAUÍ, 1989, p.20)

É notável que o consentimento social (inerente à declaração de direito, como exposto) citado por Chauí pode ser possivelmente impedido como: na inexistência primária das condições necessárias para a decodificação do convívio na polis (que é naturalmente a priori) este consentimento e todos demais entram em conflitos nebulosos.

Logo, a decodificação dos jogos de linguagem no mundo necessita estar a priori de outros direitos, não que se entenda aqui que um ou outro tem importância maior ou menor, e sim, porque esta guia a reflexão através de outros jogos de linguagem ao seu redor. Outra forma de denotar a natureza da alfabetização enquanto direito político é quando observamos o conceito à luz do que dispõe a nós Soares (1998), quando diferencia alfabetização de letramento, tanto pela via etimológica como também epistemológica dos dois processos, enquanto a “Alfabetização é a ação de alfabetizar, de tornar "alfabeto” 5, já o letramento é compreendido pela autora como “Resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita. O estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais” e finalmente ao diferenciá-los a autora pontua:

Há, assim, uma diferença entre saber ler e escrever, ser alfabetizado, e viver na condição ou estado de quem sabe ler e escrever, ser letrado (atribuindo a essa palavra o sentido que tem literate em inglês). Ou seja: a pessoa que aprende a ler e a escrever - que se torna alfabetizada - e que passa a fazer uso da leitura e da escrita, a envolver-se nas práticas sociais de leitura e de escrita - que se torna letrada - é diferente de uma pessoa que ou não sabe ler e escrever - é analfabeta - ou, sabendo ler e escrever, não faz uso da leitura e da escrita - é alfabetizada, mas não é letrada, não vive no estado ou condição de quem sabe ler e escrever e pratica a leitura e a escrita. (SOARES, 1998, p.3)

  1. É interessante pontuar também a observação da autora no aspecto de que o significado de alfabetizar, isto é, tornar-se alfabeto causa estranheza em língua portuguesa por não possuirmos a palavra negativa de alfabeto e somente a opositiva, isto é, “analfabeto”.

O amadurecimento da alfabetização enquanto basilar ao ser social, concomitantemente ao direito à informação, faz-nos vislumbramos o caráter político desta matéria. É evidente, então, notarmos que a constatação da alfabetização enquanto direito, se dá porque ela pode ser compreendida como uma ferramenta ímpar para o escolar nas aproximações dentre os jogos de linguagem conjunturais a si e ao mundo, o que, de fato resulta em transformações na vida em sociedade. Compreendemos então, que a alfabetização é um procedimento adstrito ao letramento, em suas múltiplas facetas e desdobramentos.

Neste ponto talvez cheguemos em um aspecto íngreme da nossa investigação: a constatação excruciante já exposta anteriormente de Rego (2006, p.184) “a questão dos direitos será sempre uma construção imperfeita e inacabada”, o que leva-nos a assertiva que alfabetização é necessária a priori para um convívio social, e, principalmente político porque garante uma desejável isonomia entre os indivíduos diante das decodificações dos diferentes jogos de linguagem ao longo da vida, entretanto, a mesma tem natureza não isonômica enquanto procedimento em constante aperfeiçoamento.

E então, apesar de ficarmos com esta tortuosa questão, podemos enxergar o processo de alfabetização como um convite constante à interação das mais diversos instituições e indivíduos, um construto orgânico de intermitente avaliação.

Destacada até então a dimensão sócio-política do processo de alfabetização, devemos então, investigar os transtornos à ordem clínica que tornam o processo ora dificultoso, ora ineficiente, os chamados transtornos da expressão escrita.

Para que possamos então conjugar a abordagem construída até então com a identificação dos caracteres de ordem patológica em direção à uma visão panorâmica do problema para conseguirmos esboçarmos uma sugestão de abordagem interdisciplinar com ênfase no papel do profissional psicopedagogo nesta tessitura.

Os transtornos da expressão escrita: alguns aspectos clínico-conceituais

O surgimento da Psicopedagogia fulgura a partir da própria investigação do fenômeno da “não aprendizagem” 6, principalmente na Europa do século XIX por profissionais de diferentes áreas do conhecimento como: médicos, pedagogos e psiquiatras. Um marco importante então é a criação do Centro Médico-Psicopedagógico na França por George Marco e Janine Mery. (BOSSA, 2007, p.23).

Apesar de significativos progressos na pesquisa sobre os transtornos de aprendizagem atualmente, o fabrico de um conceito (bem como de um modelo de avaliação e tratamento) para esse grupo de transtornos ainda é bastante conflituoso, como nos diz Fletcher et.al. (2009, p.16).

Um caminho proposto pelos autores é entender os transtornos de aprendizagem – sob diferentes níveis- a partir da sua origem, desta forma, os autores elaboraram um esquema para ilustrar tal proposta, que segue:

O segundo nível de análise é sobre as características da criança, principalmente a partir de processos cognitivos básicos, que podem ser nomeações rápidas de letras até a própria fluência em leitura, levando-se em consideração principalmente o denominador desta análise que os autores chamam de fator psicossocial, isto é, a motivação ou não na realização de atividades acadêmicas, e, até mesmo a presença de depressão ou ansiedade na criança.

 

  1. Hoje compreende-se que estejam divididos em dificuldades de aprendizagem (DAs) e Transtornos de aprendizagem (TAs), como bem elucida Moojen (2004).

Já o terceiro nível é a identificação dos fatores neurobiológicos e ambientais na/ ao redor da criança, que podem ter origem genética, ou, ambiental, isto é, nos contextos socioeconômicos e de escolarização nos quais a criança está envolta. (FLETCHER ET. AL, 2009, p.17).

O Ministério de Educação norte americano, em 1966, definiria de forma mais concisa os transtornos de aprendizagem, como vemos:

A expressão “transtorno específico de aprendizagem” significa um distúrbio em um ou mais dos processos psicológicos básicos envolvidos na compreensão ou no uso da linguagem, falada, ou escrita, que pode se manifestar em uma capacidade imperfeita de ouvir, de falar, de ler, de escrever, de soletrar ou de efetuar cálculos matemáticos. A expressão compreende condições como deficiências perceptivas, lesões cerebrais, disfunções cerebrais mínimas, dislexia e afasia evolutiva. A expressão não compreende crianças com transtorno de aprendizagem que resultam principalmente de deficiências visuais, auditivas ou motoras, ou de retardo mental, ou de distúrbios emocionais, ou de desvantagens ambientais, culturais ou econômicas. (FLETCHER ET. AL. apud U.S. Office of Education, 2009, p.32-33)

E se destaca por diferenciar as os efeitos dos TAs dos efeitos deficiências diversas, retardo mental, distúrbios emocionais e desvantagens ambientais, culturais e econômicas.

É importante esclarecer que, quando se fala em desvantagens ambientais está dizendo-se que as mesmas não são a causa dos TAs, embora as mesmas possam interferir em um quadro já instalado anteriormente (FLETCHER apud WOOD, 2009, p.73), e também é necessário diferenciar as dificuldades na aprendizagem com os TAs, como foi constatado por Alves, Mousinho e Capellini (2011) e Ciasca (2004).

Mais tarde, o Ministério da Educação estadunidense, identificando as dificuldades no diagnóstico dos transtornos de aprendizagem, iria separá-los em categorias, a saber:

Uma discrepância grave entre o desempenho e a capacidade intelectual em uma ou mais das seguintes áreas (1) expressão oral; (2) compreensão auditiva; (3) expressão escrita; (4) habilidades básicas de leitura; (5) compreensão leitora; (6) cálculos matemáticos; ou (7) raciocínio matemática. A criança não pode ser identificada como portadora de um transtorno específico de aprendizagem se a discrepância entre a capacidade e o desempenho resultar principalmente de: (1) uma deficiência visual, auditiva ou motora; (2) retardo mental; (3) distúrbios emocionais ou (4) desvantagens ambientais, culturais ou econômicas. (FLETCHER ET. AL. Apud U.S. Office of Education, 2009, p.33)

O que influenciaria mais tarde, a formulação dos tipos de TAs mais amplamente aceita atualmente, que é da Associação Psiquiátrica Norte Americana (DSMV-IV) (1994), na sua obra “Classificação Internacional de Doenças”, estes são:“transtornos da leitura”, “transtorno específico da leitura”, “transtorno da matemática”, “transtorno específico das habilidades aritiméticas”, “transtorno da soletração” e “transtorno da expressão escrita”, este último tema deste trabalho.

Sobre o transtorno da expressão escrita, objeto de estudo deste trabalho, podemos enumerar que:

[...] refere-se apenas à ortografia ou caligrafia, na ausência de outras dificuldades da expressão escrita. Nesse transtorno, geralmente há  uma combinação de dificuldades na capacidade de compor textos escritos, evidenciada por erros de gramática e pontuação dentro das frases, má organização dos parágrafos, múltiplos erros ortográficos, na ausência de prejuízos na expressão escrita. (ROTTA;  OHLWEILER e RIESGO, p.109)

E se torna demasiado oportuno, então, diferenciá-lo do transtorno da leitura, que segundo os mesmos autores pode ser definido como:

O transtorno da leitura é caracterizado por uma dificuldade específica em compreender palavras escritas. Dessa forma, pode-se afirmar que se trata de um transtorno específico das habilidades de leitura, em que foram eliminadas todas as outras causas. (ROTTA;  OHLWEILER e RIESGO, p.109)

Posto isso, podemos proceder à delimitação dos três principais transtornos da linguagem escrita, que são: disortografia, disgrafia e dislexia. A disortografia pode ser identificado quando a criança apresenta dificuldade na transcrição de palavras, bem como trocas ortográficas, e, quando há um acompanhamento do ritmo da linguagem oral na linguagem escrita, como nos diz Rocha, Menzen e Nascimento:

Os principais tipos de erros que a criança com disortografia apresenta são: Confusão de letras; consoantes surdas por sonoras (f/v) ; vogais nasais por orais;na/ã; confusão de sílabas com tonicidade semelhante ao/am; confusão de letras(trocas visuais); Simétricas; b/d; uso de palavras com mesmo som para várias letras (azar/asar). Além dessas trocas, pode acontecer omissão, adição, inversões, fragmentações de palavras. Para identificar uma criança com disortografia é necessário considerar o nível de escolaridade da criança, a frequência e o tipo de erro. (ROCHA; MENZEN e NASCIMENTO, 2008, p.45)

Já a disgrafia afeiçoa-se quando a criança tem dificuldade em passar para a linguagem escrita alguma representação linguística gráfica (impressa), o que faz com o que o desenho da sua letra seja muitas vezes incompreensível, entretanto precisa-se expor que:

O aluno com disgrafia não é portador de problema visual nem motor, não tem comprometimento intelectual nem neurológico, isso quer dizer que ele até esforça-se para escrever com letra legível, porém não consegue. Existem vários níveis de disgrafias: incapacidade de segurar o lápis, traçar uma linha, de fazer desenhos simples, copiar figuras ou letras mais complexas. (ROCHA; MENZEN e NASCIMENTO, 2008, p.46)

E finalmente, a dislexia  que pode ser assinalada quando a criança apresenta imprecisão ou lentidão no reconhecimento das palavras escritas, dificuldade de compreensão da leitura e atraso na produção textual, e ainda:

Persiste por toda a vida, mas com o tratamento pode haver atenuações; Está presente desde o início da escolaridade; É um distúrbio com evidências genéticas que surge por estar associado a diferenças funcionais no hemisfério esquerdo; É diagnosticada em indivíduos com capacidade intelectual normal, que não apresentam problemas de visão e audição e que não são portadores de problemas psíquicos ou neurológicos graves; Está presente mesmo quando a escolarização e a metodologia de ensino são adequados, quando não há troca de escola e número excessivo de faltas; Supõe, como déficit primário, inabilidade no processamento fonológico e da memória; O comprometimento da linguagem é específico do processamento fonológico que inibe a aprendizagem dos padrões de codificação alfabética subjacentes ao reconhecimento fluente das palavras e também limita a capacidade de armazenar informações verbais na memória de curto prazo. (ROCHA; MENZEN e NASCIMENTO, 2008, p.47) 7

Esclarecidos alguns dos aspectos clínico-conceituais dos transtornos da expressão escrita, iremos proceder ao ambiente escolar, durante a alfabetização, para que possamos consequentemente, vislumbrar a conspicuidade de uma equipe multidisciplinar no acompanhamento dos casos destes transtornos, e, descortinar a iminência de entendimentos em linguagem do psicopedagogo para assegurar ao escolar, junto à escola enquanto instituição, o acesso ao já constatado direito político de alfabetizar-se.

 

  1. “[...] Existem evidências de que os diferentes tipos de dislexia podem estar associados a diferentes disfunções de áreas corticais específicas: a dislexia fonológica resultaria de disfunções no lobo temporal; a dislexia diseidética estaria associada a disfunções do lobo occipital e a dislexia mista a alterações funcionais do lobo pré-frontal, frontal, occipital e temporal. Tais achados têm sido alvo de muitas investigações graças aos avanços dos exames por meio de neuroimagens, particularmente as imagens obtidas através da ressonância magnética funcional, a fim de se estudar a ativação cerebral durante o processamento de linguagem, em condições variadas de apresentação de estímulos. Diferenças no funcionamento cerebral nas áreas envolvidas no processamento de linguagem de crianças apresentando problemas de leitura e escrita têm sido confirmadas”. (ZORZI e CIASCA, 2009, p.407).