MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo; GOMES, Flávio. “Reconfigurações coloniais: tráfico de indígenas, fugitivos e fronteiras no Grão-Pará e Guiana Francesa (Séculos XVII e XVIII)”. São Paulo: Revista de História/USP, n. 149, pp. 69-107, 2003.

 

 

O texto faz parte de um estudo que tem como objetivo principal abordar durante o Século XVII e XVIII, de como as experiências de colonização nesta região, em especial das Guianas Francesa e o Estado do Grão- Pará, se deram como seus os atores sociais, fugitivos, índios e negros escravizados, soldados deserdados, construindo uma lógica própria com laços de solidariedade e estratégias para fugir dos maltratos dos seus senhores e do trabalho compulsório. A fronteira é vista como lugar de liberdade, ela estava para além dos tratados político-administrativos, do físico, caracterizado pelo vai e vem dessas pessoas, de disputas e ações, tornando-se um complexo sistema de relações bem diferente do que nos propõe a historiografia tradicional.

Os autores partem da análise da história social da fronteira, isto é, de como estas fugas  acabam por formarem comunidades a beira dos rios o qual eram denominados de mocambos, em  uma região onde se pensava que devido as dificuldades geográficas nada ocorreria , pelo contrário, muitos conflitos geraram  um clima de tensão nessa região nos século XVII e XVIII, ora pela onda de fugas, ora pelos perigos de invasão estrangeira desses territórios, por isso, existe uma vasta troca de correspondências, tratados e acordos entre as autoridades coloniais francesas e portuguesa, fazendo acusações mutuas do seu não cumprimento, e a outras que tentam conter as fugas para essa região de fronteira, assim essas tensões entre as colônias ultrapassam os limites estabelecidos gerando o que os autores denominam de uma região “transnacional”.

  Toda essa trama é tecida de tal forma que se torna o eixo principal do texto, ou seja, o sentido da colonização toma novos rumos, se reconfigura, se dinamiza não só pela ótica do dominador, mas também pelos dos atores sociais que nessa perspectiva se tornaram protagonistas dessa nova história, são, índios, escravos e fugitivos que se articulam para resistir a dominação social.  Assim, os autores fazem um debate teórico com os clássicos e pesquisadores contemporâneos da historiografia tais como: BAENA (1969), SALLES (1971), LA CONDAMINE (1981), ALENCASTRO(1992) entre outros.

As áreas de fronteiras do Grão-Pará e Guiana Francesa, durante o século XVII e XVIII, representam uma experiência singular, marcada pela formação de comunidades de fugitivos, tráfico de indígenas, redes de comércio clandestinas, contrabando e, ainda, mecanismos de poder e a violência exercida pelas autoridades sobre os atores que se moveram nestas fronteiras. Neste tecido social, se identificam práticas de solidariedade, de alteridade e de recusa à dominação social, que ignoravam os limites geopolíticos estabelecidos pelas coroas lusitana e espanhola, chegando a ganhar certa autonomia e expondo que não existia um princípio único de racionalidade nesta região de contestado, marcada pela improvisação, pelo descontrole, pelo provisório e pela prepotência de administradores que remodelam o projeto de dominação colonial em função de seus próprios interesses.

Nesse período, a faixa esquerda do rio Amazonas transformou-se num espaço de captura de indígenas para serem vendidos dentro e fora das guianas por traficantes que partiam de Caiena. Buscando alargar sua zona de atuação sobre o domínio português, os traficantes rasgaram boa parte desse território antes mesmo de colonos e jesuítas, que desenvolveram várias iniciativas de ocupação deste mesmo território. Tais questões estiveram no centro de permanentes atritos entre as colônias portuguesa e francesa desde meados do século XVII, muitos dos quais resolvidos através de acordos, mas o motivo central desses atritos era o controle das zonas de apresamento de indígenas para o trabalho compulsório e a abertura para o território lusitano onde havia abundância dessa mão de obra. Além disso, a escravidão dos índios do Grão-Pará apoiou-se em medidas dos governos metropolitanos que legitimaram a captura e incentivaram o tráfico, através de decretos de 1653 e 1655, que tornavam cativos legítimos os índios aprisionados em guerras justas e obtidos por meio de resgate. 

Nossos autores, Rosa Elizabeth Acevedo Marin e Flávio Gomes, continuam a analisar esse contexto mostrando-nos as tensões entre as Autoridades locais, os Religiosos, Militares e famílias do Grão-Pará e da Guiana, tensões estas provocadas  principalmente por queixas e acusações do não cumprimento de cláusulas e tratados sugerindo assim a fragilidade das decisões tomadas nas cortes europeias, e ainda a morosidade que saturava todo o sistema governamental nas colônias, afirmam ainda o uso de práticas que mudavam de acordo com a situação concreta e os atores do momento, todos esses acontecimentos acabaram levando a uma situação instável e tênue que instalou-se nas fronteiras dessas colônias.

       Em junho de 1707, foi assinado um tratado entre França e Portugal que instruía sobre as modalidades de troca de prisioneiros entre os dois países, porem as instruções do rei da França em julho e novembro de 1712 reconhecia que Portugal não executava esse tratado, que em vez de dar liberdade aos franceses aprisionados em guerras travadas em alto mar, mantinham os mesmos encerrados em celas e sob trabalhos forçados tanto em Lisboa quanto no Brasil, assim sendo os franceses adotaram atitudes de represália, deserções e fugas eram  constantes, e quanto ao tráfico e fuga de indígenas e africanos a diplomacia alimentava maiores suspeitas e desentendimento.

       As viagens entre a Guiana e o Grão-Pará de senhores e donos de escravos fugidos tornou-se algo constante, eram viagens bem elaboradas e que custavam caro empreende-las, a maioria das fugas registradas se deram do lado francês para o lado português, e os relatos desses fugitivos davam conta que fugiam devido aos maus tratos, queixas entre as quais o não cumprimento do Code Noir, que cobrava responsabilidades dos senhores, como prover alimentação, roupas e descanso para os escravos. Um exemplo dessas atrocidades aconteceu em 1757, no Oiapoque, onde um escravo foi queimado vivo em praça pública por ter elaborado um plano para envenenar sua senhora e a irmã dela.

       Devemos ressaltar que diferente dos franceses, do lado português, a administração era desempenhada pelos missionários que deram provas de administração eficiente e lucrativa de aldeamento, e que era totalmente dependente do trabalho indígena, os fazendeiros do Grão-Pará declaravam não ter dinheiro para aquisição de escravos africanos e assim continuavam a utilizar largamente o tráfico e a escravização de indígenas, os colonos reivindicaram na corte uma medida que lhes disponibilizasse mais mão de obra indígena. Em 07 de junho de 1755 foi decretada a lei que extinguia a administração temporal das aldeias exercidas pelos religiosos e isso causou uma reviravolta econômica e política, As ordens religiosas dos Capuchos, Mercedários e Carmelitas aceitaram a lei, os prelados da companhia de Jesus recusaram-na.

            Os Jesuítas que detinham sob seu poder um total de 8.000 índios em toda a colônia do Grão-Pará, incitaram os colonos das freguesias de Belém descontentes com a alforria dos indígenas a enviarem de Caiena uma carta ao rei da França oferecendo a essa autoridade a colônia do Grão-Pará, todos os conspiradores foram presos, do lado francês. O fim da escravidão do lado francês foi decretada por volta de 1740, no Grão-Pará foi em 1755.

            Nesse processo houveram grandes rupturas nas empresas escravistas, isto é, haviam fugas e resistência do lado francês quase sempre pela insatisfação com seus senhores, o que levou a uma organização de fugas, e formações de micro sociedades à beira dos rios denominados de mocambos como forma de resistência. O termo mocambo segundo os autores é um termo mais apropriado para Amazônia, já que muitas vezes confundem com os quilombos que possuíam uma organização bem diferente das encontradas nessa região.

            A fontes apontam para essa resistência bem antes do Século XVII, já a historiografia tradicional apontavam que não haviam movimentos de resistência antes do XVII, Salles através de estudo clássico sobre a escravidão demonstra isso. Essa organização social dos mocambos seguido pelo ideal de liberdade, tornava a fronteira um ambiente instável, pois eram sempre perseguidos e precisavam sempre de estratégia de deslocamento para garantir sua defesa e as fugas, por isso que a maioria dos mocambos ficam dentro das matas próximos aos rios para facilitar o deslocamento, permitindo assim, que este local seja um lugar de constante reordenamento social.

            Portugal por precaução procurou manter a vigilância nessas fronteiras buscando impossibilitar o contatos dos mocambeiro com os franceses com medo de que “as ideias revolucionárias” pudessem ser assimilada pelos escravos e estes tentarem uma insurreição contra o governo. Porém, essa perspectiva era abordada de forma diferente pelos fugitivos e escravos, eles criaram suas próprias estratégia de luta e resistência, demonstrando que não eram tão passivos assim e que estavam atentos ao seu contexto causando inquietações as autoridades coloniais do século XVII e XVIII.

A formação de mocambos na fronteira dinamizaram toda aquela região, reconfigurando o sentido da colonização, tornando um espaço multifacetado e transnacional, com diversas experiências sociais, culturais e econômicas, que se deram de acordo com sua lógica de convivência e organização para resistir a escravidão, a submissão, a violência e aos maltratos sofridos por partes de seus senhores. De todo modo, interpretar a formação de sociedades e as experiências de grupos envolventes, a partir da história social da fronteira, constitui uma atividade complexa e uma iniciativa historiográfica inovadora menos linear da história.