Recensão crítica da obra Mulher de Kumpheia

Por Marlene Vanessa Marques Jamal | 11/02/2019 | Literatura

I. Introdução

A obra Mulher de KuMpheia é da autoria de Mukuda Pinho, pseudónimo de Isac Tomé Pinho natural da Maganja da Costa, Província da Zambézia. O autor possui uma formação em ensino de Língua Inglesa e actualmente cursa Psicologia Educacional. Mulher de Kumpheia é sua estreia em livro, um romance que descreve uma história de amor, identidade sócio-cultural e a trajectória de um grupo de jovens da região de Muriua, distrito de Mopeia na Província da Zambézia. A obra foi publicada em 2018 pela Oleba Editores/Maputo e conta com nove (9) capítulos e sessenta e quatro (64) páginas.

Nos dias que correm, o nosso país debate-se com a desvalorização ou a não atribuição do devido valor ao património cultural moçambicano. Aliás, há casos em que pessoas não conhecem a nossa realidade histórica e cultural. Mukuda Pinho luta contra tudo e todos e traz-nos esta obra com uma tonalidade mopeense e um incenso aromático oriundo do vale do Zambeze.

O autor, valoriza os anos em que foi morador da vila de Mopeia no momento da sua passagem da adolescência para a juventude. Conhecendo desta feita os elementos principais das vivências de Mopeia que em sena chama-se KuMopeia ou simplemente em Mopeia.

Mesmo sabendo que a tradição moçambicana é eminentemente oral, onde os mais velhos constituem uma biblioteca viva na transmissão da mesma de geração em geração, Mukuda vai imortalizar as nossas histórias e desta maneira jamais serão esquecidas por nós e por todos aqueles que entrarão em contacto com o livro.

II. Síntese

Mulher de KuMpheia é um romance que descreve uma história de amor, identidade sócio-cultural da região de Muriua. A mesma ressalta por um lado, o grande valor que é dado a mulher, o símbolo da pureza. Por outro lado, a discriminação de que essa mesma mulher é alvo ʺsó é ensinada a cuidar da menstruação, do marido e da famíliaʺ. Portanto, a história desenrola-se entre rimas gritantes da educação tradicional como base forte da estrutura dos adolescentes e jovens de Muriua, em que os saberes mais evidentes são transmitidos aos mesmos em forma de parábolas, a volta da fogueira e feita pela idónea voz dos mais velhos.

A história aqui narrada consiste numa plena admiração que o narrador possui pela “Nsai”, que representa uma camada de mulheres sinceras que corporizam a essência da população de Mopeia.

O livro traz nomes típicos da realidade de Mopeia e hábitos culturais comuns às nossas vivências quotidianas, levando-nos a pensar e a reflectir em torno daquilo que é nosso. Proporcionando-nos desta forma uma verdadeira viagem por Mopeia de uma maneira agradável e convidativa. A linguagem por ele usada é simples, clara e objectiva, aproximando desde logo todo o tipo de leitores.

Os principais temas que unem as várias partes que compõem o livro fazem-nos visualizar a realidade sócio-cultural de KuMopeia do passado e do presente, abrindo perspectivas para o futuro. Desde o baile em Muriua que despertou a paixão ou o amor entre Nsai e Victor que mais tarde veio a resultar num casamento. De ressaltar que o amor de Nsai e Victor passou por muitos contratempos, pois na sociedade de Muriua nem o homem nem a mulher tem o direito de escolher seus parceiros, e sim os espíritos dos ente-queridos ʺAzimusʺ.

A união característica do povo de KuMpheia nota-se com a tristeza oriunda da morte por afogamento do único filho de Mbuya Jofesse (o velho que deixava sempre seus ensinamentos em forma de parábolas) que entristeceu todo povoado. Acusações de feitiçaria dirigida à senhoras idosas, culturas mais produzidas em Mopeia, relevância de Sena Sugar State e alguns edifícios que transitaram da era colonial.

É destacado também o movimento dos jovens de Muriua – Mopeia para frequentar a escola Secundária da Vila de KuMpheia sendo um relato da vida normal de jovens que se dirigem a vila procurando dar continuidade aos estudos de forma a ter um futuro melhor, o que faz com que, consequentemente os jovens vivam no internato.

Em Kumpehia, a sociedade é ensinada na tradição, o sentimento de luta e de resistência e, que o uso da caneta e do caderno indicam a emancipação da enxada de cabo curto rumo ao desenvolvimento, por isso, a escola é a ordem do dia, mostrando a ascensão do povo de Mopeia para patamares elevados, principalmente as mulheres que transcendem às actividades domésticas tradicionais.

Por imperativos profissionais, o casal da história, Victor e Nsai vivem separados, mas sem com isso significar o fim da relação entre ambos. Ela mais tarde passa a viver em Namarrói e ele em Nicoadala, traduzindo o drama forte que caracteriza muitos casais da actualidade. Victor Mugonda e Nsai Ndabuenda simbolizam muitos de nós.

Os nomes como Nsai, Afonso Mugonda, Mbuya Jofesse, Nhansala, Nipa entre outros fazem parte do conhecimento quotidiano aliados a termos da língua local como: Mfumos, Mpunga, Marimba, ngomua, nhica, tsembe e utxema, trazendo a obra cada vez mais perto do leitor e dispertando o seu interesse.

Em termos estruturais, estamos perante um romance composto por nove capítulos, com uma linguagem coloquial mesmo a um estilo das histórias contadas a volta da fogueira, Mukuda traz o essencial com uma linguagem perceptível para leitores de todos níveis sociais e académicos. Aos leitores mais velhos no que diz respeito à idade, Mulher de KuMpheia poderá despertar algumas memórias adormecidas e para os mais novos poderá oferecer uma oportunidade ímpar de fazer uma breve retrospectiva em relação àquilo que já vivenciaram.

III. Análise crítica/interpretativa

Esta parte do trabalho está reservada a discussão e avaliação dos aspectos que consideramos positivos e/ou negativos da obra assim como procuramos trazer pontos de interceção da obra com uma outra, mostrando a relação de intertextualidade existente.

Na obra, a identidade africana e o respeito pelas tradições é apesentada de forma muito forte, a necessidade de consultar os azimus, os espíritos, antes de tomar qualquer decisão sobre a vida familiar e a individual. A questão cultural é apresentada como emblema ou cartão de visita do povoado de Muriua. Nas cerimónias, bailes organizados para unir os jovens e passar ensinamentos existia uma curandeira, Maria Nhansala que revelava os acontecimentos da noite, quando possuída de espíritos, entre os pasmos e convulsões, avisavam-na tudo sobre Kumpheia, descrevia as façanhas da obscuridade e de certo modo tal facto punha os jovens a agir com certo cuidado e a procurarem fazer as coisas certas pois, tinham medo que a curandeira revelasse no meio de todos a situação de cada um. Portanto, esta prática em algum momento servia para educar os jovens de modo a procurarem sempre fazer as coisas dentro dos preceitos tradicionais.

Mbuya Jofesse, um dos mais temidos feiticeiros da região não media esforços em desenvolver a cultura, marcava os bailes e o evento decorria sempre sob seu olhar atento. Este, procurava sempre que possível deixar ficar seus ensinamentos aos jovens: ʺÉ penoso que jovens como vocês, não queiram estudar. Saibam que preparam a vossa desgraça e a de todo o país. (…)

Victor, faz um flashback até sua juventude, sobretudo amorosa. O desejo que sempre sentiu pela jovem Nsai e que foi declarado por ela também em segredo no baile.

A obra, apresenta uma profunda universalidade, que até pode se equiparar à bíblia, ou seja, os acontecimentos ou assuntos tratados, transbordam para muito além do que se quer explicitar no contexto da história. Tal universalidade vem acompanhada de máximas, parábolas, conselhos, previsões de futuro, tudo isto que pode ser explicado em contextos actuais.

O autor começa por citar uma passagem bíblica (Isaías 55:10-11) …para que dê semente ao semeador e pão para comer, o mesmo sucede à palavra que sai da minha boca: ʺnão voltará para mim vazia, sem ter realizado a minha vontade e sem cumprir a sua missãoʺ. Compreendemos aqui se trata do desejo do próprio autor, que a mensagem transmitida chegue aos leitores e faça efeito em suas mentes. A valorização da imagem da mulher em grande parte é aqui destacada assim como a valorização da cultura como inicialmente referenciamos.

ʺ…aqui, a mulher é ensinada a cuidar da menstruação, do marido e da família, e quando ela fizer o sexo de qualquer maneira, não mais terá filhos. Aqui, não se anda de qualquer maneira, aqui, é Kumpheia, Aqui é Africa.ʺ

ʺKumpheia está a salvo da maldade… Haverá filhos da terra salvando a pátria, haverá filhos estudiosos dessa terra, a noite provou nos que haverá surpresas boas e más, cada um deverá agarrar a oportunidades, aquelas feiticeiras destruidoras já transformaram a maldade para o bem, último feitiço é de salvação (…)ʺ.

Estas são algumas passagens que atestam o que anteriormente mencionamos, portanto o prato forte da obra são as descrições feitas pelos mais velhos, pessoas com autoridade para aconselhar os mais novos e deixar seus ensinamentos sempre com anuência dos espíritos.

Verificamos também a presença de recursos estilísticos, sobretudo a comparação, a metáfora e a hipérbole. ʺO tempo passeia lentamente… (…) vi te a ferver o coraçãoʺ

ʺE, vocês sabiam que Nsai é a imagem simbólica das Mulheres sinceras de Kumpheia?ʺ

Outro aspecto de realce na obra é a valorização, o respeito pela imagem da mulher que existia em Kumpheia, os próprios homens eram educados a olhar para a mulher de forma diferente, com doçura (ʺ…Positivo foi não ter me atrevido a tocar no corpo dela sem que me tenha convidado, o respeito pela expressão corporal da mulher em Kumpheia é uma dádiva uma preservação que se vive nos segredos dos azimusʺ), por outro lado a ideia de que a mulher foi criada para servir o homem e a família também é muito presente. Deste modo, a mulher era assim educada, a reservar-se para o marido que seria escolhido pelos mais velhos e pelos espíritos principalmente, pois os seus desejos e vontades não eram tidos em consideração. Consideramos ser bastante positivo o aspecto ligado ao respeito e valorização da mulher, entretanto a ideia de subserviência e de anulação de seus sentimentos e desejos próprios é decerto que condenável e de certa forma pode continuar a encorajar certos leitores que se encontram ʺparados no tempoʺ, que acreditam ainda que a mulher foi criada apenas para servir e obedecer. Contudo, vale lembrar que o autor deixa presente na obra a ideia de que alguns aspectos cultuais considerados pouco adequados ao contexto actual e de certa forma que prejudicam parte da sociedade tem estado a mudar. Exemplo deste último facto é que já no fim da história vendo que o amor de Nsai e Victor era mesmo verdadeiro e eles desejavam ficar juntos mesmo depois de tantos impedimentos por parte da família (que queriam que ela fosse freira mesmo contra a sua vontade assim aconteceu, Nsai foi para o convento e mais tarde mantendo sempre contacto com Victor, seu eterno amor e ele também obrigado a estudar fora do povoado) o velho Afonso escreveu para o neto dizendo que a família estava procurando esposa para ele e que já existia uma preferida, a Noémia, entretanto, pediu para que não metesse isso na cabeça, pois ele já era maduro o suficiente para decidir por si só embora a tradição não recomendasse tal facto. ʺSe vires alguém que gostes por favor avance.ʺ

Vale lembrar o filósofo Ortega y Gasset, que compreende a cultura como ʺum movimento de natação, um bracejar do homem no mar sem fundo de sua existência com a finalidade de não afundarʺ. O que significa que a cultura permite recriar valores. Compreende-se, assim, a cultura no seu parâmetro de grande amplitude: tudo que o homem faz e que passa a integrar um sistema cultural, transmitido entre gerações e, ao mesmo tempo capaz de se renovar. Portanto, não se trata de estruturas rígidas, é necessário que haja dinâmicas culturais alimentadas por valores e princípios capazes de ampliar as competências humanas.

Notámos que o romance leva-nos a realidade de uma sociedade patriarcal, repleta de ordens e preceitos dominados pelos mais velhos (homens). Portanto, a supremacia do homem e por um lado a ideia de que a mulher apesar de ser valorizada deve servir e preocupar-se unicamente com a felicidade da sua família, ela não passa de um objecto a venda.

Uma marca forte de fraternidade e união entre o povo de Muriua ficou registada aquando da morte do filho do Mbuya Jofesse, afogado no rio. Toda a comunidade comoveu-se e solidarizou-se com o velho conselheiro, facto que na actualidade torna-se cada vez mais difícil de se ver, pois cada um está apenas preocupado com a sua vida. A morte do filho de Jofesse foi associada pelos mais velhos ao cantar anormal do galo durante a madrugada, sinal de desgraça no povoado, “outra marca da tradição patente na obra”.

Os nomes típicos que são usados pelo autor durante toda a história também não são de menosprezar, pois ressaltam aquilo que é o património cultural mais valioso, os instrumentos musicais também, o batuque, as bebidas e comidas típicas de Muriua ex. Utxema e Nipa, o pende, carne de hipopótamo, dentre outros.

Durante o baile, os jovens reunidos vão contando as suas peripécias, apreciando as meninas a dançar e comentando sobre a diferença existente entre a tradição e as práticas da cidade. Um dos jovens, chamado Banda estava a estudar em Quelimane e comentava em relação a diferença entre as práticas da região, as danças, o convívio diferente das discotecas por onde passou. Feito o comentário o jovem foi muito criticado ʺ…como consegues desprezar o que é nosso? Essas coisas da cidade não nos valem aquiʺ. Com o pronunciamento fica clara a necessidade de se valorizar a cultura, os princípios e valores próprios de cada um.

Ao terminar o romance ficou a marca de que é possível sim vencer e ultrapassar determinados entraves que a cultura nos reserva, nalgumas vezes. O que aconteceu com Nsai é a prova disso, ela saiu do povoado por imposição dos pais para ser freira e com o andar do tempo, já distante deles decidiu fazer cumprir o seu desejo, renunciou e foi formar se em medicina, posteriormente conseguiu emprego e regressou para junto de seu grande amor, Victor. Deste modo, Nsai transcende para níveis mais elevados e quebra o preconceito e a discriminação de que a mulher de Kumpheia deve apenas servir a família. Demonstrou que a mulher é sim capaz de estudar e ajudar no desenvolvimento do país. Na actualidade, podemos afirmar que essa imposição dos pais sob a vida dos filhos não acontece em grande medida pela dinâmica e mudanças próprias da sociedade, entretanto tal facto tinha o seu lado positivo no sentido em que os filhos respeitavam e davam ouvidos aos pais e muitos deles tinham a sorte de não enveredar por maus caminhos. Hoje, regista-se uma crise na sociedade, crise de valores morais. O compromisso, o respeito que existia entre os casais era outro. Na actualidade são muitos os casais que passam por essa situação e muitos deles não conseguem resistir a distância e acabam se separando. Na obra ficou evidente a persistência, o amor verdadeiro de Nsai e Victor, amor este, que resistiu a distância, aos obstáculos familiares e sobreviveu no final com a concretização do casamento e a felicidade dos dois.

As marcas do colonialismo fazem-se presentes na obra, no quinto capítulo, o autor faz referência a nova era, sem a presença do colono, a liberdade do povo que outrora vivia escravizado. Portanto, Kumpheia presenciava um novo tempo, os edifícios sendo restaurados, as escolas, ruas e mercados. Recorda o tempo difícil de guerra que se viveu no povoado por conta de todo esse processo de libertação.

A obra faz-nos recordar de forma muito marcante os escritos de Paulina Chiziane particularmente ʺBalada de amor ao ventoʺ publicada em 1990, o primeiro a evidenciar o quotidiano feminino. O que mais marca a ponte entre as duas obras é que Sarnau, uma das personagens principais conta-nos das saudades da sua terra, Mambone, localizada nas margens do rio Save e faz de igual modo um flasback até sua adolescência, principalmente amorosa a semelhança de Victor na obra em análise. Os traços ou marcas culturais e sua valorização também estão bastante presentes na obra de Chiziane fazendo referência às cerimónias dos ritos de iniciação dos jovens rapazes da sua aldeia, dentre eles, destacava-se o Mwando, por quem Saunau apaixonou-se desde o primeiro momento. Portanto, o amor, a tradição são elementos comuns na obra assim como as marcas do colonialismo, onde se destaca na temporada que Mwando passou em Angola no trabalho forçado. Balada de amor ao vento retrata de igual modo a realidade de uma sociedade patriarcal, repleta de poligamia, supremacia do homem e a deterioração da imagem da mulher, a mulher aqui foi feita apenas para servir a família como acontece por um lado, em Kumpheia.

IV. Conclusão

Terminada a reflexão crítica, torna-se necessário reafirmar que o romance em análise é sem dúvida cheio de esperança, de conceitos de família tradicional africana, de luta e perseverança pelo que se deseja, de crença na escola como única alternativa para garantir um futuro melhor para a sociedade e não só como também para os próprios jovens.

Um romance que descreve a história de amor, identidade sócio-cultural da região de Muriua. Onde se vivencia de forma nítida o censo cultural e humano de um povo numa altura em que a sociedade encontra-se em crise, perdendo seus valores fundamentais.

Os pontos principais apresentados na obra são: o respeito pela tradição/cultura, pelos mais velhos, o respeito pelo corpo da mulher e por outro lado a discriminação de que a mesma era alvo, sem poder de decisão sobre sua vida, pois a crença era de que só devia ser ensinada a cuidar da menstruação e da família, facto este que foi claramente provado o contrário com o testemunho de Nsai que apesar das vicissitudes, demonstrou profunda superação dos usos e costumes, dos desejos dos pais transcendendo para outros patamares da vida e erradicando os preconceitos da sociedade de Muriua.

V. Referências 

CHIZIANE, Paulina. Balada de Amor ao Vento. Editora Njira, 5ª Ed, Maputo, 2010.

PINHO, Mukuda. Mulher de KuMpheia. Oleba Editores, Maputo, 2018.

http://www.Arquidiocesebh.org.br

Artigo completo: