Razões inerentes à natureza humana e ao pacto social democrático para se legalizar o uso de drogas ilícitas,a prática do aborto e da eutanásia          

O assunto é polêmico e traz debates acalorados mas, nos países em que se tem aspirações democráticas, não pode ser ignorado. Afinal numa democracia não se trata apenas de ouvir o que a maioria quer, mas sim o que todos querem, inclusive as minorias. Pois, se tivermos um Estado onde a maioria seja de opressores e a minoria de oprimidos, o que será desta minoria?

          No casos das drogas ilícitas, da eutanásia e do aborto, estamos diante de uma situação parecida. Há o lado, atualmente, majoritário da população que não admite que esses direitos sejam concedidos e, infelizmente, a lei segue neste sentido. No entanto, todo impedimento legislativo, historicamente, tem se mostrado ineficiente, quando pretende restringir aquilo que intuitivamente todos tem como certo, ou seja, o direito inato sobre o próprio corpo. Um exemplo clássico é a abolição das leis escravistas. Hoje, com exceção da eutanásia (com solicitações menos expressivas), apesar do impedimento legislativo, mulheres continuam abortando e segue crescendo o número de pessoas que consomem drogas.

         A lógica subentendida na mente daqueles que se opõem a concessão destes direitos é a seguinte: "Eu não quero usar drogas e não aprovo e não farei aborto e nem eutanásia, mas quero que aqueles que querem usar drogas e desejam fazer aborto e eutanásia sejam impedidos. Portanto, quero legislar sobre a corporeidade dos mesmos".

          A meu ver, uma das razões que deveriam impedir o Estado de legislar sobre a nossa corporeidade é a de que ele (Estado) não é o responsável pela mantença desta e, mesmo que fosse, no caso específico da eutanásia, não poderia criar impedimentos, porque o sofrimento daqueles que desejam praticá-la não é só de natureza física - que o Estado utópico e provedor estaria em condições de amenizar - mas é também de natureza psicológica, que não se cura ou traz alívio duradouro apenas com medicamentos.

         Apesar desta ideia ser parcialmente possível, o que a torna irrealizável é que mesmo que todas as pessoas do planeta tivessem a possibilidade de ter os seus corpos mantidos pelo trabalho de robôs do Estado, programados e fabricados, não por seres humanos mas, por uma inteligência artificial, haveriam ainda pessoas que iriam preferir manter os seus corpos às custas do seu próprio trabalho para não abrirem mão do direito inato sobre os mesmos.

        Há também um argumento premonitório ou pressagioso, voltado principalmente ao uso de drogas e que diz que a sua legalização levaria as pessoas a uma espécie de frenesi para se drogarem. Todavia, este é um argumento falacioso, já que nenhum dos experimentos sociais que foram ou estão sendo feitos, confirmou este presságio e mesmo que tivesse, haveria de se considerar o fato de que nenhum deles iniciou-se através de uma educação sobre os efeitos desencadeados no organismo e nem sobre como deve se dar o seu uso para fins recreativos ou para obter-se o autocontrole. O que se tem comprovado é que o uso imoderado está mais associado a um problema social, pois serve como um mecanismo de alienação para aliviar a frustração daqueles que, por motivos diversos, fracassaram ou que vieram de camadas menos privilegiadas. Já nas camadas privilegiadas, existe um uso cuja finalidade é mais recreativa.

         Um outro argumento também premonitório que tem sido usado para sustentar a proibição do uso das drogas, é que a legalização desencadearia um surto de violência, assalto, roubo e assassinato. Este argumento decorre do fato de que muitas pessoas no ato do cometimento de crimes estarem sob o efeito de drogas. Logo, deduz-se que as drogas é que as levaram a cometer tais crimes. Na verdade o que se nota aqui é um exame superficial da situação, provavelmente, decorrente do grande desinteresse do Estado e, quiçá, da sociedade em identificar a origem do problema que se deve, principalmente, às abissais diferenças remunerativas salariais provenientes da classe de trabalho realizado. Enquanto alguns navegam na bonança, a maioria afoga na miséria.

         A mente do sujeito é preparada dentro do contexto social em que ele vive. E quando ele se sente marginalizado, gera-se uma tensão interna que vai crescendo lenta ou rapidamente, de acordo com o temperamento de cada um, até chegar ao limite individual de suportabilidade. Neste ponto, se o sujeito está sob o efeito daquelas drogas estimulantes que o fazem se sentir mais confiante e destemido como o ecstasy e a cocaína, provavelmete, ele irá sucumbir diante da necessidade imperativa de extravasar. O que o  Estado não reconhece é que quando o sujeito chega neste clímax, qualquer coisa, e não somente as drogas, por mínima que seja, como o aborrecimento no trânsito, uma discussão com a esposa ou mesmo a inveja das condições mais privilegiadas do outro, podem levá-lo a a cometer atos criminosos. Portanto, neste caso, não são as drogas que induzem o sujeito a um estado mental de contrariedade, frustração e revolta que o levam a cometer delitos como o assalto, o roubo e o assassinato. O que acontece é que o sujeito já estando num estado mental de contrariedade, frustração e revolta, resultante do meio social no qual está inserido, ao fazer uso das drogas intensifica este estado mental e se sente encorajado a cometer os crimes mencionados. Com isso não estou querendo dizer que as drogas só intensificam um estado mental pré existente. Existem outros casos em que as pessoas se tornam mais alegres e emocionais, após o uso, mesmo que num momento anterior não estivessem e, também aqueles casos em que o sujeito estando sob o efeito das mesmas, ao ser provocado, sai do seu estado mental de serenidade e passa ao estado mental de raiva extrema, que o leva a cometer um crime.

        Entrementes, se levarmos em consideração tudo o que é capaz de alterar o estado mental das pessoas, em dado momento, teremos que acrescentar à lista o álcool, o cigarro, grande parte dos medicamentos, a privação de sono e de alimentos, os exercícios físicos, as alterações hormonais, principalmente nas mulheres, o choque entre culturas diferentes, etc. Em suma, estamos sujeitos à alteração do nosso estado mental desde o momento em que nascemos até o último suspiro. Isso significa que não se justifica o argumento de que as drogas ao produzirem alterrações no estado mental do sujeito podem levá-lo, invariavelmente, a cometer crimes. O que acontece, nestes casos, é que há uma renúncia ao autocontrole, mais ou menos justificável, que leva o sujeito a cometer delitos durante a alteração do seu estado mental, ocasionado pelas drogas. Porém, tal renúncia não se deve a estas. Por mais paradoxal que seja; se o uso de drogas fosse feito sob a devida orientação e supervisão poderia, inclusive, auxiliar o sujeito a obter um maior autocontrole.

         Se reconhecêssemos, que a criminalidade está mais relacionada às injustiças sociais e à perda intencional do autocontrole, do que ao uso de drogas e, se tentássemos corrigir estes problemas, a primeira medida a ser tomada seria, obviamente, uma remuneração salarial mais justa para as classes menos privilegiadas, que permitisse não só o satisfazimento das necessidades básicas presentes na sociedade na qual estivesse inserido, como também alguns tipos de lazer e entretenimento. Concomitantemente, o Estado deveria incentivar o controle de natalidade e o planejamento familiar. A segunda medida envolveria a criação de leis mais rigorosas, baseadas em princípios talionares, cuja  finalidade seria a de induzir os mais impulsivos a terem um maior autocontrole já que a concessão de uma maior liberdade requer uma maior responsabilização, quando os excessos cometidos resultam na violação do direito do outro ou no prejuízo para o mesmo. Punir de forma pública e exemplar é a chave para impedir as reincidências e desencorajar a rebeldia e a violência.

         Um último argumento daqueles que são contrários à legalização das drogas é o de que poderia aumentar significativamente o número de consumidores e, consequentemente, o número de viciados, o que acarretaria maiores despesas para o Estado e para a sociedade com tratamentos. Isso, certamente, poderia ocorrer, se o dinheiro arrecadado com o comércio fosse desviado para outras finalidades e não para o tratamento dos dependentes; se a tributação sobre os comerciantes e produtores não fosse elevada; se não houvessem especificações quanto a quantidade a ser vendida e consumida por pessoa e sobre os horários e dias em que o consumo poderia ser feito; se não houvesse cadastramento e fiscalização dos comerciantes e produtores e também um número limitado em cada cidade daqueles que poderiam exercer esta atividade; se não fosse estipulada a quantidade máxima que cada produtor poderia produzir e cada comerciante vender; se não fosse estabelecida a idade mínima para consumo, que deveria coincidir com a autonomia financeira do indivíduo, ou então, se o consumo daqueles que estivessem na idade adequada, mas que fossem dependentes dos seus pais não ocorresse sob a supervisão e autorização dos mesmos. Para se evitar a formação de cartéis, com o crescimento da demanda, novos produtores e comerciantes, sem qualquer ligação com aqueles já estabelecidos no negócio seriam cadastrados. Também não poderia haver a participação de grandes empresas. Teria que ser um negócio familiar, tanto para a produção como para a comercialização. O bom uso da liberdade depende da eficiência e dos conteúdos das regras estabelecidas e a permanência desta liberdade depende da autosustentabilidade do sistema.

        Quanto a proibição do aborto e da eutanásia, é mais fácil refutar os argumentos, porque são de natureza moral e não tem possibilidade de repercutir negativamente sobre o organismo social. Mais uma vez, alego em defesa daqueles que querem praticá-los, o exercício do direito inato à corporeidade que, em termos mais amplos deve ser denominado de direito ao auto pertencimento, cuja dedução no íntimo faz parte do entendimento e aceitação de todos, pois "eu me sinto, estou ciente e me mantenho, logo eu me pertenço". A discordância, baseada na intromissão no direito do outro, resulta na renúncia ao próprio direito, uma vez que se abre um precedente para que o outro também se intrometa no direito do intrometido.

        Entretanto, há um argumento que os opositores poderiam usar, especialmente, em relação ao aborto que, aparentemente contraria o argumento aqui defendido. Trata-se do suposto direito de auto pertencimento do feto. Tal argumento, provavelmente, surge de um entendimento superficial do que foi exposto, pois um feto que apresenta o número de meses em que o aborto é aceitável não satisfaz nenhum dos quesitos necessários para que possa ser considerado auto pertencente, visto que ainda não é capaz de se manter (sustentar a própria vida, através das funções vitais do organismo); não tem a mínima autoconsciência e também não dispõe de um sistema nervoso suficientemente desenvolvido para que pudéssemos afirmar que ele se sente. Na verdade, ele se encontra num estado vegetativo, que é muito similar ao daquelas pessoas em coma profundo, que na maioria das vezes tem o aparelho que sustenta as suas vidas desligado.

         Finalmente há que se acrescentar que com respeito a eutanásia não se trata apenas da concessão de um direito inato, mas também de uma questão de humanidade, proporcionar uma boa morte ou talvez uma morte feliz àqueles cuja dor e sofrimento tornam-se insuportáveis.