1. A FAMÍLIA DE RAIMUNDO FERREIRA LIMA

 

Raimundo Ferreira Lima era filho do casal João Ferreira Lima e Joana Joaquina de Mendonça (Joana Batista de Mendonça).  João Ferreira Lima casou-se no dia 4 de dezembro 1791, na Freguesia de Nossa Senhora da Expectação em Icó, Sitio Lagoa, Várzea Alegre. Desse enlace matrimonial nasceram: Maria Magdalena (Ferreira Lima, em 1791), Joaquim Ferreira Lima (em 1792), Ana Ferreira Lima (em 1795), quando a família ainda morava na Fazenda São Cosme, Freguesia de Icó, Ceará.

Joana Joaquina de Mendonça, mãe de Raimundo Ferreira Lima era filha do casal, Doutor Vitorino Costa de Mendonça e Teresa Bernarda da Costa Lima.  Doutor Vitorino Costa de Mendonça foi o quarto Ouvidor[[1]] da Capitania do Ceará, participou da criação da vila que recebeu o nome de Arraial da Ribeira dos Icós, em 4 de maio de 1738.

Raimundo Ferreira Lima era bisneto por parte de sua avó, Joana Maria dos Anjos, de Bernardo Duarte Pinheiro e Ana Maria Bezerra. O Alferes Bernardo Duarte Pinheiro foi o donatário da sesmaria da ribeira do Coroatá (Machado) em 1728, o primeiro morador do Sítio Lagoa que nomeou esse lugar de Várzea Alegre. 

Depois de 1795 a família de João Ferreira Lima, mudou-se para a sesmaria Monte Alegre, onde nasceram: Raimundo Ferreira Lima (aproximadamente 1798) e Antonio Ferreira Lima (aproximada 1799). Os registros não foram feitos na Freguesia de Nossa Senhora da Expectação do Icó, devido à distância, portanto, provavelmente, possam ser encontrados na Freguesia de Nossa Senhora dos Inhamuns (Jucás). Raimundo Ferreira Lima viveu 98 anos e conviveu com seu neto Aniceto Ferreira Lima, por mais de 14 anos e narrou-lhe muitas das suas aventuras no sertão, quando aos sábados, a família se reunia no engenho da Gangorra da Fazenda Monte Alegre.

Não foram encontrados nos sites de buscas, dados de registros de batismo dos filhos de Raimundo Ferreira Lima e de sua esposa, Joana Batista Ferreira Lima (Joana Josefa Batista), para resolver esse problema foi estabelecido que os homens se casavam aos 25 anos de idade e as mulheres aos 20 anos. O casamento de Raimundo Ferreira Lima foi realizado provavelmente na Freguesia de Nossa Senhora do Carmo dos Inhamuns (Jucás), em 1826.

Os filhos de Raimundo Ferreira Lima foram: Vitalina Ferreira Lima (nasceu 1828), Lourenço Ferreira Lima (n. 1831), Senhora Ferreira Lima (n. 1833), Antônia Ferreira Lima (n. 1836) e Martins Ferreira Lima (n. 1838).

 

2. ENTRELAÇAMENTOS FAMILIARES DA FAMÍLIA FERREIRA LIMA 

 

Apesar de poucas informações sobre esse assunto, será tratado o casamento de Antônia Ferreira Lima com João Quezado Filgueiras, natural da região do Cariri e de Souza, de Crato com Vitalina Ferreira Lima. Martins Ferreira Lima permaneceu na fazenda e casou-se com a sua prima Carolina Ferreira Lima de São Romão, Freguesia de Icó (atualmente Orós).

 

2.1. CASAMENTO DE ANTONIA FERREIRA LIMA COM JOSÉ QUEZADO FILGUEIRAS

 

Esse foi um dos enlaces matrimonias mais celebrados pela família sendo realizado na Freguesia do Santo Antônio de Barbalha, em 1856. Antônia Ferreira Lima casou-se com João Quezado Filgueiras, neto de José Quezado Filgueiras Lima.

José Quezado Filgueiras Lima, nasceu na Bahia em 1758, veio para o Cariri com seis anos de idade foi eleito capitão-mor da Vila Real do Crato em maio de 1799; casou-se, em primeiras núpcias, com Joaquina Maria Parente, em meados de 1800, quando passou a residir no Sítio São Paulo, herança do sogro, em Barbalha, Ceará. Lutou na Revolução Pernambucana de 1817, combateu as tropas leais a Portugal, ajudando a depor o governo legal do Ceará e tornou-se governador das armas desse estado (WIKIPÉDIA¸ 2020).

Em 1823, partiu do Cariri cearense com uma tropa de 2000 homens para combater tropas piauienses leais a Portugal, após a proclamação da Independência do Brasil. Venceu a Batalha de Jenipapo na vila de Campo Maior, Piauí no 13 de março de 1823, contra os comandados pelo major João José da Cunha Fidié vindos do Maranhão, portanto, recebeu o apelidado de “Napoleão das Matas” (QGE, 2018).

No final desse mesmo ano, comandou as tropas cearenses no movimento da Confederação das Províncias Unidas do Equador, proclamada pelo governo de Pernambuco, contra a centralizadora Constituição do Império, outorgada por D. Pedro I em  25 de março de 1824. Participaram dessa revolução, Tristão Gonçalves de AraripeJosé Martiniano de Alencar e José Pereira Filgueiras que depois de reconciliados, aderiram à Confederação. Tristão foi nomeado presidente e Filgueiras comandante das armas (E.B., 2020).

Com a derrota das tropas da Confederação do Equador, Tristão foi morto pelos próprios soldados, teve a mão cortada e seu cadáver foi apedrejado; Filgueiras se entregou e foi conduzido para a Capital do Império, a fim de ter uma conversa com o Imperador, onde segundo a versão oficial, veio a falecer de febre palustre[[2]] ao chegar na vila de São Romão, no Norte mineiro (GRUPO PROFALA, 2020).

Após sua morte, um de seus oficiais, Joaquim Pinto Madeira, assumiu o controle político e militar da região do Cariri e perseguiu sua família chegando a executar seu filho Filgueirinhas na revolução de 1831. 

 

2.2. CASAMENTO DE VITALINA COM SOUZA - UMA TRAMAOIA DO CAPITÃO DESCOBERTA DEPOIS DO CASAMENTO

 

Quase todos os casamentos, especialmente dos homens eram feitos na mesma família, ou seja, endogâmicos, mas o Sinhô Raimundo fez uma exceção para casar a filha mais velha e não a deixar no “caritó”. Caritó era a pequena prateleira no alto da parede, ou nicho nas casas de taipa, onde as mulheres escondiam fora do alcance das crianças, o carretel de linha, o pente, o talco, o pedaço de fumo e o cachimbo. A solteirona era chamada de Vitalina, conforme a popularizou a cantiga, a moça-velha que se enfeita - bota pó e tira pó - mas não encontra marido. E assim, a vitalina que ficou no caritó é como quem diz que ficou na prateleira, sem uso, esquecida, guardada intacta (INFORMAL, 2020).

"Bota pó, Vitalina e tira pó, moça velha não sai mais do caritó".

Raimundo Ferreira Lima tinha duas moças a mais nova chama-se Senhora Ferreira Lima era muito bonita, porém, a mais velha Vitalina Ferreira Lima não tinha tão boa aparência, devido ao avantajado tamanho de seu nariz, por esse motivo foi apelidada de 'Bicota'. Certo dia apareceu um rapaz de Crato, da família Souza para trabalhar na fazenda Monte Alegre era de boa aparência e se apaixonou pela filha mais nova do Sinhô Raimundo. Depois de algum tempo, o rapaz pediu a moça em casamento e tudo foi acertado com o pai da noiva. Naquele tempo não havia namoro, o pai acertava tudo com o noivo, ou com o pai do noivo e os dois, só se viam no dia do casamento.

Raimundo Ferreira Lima muito astucioso, elaborou um plano secreto para casar em primeiro lugar a filha mais velha, para tanto, mandou correr os banhos dos nubentes na Freguesia de Nossa Senhora dos Inhamuns no nome da sua filha mais velha, sem o conhecimento da família. Todo esse plano maquiavélico, só foi revelado a sua filha mais nova Senhora, depois do casamento, quando o noivo já estava muito embriagado.

O casamento foi realizado em 1850 na Fazenda Monte Alegre, pelo pároco da Freguesia de Nossa Senhora do Carmo dos Inhamuns, provavelmente pelo padre Francisco da Mota, coadjutor da freguesia de São Mateus (Jucás) de 1849 até 1851, muito amigo do Capitão Raimundo Ferreira. A cerimônia foi realizada a noite, a luz do murrão de cera de arapuá e de um terreiro iluminado pelas fogueiras das festas juninas.

A cerimônia foi muito rápida como havia sido combinado com o padre. A festa bradou até de altas horas! Souza foi bem servido com todas as iguarias e bebidas alcoólicas. No entanto, Sr. Raimundo tinha ‘corrido os banhos’ dos nubentes, trocando o nome da filha mais nova pelo da outra mais velha, Vitalina. O mal feito só foi explicado para as duas filhas, depois do término da festa, após a saída de todos convidados, enquanto isso, Souza completamente alcoolizado tinha sido conduzido a alcova, devidamente preparada para as núpcias no casarão da fazenda.

O padre saiu mais cedo da festa, pois foi convidado para dormir na casa de seu amigo Frutosinho da Fortuna, onde celebraria no dia seguinte, uma missa em sufrágio da alma da mãe do seu anfitrião.

No final da festa, o Capitão Raimundo chamou a família no fundo casarão para explicar a sua pataquada, todos ficam sabendo que o registro de casamento religioso tinha sido feito no nome da Vitalina e que não seria mudado.  O momento se tornar tenso, todos discutem furiosamente, mas não havia outra alternativa, Vitalina tinha que assumir o imbróglio – 'deitar com o Souza'.

Depois de muita discussão familiar, enquanto a filha mais nova chorava descontroladamente, com interferência de Joana Josefa Batista esposa de Raimundo, foi decidido que a Senhora Ferreira Lima viajaria naquela mesma noite com o vaqueiro Hipólito, para o sitio São Romão, onde morava o seu tio Antonio Ferreira Lima e deveria ficar por lá, até os ânimos se acalmarem.   

Depois da partida imediata de Senhora para a casa do tio, Vitalina constrangida, tomou um trago de aguardente que a deixou meio entorpecida, trêmula e sorrateiramente entrou nos aposentos do Souza, que a essa altura se encontrava bastante embriagado. O casal, antes do romper da alva teve uma bela madrugada de carícias e afagos, dormiram até altas horas. Mas, que surpresa desagradável teve o noivo, quando viu pela manhã, que não era a sua amada, mas, sim a 'Bicota'! Ele ficou muito chateado, chamou o Sr. Raimundo e bradou encolerizado:

- Por que o Senhor me enganou, colocando a Bicota em meu quarto, quando estava embriagado?

O Sr. Raimundo lhe retorquiu:

- É porque a Bicota é a mais velha e ela precisava se casar primeiro, senão ia ficar no caritó! 

Então, Souza resmungou embravecido:

- Vou embora! Nunca mais boto meus pés aqui! O Sinhô não é homem de palavra! 

Raimundo Ferreira estremeceu e surtou de vez:

- Se você for embora e deixar a Bicota, morre, seu cabra!

Depois respirou e continuou dizendo:

- Agora preste atenção! Bicota é uma moça rica, já tem mais de 70 cabeças de reses, então você fica trabalhando na fazenda para você mesmo. 

- Vou lhe ajudar, de vez em quando, com a mão-de-obra escrava no que precisar para você tocar suas lavouras e criar o seu gado. 

- Topa!

O Souza pensou! Pensou! Não tinha alternativa.

- E disse topo! E vou tentar esse esquecer esse assunto! 

O casal teve muitos filhos. Um dos seus filhos chamava-se Luiz de Souza. Mas, aquela angustia perturbava muito a alma de Vitalina, sentia-se uma traidora de sua própria irmã. Tempos depois, o casal vendeu tudo que tinha e foi-se embora para a Humaitá[3], pelos idos de 1880, na época em que se iniciava a construção da Estrada de Ferro de Sobral. Daí em diante nunca mais se teve notícia do Souza e da Vitalina.

O mais triste dessa história é que a bela Senhora Ferreira, curtiu essa mágoa para o resto de sua vida permanecendo solteira, pois, uma moça velha rejeitada naquela época, com dizia o ditado - não sai mais do carito!

Essa é mais uma prova contundente que Raimundo Ferreira era de origem semita. Como um homem analfabeto saberia acerca da história de Labão e Jacó para proceder dessa forma tão rude com Souza, numa época em que ao leigo era proibido ler a Bíblia Sagrada e a maioria das missas era celebrada em latim? Sem dúvida ele recebeu esse conhecimento, através de seus ascendentes Familiares que eram conhecidos como Cristãos-Novos[4].

Veja o que o texto sagrado diz em Gênesis 29: 16-28:

“Jacó amava Raquel por isso se dispôs a trabalhar sete anos para Labão a fim de pagar-lhe o dote que lhe era devido.

Raquel era formosa de porte e de semblante, mas os olhos de Léia sua irmã eram fracos.

Após sete anos de árdua labuta Jacó disse a Labão:

- Dá-me a minha mulher, porque o tempo está cumprido para que receba por esposa.

E Labão reuniu todos os homens daquele lugar, e fez uma festa.

A noite ele tomou a sua filha Léia, e a trouxe a ele para possuí-la.

Mas de manhã, viu-se que era Léia.

Então ele disse a Labão:

- Que me fizeste! Não te servi por Raquel? Por que, então, me enganaste?

Então disse Labão:

- Neste lugar, não é costume de se dar a mais nova antes da mais velha. Passa a semana com está, então te darei a outra, pelo serviço em minha casa que me prestarás durante sete anos.

E Jacó fez assim e passou a semana com esta. E Labão lhe deu a sua filha Raquel como mulher.

 

3. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELO CAPITÃO RAIMUNDO FERREIRA LIMA 

 

Raimundo Ferreira Lima foi pecuarista e deu continuidade às mesmas atividades desenvolvidas pelo seu pai José Ferreira Lima, praticava a agricultura de subsistência para manutenção da família e da mão-de-obra escrava, residente na fazenda.  Mantinha na propriedade uma bulandeira para produção de farinha e um engenho da cana-de-açúcar para produção de rapadura e melaço, muito utilizados na suplementação alimentar com energético.

A sua esposa Joana Josefa Batista era uma mulher que sabia ler, escrever e tirava as quatro operações de conta, portanto, administrava os negócios da fazenda, pois o Sinhô Raimundo nunca se interessou pelas letras era rude e as vezes brabo. Foi umas das primeiras professoras da Zona Rural de Várzea-Alegre.  

Para se ter uma ideia de seus instintos impulsivos de Sinhô Raimundo, conta-se que certa vez, enquanto descia em direção a vila de Várzea Alegre foi acuado por um cão raivoso no terreiro de uma fazenda. O dono conseguiu dominar a fera fazendo-o entrar na casa, mas ainda latia enfurecidamente, nesse momento, Sinhô Raimundo se dirigiu até a porta e sem pedir licença, desferiu um tiro certeiro de lazarina na testa do animal. O homem espantado com a atitude explosiva, ainda pediu desculpas ao Sinhô Raimundo, enquanto isso ele se despediu, prosseguindo sua viagem com se nada tivesse acontecido (DANTAS, 2020).

Raimundo Ferreira Lima, exerceu o cargo por nomeação de Capitão Ajudante (subtenente ou Alferes), possuindo sob sua autoridade 30 homens armados com bacamartes. Essa tropa era recrutada, para resolver conflitos armados de terras, insurreições contra império, caçar escravos fugitivos e para lutar contra possíveis rebeliões indígenas, portanto, um tipo de 'Capitão do Mato'.

Essas nomeações eram comuns na época do Brasil Imperial, lembrando que o seu genro João Quezado Filgueiras era neto de José Quezado Filgueiras Lima um dos homens mais influentes da região do Cariri.

 Dava-se o título de “alferes” na organização do Exército decretada pelo Rei D. Sebastião, alguem que, além de levar a bandeira da unidade, exercia as funções de seu segundo comandante, imediatamente subordinado ao capitão. Alferes, acabou por deixar de designar uma função e passou a ser um posto de oficial que já não tinha, necessariamente, a função de levar uma bandeira. Os alferes mantiveram-se como segundos comandantes das companhias de Infantaria até à introdução do posto de tenente, em 1707 (WIKIPÉDIA, 2020).

Com o declínio do ciclo da pecuária no final do século XVIII, tem início um novo ciclo que transformaria a economia do Ceará e, consequentemente, a de Fortaleza: o do algodão, também chamado de ouro branco (JORNAL HOJE, 2020). Nessa época, apoiado pela mão-de-obra escrava o Sinhô Raimundo, também diversificou as suas atividades, tornando-se um dos grandes produtores de algodão da região.

Um dos tropeiros de apelido Braz Forte, foi até a vila de São Mateus com uma tropa de oito burros, carregados com pluma de algodão para entregar a mercadoria ao Sr. Neném, influente político na vila de São Mateus.

O jovem mulato era forte e destemido, no entanto, não levava desaforos para casa, por isso não largava as armas da cintura nem na hora de ir à missa na festa da padroeira. Lá na freguesia Freguesia de Nossa Senhora do Carmo dos Inhamuns, naqueles sextas-feiras ensolarados era costume dos tropeiros depois das entregas, amarrarem os animais debaixo dos jucazeiros e apreciarem a aguardente misturada com jurubeba, no sapê ‘Tapuia’, antes da volta para casa.

Naquele dia Braz Forte exagerou, ‘tomou todas’ e contendeu com a força estadual, confiando no prestígio do patrão o Capitão Ajudante, não quis entregar as armas. A pequena e truculenta força da Guarda Nacional, não tendo coragem de enfrentá-lo peito a peito, fez-lhe uma tocai por detrás das moitas de mufumbo, a vazante do rio Jaguaribe, matando o destemido tropeiro de forma violenta e indefesa. Esse fato provocou uma grande insatisfação, causando o afastamento da Guarda Nacional que fora deslocada de Telha para a Festa de Nossa Senhora do Carmo, celebrada no mês de julho em São Mateus do Inhamuns (Jucás). 

 

4. UTILIZAÇÃO DA MÃO-DE-OBRA ESCRAVA NA FAZENDA MONTE ALEGRE

 

Além do pessoal de apoio para lidar com o gado, trabalhar na lavoura e no engenho, Sinhô Raimundo chegou a possuir onze escravos, comprados em Fortaleza pelo preço de 100 mil réis (1 Reis = 0,123 reais = 12.300,00). O tráfico de negros africanos no Brasil colonial e no império passou a ser um negócio muito lucrativo para os colonos, sendo também de interesse da metrópole, da coroa portuguesa e até da Igreja Católica, que recebia certa porcentagem sobre cada escravo que entrava no país.

No livro Revelações da Condição de Vida dos Cativos do Ceará, escrito por Campos (1984) há um relato de anúncio de um escravo que fora roubado de Raimundo Ferreira Lima. Veja o texto na íntegra:

"No dia nove do mês de agosto de 1869, furtaram de Raimundo Ferreira Lima, abaixo assinado, um escravo de nome José, cabra, idade de 20 anos, pouco mais ou menos, que conduzia cargas para Icó, e no caminho foi agarrado pelos ladrões que o conduziram com procuração e certidão de idade do escravo, tiradas a falsa fé em nome do abaixo assinado para efetuarem a venda. E para que ninguém o compre enganado, protesta por meio desta haver o escravo judicialmente, de quem quer que o compre. Icó, 10 de agosto de 1869. Raimundo Ferreira". 

Quando o tráfico de escravos foi proibido por pressão da Inglaterra, os navios negreiros passaram a ser perseguidos, nesse tempo houve valorização de negros no mercado interno. Mas somente em 25 de março de 1884, o presidente da província, Sátiro de Oliveira Dias, declarou a libertação de todos os escravos do Ceará, tornando o estado o primeiro a abolir a escravidão no país (OTS, 2020).

Após a publicação da Lei de Euzébio de Queirós em 1850 que proibiu o tráfico de escravizados, o Sinhô Raimundo, aproveitou a oportunidade da alta do preço de escravos no mercado brasileiro, e vendeu os homens para o Rio de Janeiro, por um Conto de réis cada (1 milhão de Reis = 0,123 Reais = R$ 123.000,00), separando-o dos pais.

Esse foi um ato ignóbil do Sinhô Raimundo, que revela o desprezo que os senhores das terras tinham pelos seus servos, mesmo aqueles nascidos na sua própria senzala. Entre prantos, suspiros, murmúrios e rostos cheios de lagrimas foram separados para sempre de seus entes queridos!  Mas, as negras não foram vendidas, dizem que Sinhô Raimundo as tratava muito bem. Uma das escravas chamada Tomázia, viveu 96 anos, segundo relatos de Antonio Ferreira Lima, as suas irmãs mais velhas Maria e Carolina que nasceram pelos idos de 1904, chegaram a vê-la ainda com vida, lá pelas Cajazeiras dos Martins.

"O governo brasileiro foi durante muito tempo pressionado pela Inglaterra para acabar com o tráfico de escravos africanos, a demora para cumprimento da lei estava atrelada a dependência do Brasil em relação à mão de obra escrava, mas, enfim, neste contexto de pressão D. Pedro I assinou a Convenção de 1826. No artigo Iº definia-se um prazo de três anos para extinguir o tráfico nacional, que, depois de expirado seria considerado pirataria. Nos demais artigos o Brasil concordava em manter os tratados anteriores (anglo-portugueses) e instituíam-se duas comissões mistas, uma no Rio de Janeiro e outra em Serra Leoa na África, com a finalidade de resolver questões relativas a apresamentos, garantindo a liberdade dos africanos encontrados nesta situação. A Convenção foi ratificada a 13 de março de 1827, transformando automaticamente o tráfico nacional em pirataria a partir de 13 de março de 1830. Esta situação gerou um grande desconforto à Câmara, que condenaria a atitude do Governo Imperial questionando-o por ceder a compromissos que, no seu entender, prejudicavam o Brasil" (MULTIRIO, 2009).

Alguns mestiços da região são parentes muito próximos do povo da fazenda Monte Alegre. Geralmente os senhores escravos tratavam as escravas mais formosas com sendo suas amasias. Segundo Sr. Antonio Ferreira Lima um dia passando em Quixará, quase levou uma surra por conta da semelhança que tinha com o mulato Cícero Braz. Segundo o seu relato, Cícero Braz tinha umas dívidas a pagar no Quixará e para piorar a situação, tomava umas pingas e era encrenqueiro.

Um dia dez homens estavam reunidos em um botequim na saída da cidade, com o intuito de acertar as contas com o Braz, nessa ocasião, já começava a escurecer, quando de repente Sr. Antonio Ferreira passou em frente ao bar e quase foi confundido com o alambicado, mas, só escapou por que foi reconhecido, quando disse: 'boa noite'.

Por isso Antonio de Aniceto afirmava, de vez em quando, que era primo de Cícero Braz e isso o deixa muito feliz. Acho que ele deveria ser da mesma linhagem do vaqueiro Braz Forte com alguma escrava da Fazenda Monte Alegre. Mas, talvez isso fosse uma artimanha utilizado pelos fazendeiros escravagistas, numa tentativa de eximirem-se da culpa da paternidade perante a própria família.

 

5. UMA HISTÓRIA HORRIPILANTE - O VAQUEIRO HIPÓLITO E O INDIOZINHO

 

Além da mão de obra escrava, Sinhô Raimundo tinha muitos moradores e alguns vaqueiros, cuja memória foi relatada para mostrar o tratamento dado aos índios naquela época. Essa cena é chocante, aconteceu com um dos vaqueiros, cujo nome era Hipólito. Conta-se que certo dia, quando esse vaqueiro campeava o gado nas Cajazeiras, encontrou algumas índias numa trilha de gado, então ele botou o cavalo atrás para ver se conseguia capturar alguma delas, no desespero e correria uma das índias soltou um garoto que levava a tiracolo.

Hipólito pensou consigo mesmo:

- Vou cria criar esse menino!

Desceu do cavalo e ao segurá-lo, o indiozinho assustado lhe cerrou os dentes no polegar direito. Ele pelejou e não conseguia tirar o seu dedo da boca menino, porquanto, estava cerrado pelo intenso pânico, então para se desvencilhar do pequeno inocente, Hipólito, de forma cruel e violenta, dilacerou as suas as bochechas com a lâmina afiada de sua peixeira, assassinando-o em seguida, de forma brutal.

Esse acontecimento chocante aqui relatado, indica como eram tratados os silvícolas naquela época. Os índios foram tratados de modo cruel durante todo período do Brasil colonial e mesmo durante o império:

"Faz horror refletir na rápida despovoação destes miseráveis depois que chegamos ao Brasil; basta notar, como refere o Padre Vieira, que em 1.615, ano em que se conquistou o Maranhão, havia desde a cidade até o Gurupá mais de quinhentas aldeias de índios, todas numerosas, e algumas delas tanto, que deitavam quatro a cinco mil arcos; mas quando o dito Vieira chegou em 1.652 ao Maranhão já tudo estava consumido e reduzido a mui poucas aldeotas (...). Calcula o Padre Vieira que em trinta anos, pelas guerras, cativeiros e moléstias que lhes trouxeram os portugueses, foram mortos mais de dois milhões de índios (ANDRADA E SILVA, 1998).

 

6. CAÇADA AS ONÇAS E A LIDA DOS VAQUEIROS

 

Naquela época havia muitas onças pardas, vermelhas e pintadas na região, porém, às vezes, elas invadiam as fazendas e matavam bezerros e animais de pequeno porte, para resolver o problema algumas vezes, os vaqueiros promoviam a caça desse importante felino da caatinga.

Certo dia Hipólito e José de Castro fizeram uma espera para a captura de uma onça que estava rondando o gado na fazenda Monte Alegre, para tanto armaram um jirau em cima de uma oitizeiro, e puseram também, um pequeno animal como isca. Lá pela meia noite quando reinava o mais absoluto silencio, começaram a ouvir os primeiros esturros da onça que se aproximava. Nesse momento Hipólito se arrepiou todo, da planta dos pés à cabeça, então se levantou segurando a lazarina, e à medida que o animal se aproximava foi se afastando de costas no jirau, até despencar de uma altura de 4 metros. Como estava com a mão no gatilho o baque e o tiro tornaram a cena ainda mais estarrecedora.

Hipólito deu um grito de assombro no meio da escuridão, e os cachorros aturdidos que estavam numa outra espera próxima, partiram sem pena e sem dó, para cima do miserável e só não fizeram maior estrago, porque o amigo José de Castro, dono dos caninos conseguiu controlar a fúria selvagem, mas, foi aquela zueira infernal. Naquele dia quem teve sorte foi o pobre felino que escapou ileso, porém, esses animais foram caçados impiedosamente pelo homem até ser completamente extinto na região (MANDU, 2010).

Como o gado era criado solto e algumas reses nunca eram encurraladas, nas matas havia touros muito bravos e perigosos, chegando a se tornarem uma ameaça para os vaqueiros descuidados. Para capturar um desses touros bravos, Hipólito e seu Raimundo Ferreira, ficaram numa espera, num local aonde havia água e ali esperaram a fera.

Com um tiro certeiro de bacamarte disparado por Hipólito, a bala cortou-lhe a jugular e o temido animal caiu à beira do riacho Fortuna. O animal estava muito cevado, Hipólito queria levar a carne, mas seu Raimundo, disse:

- Tome cuidado! Boi solto no mato, não castrado tem a carne reimosa! Nunca comi, jamais comerei!

Eles acreditavam naquela época que fazia muito mal à saúde. No entanto, Hipólito insistiu e levou ainda dois quilos do traseiro da fera, para comer em sua casa na Santa Rosa. A partir desse episódio, o Sinhô Raimundo Ferreira resolveu construir uma entrada de pau-a-pique na aguada do riacho Fortuna para encurralar, marcar a ferro-fogo e castrar os touros para ceva no pasto solto. Na entrada da aguada, havia um corredor que formava um “v” a beira do riacho, daí chamarem essa entrada de Gangorra até o dia de hoje.

Havia muitos veados, onças, caititus e tatus, naquelas matas da fazenda Monte Alegre. Sinhô Raimundo contava que certa vez ouviu uns esturros de onças, subiu em um lugar seguro e observou que havia uma onça pintada em cio, vinha sendo seguida de pelo menos uns vinte machos, inclusive um de cor avermelhado, que dava “chega”, bonito de se ver nos machos pintados. Caititu era “mata” no riacho, que ficou conhecido até hoje como riacho dos Porcos.

O senhor Raimundo Ferreira Lima durou 98 anos sendo a sua morte decorrente de uma ferida na região acima do peito, provavelmente, um agressivo melanoma de pele. A doença foi agravada depois que ele mandou a escrava Tomázia queimar o caroço com a ponta de um cavador aquecido no borralho, aí o mal evoluiu rapidamente, causando a sua morte em aproximadamente 1884.

Raimundo Ferreira conservou a herança recebida que seu pai a conquistara ao longo de sua vida, manteve o costume dos casamentos endogâmicos, ou com pessoas de linhagem judaica, Frutuoso, Lima, Pereira, Baptista, Souza e Filgueira.

Alguns filhos de Raimundo Ferreira Lima, saíram de Monte Alegre e procuram outros lugares mais favoráveis para viverem. Maria Ferreira Lima foi embora para Barbalha, após o seu casamento com José Quezado Filgueiras. Vitalina casada com o Souza, tempos depois da trapaça do pai foi embora para Humaitá e nunca mais voltou. Martins Ferreira Lima, Lourenço Ferreira Lima e Senhora Ferreira Lima continuaram morando em Monte Alegre e Cajazeiras.

 

7.  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CAMPOS, E. Revelações da condição de vida dos cativos do Ceará. 1984. Disponível em: < http://www.eduardocampos.jor.br/_livros/e27.pdf>. Acessado em: 16 de junho de 2020.

DANTAS, A. A. Relato feito por Antonio Dantas Lima. Wisconsin, EUA, junho de 2020.

E.B - EXERCICTO BRASILEIRO. A Confederação do Equador - O que vai pela Força. Ministério da Defesa. Mídia ImpressaDisponível em: <http://www.eb.mil.br/web/midia-impressa/o-que-vai pela-forca>. Acesso em: 11 de junho de 2020.

GRUPO PROFALA. Região do Cariri. Universidade Federal do Ceará. Disponível em: <https://profala.ufc.br/o-portugues-falado-no-Ceará-2/dados-das-cidades/>. Acesso em: 11 de junho de 2020.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Assaré Ceará: histórico. Disponível em: <http://www.https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/Ceará /assare.pdf>. Acessado em: 15 de junho de 2020.

INFORMAL. Dicionário de língua portuguesa. Disponível em: . Acessado em: 12 de junho de 2020.

JORNAL HOJE. Ciclo do algodão consolidou posição da cidade. Disponível em: <https://www20.opovo.com.br/app/opovo/economia/2015/04/10/noticiasjornaleconomia,3420623/ciclo-do-algodao-consolidou-posicao-da-cidade.shtml>. Acesso em: 14 de junho de 2020.

LIPINER, E. Santa Inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro, RJ: Documentário, "Verbete Marranos", p. 99. (1977 a).

MANDU, A.   Relatos de Alcides Mandu. Farias Brito, CE, janeiro de 2010.

MULTIRIO. Pressão inglesa para o fim do tráfico negreiro. Prefeitura da cidade do Rio, Secretaria de Educação. Disponível em: http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/pressao_inglesa.html>. Acessado em: 14 de junho de 2020.

OTS – OBSERVATORIO DO TERCEIRO SETOR. Dragão do Mar fez Ceará abolir a escravidão 4 anos antes da Lei Áurea. <https://observatorio3setor.org.br/ carrossel/dragao-do-mar-fez-Ceará-abolir-a-escravidao-4-anos-antes-da-lei-aurea/>. Acessado em: 12 de junho de 2020.

QGE - QUARTEL-GENERAL DO EXÉRCITO. A Batalha do Jenipapo. Brasil Escola. Guerras da Independência, publicado em 26 de junho de 2018. Disponível em: <http://www.badmqgex.eb.mil.br/patio-das-batalhas/patio-das-batalhas/07-artigo-07>. Acesso em: 11 de junho de 2020.

WIKIPÉDIA. ENCICLOPÉDIA LIVRE. José Pereira Filgueiras. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Pereira_Filgueiras>. Acesso em: 2020 de junho de 2020.

WIKIPÉDIA. Alferes. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Alferes>. Acesso em: 13 de junho de 2020.

WIKIPÉDIA. ENCICLOPÉDIA LIVRE. Pires Ferreira. Disponível em:

Antonio Anicete de Lima e Antonio Ferreira Lima

Porto Velho, 20 de junho de  2020

[[1]]Ouvidor (do latim audītor, ōris, 'aquele que ouve, auditor') era a designação dos magistrados que superintendiam na justiça das terras senhoriais, em Portugal. As suas funções eram semelhantes às dos corregedores nas terras diretamente dependentes da Coroa. As terras sujeitas a corregedores eram chamadas "comarcas" ou "correições" e as sujeitas a ouvidores eram chamadas "ouvidorias".

[[2]]Doença infecciosa febril aguda, cujos agentes etiológicos são protozoários transmitidos por vetores (mosquito). Também é conhecida por: paludismo, impaludismo, febre palustre, febre intermitente, além de nomes populares, como maleita, sezão, tremedeira, batedeira ou febre. No Brasil, três espécies de protozoários do gênero Plasmodium acometem seres humanos: Plasmodium malariae, Plasmodium vivax e Plasmodium falciparum. A transmissão e feita através da picada da fêmea do mosquito gênero Anopheles, popularmente, chamados de “carapaña”, “muriçoca”, “sovela”, “mosquito prego” e “bicuda”. Disponível em: < http://cidadao.saude.al.gov.br/saude-para-voce/saude-de-a-a-z/doenca_m/>. Acesso em: 11 de junho de 2020.

[3]Atualmente, Humaitá chama-se Pires Ferreira um município brasileiro do estado do Ceará, localizado na microrregião de Ipu. A cidade ganhou este nome em homenagem a Antonio de Sampaio Pires Ferreira, Engenheiro chefe da estrada de ferro que ligava Crateús a Sobral (WIKIPÉDIA, 2020).

[4]Cristão-novo designação dada em Portugal aos judeus convertidos ao cristianismo e seus descendentes, em contraposição aos cristãos-velhos (genuínos). A expressão foi difundida após a conversão forçada de judeus feita em 1497 pelo rei de Portugal, antes da instauração do Tribunal da Inquisição (LIPINER, 1977 a).