A comunicação humana nem sempre se deu da forma verbal empregada atualmente. Desenhos rupestres foram encontrados em diversas cavernas de vários países, inclusive no Brasil,retratando cenas de caça e feitos cotidianos o que certamente denota uma forma de comunicação imagética (pictografica).

Levando-se em consideração que o homem primitivo vivia praticamente em função de suas necessidades básicas,é de se admitir que uma vez satisfeitas essas necessidades,quer fosse diariamente quer fosse esporadicamente,sobrava-lhe tempo suficiente para observar a grande diversidade de objetos e fatos ao seu redor o que significa que teve a atenção voltada para uma maior aquisição de experiência.Numa dessas observações, nao importa se o fato tenha sido produzido de forma acidental ou intencional,ele deve ter notado que alguns matérias,quando submetidos à fricção com outros,desintegravam-se deixando um traço na superfície do outro.Materiais como o carvão, por exemplo,podem ter sido usados na confeção das primeiras pictografias mesmo quando não havia o domínio da técnica de produção do fogo pois incêndios naturais,certamente ocorriam.Mas antes que se desse essa importante descoberta é bem possível que os acontecimentos tenham sido comunicados através da encenação usando-se o casco e o couro do animal abatido ou então, em caso de malogro na caçada - apenas para relatar uma cena de perseguição -partes daquele que foi abatido em outras circunstâncias. São essas e outras encenações que,posteriormente, devem ter dado origem aos rituais,danças, folclore e algumas tradições.

O que importa destacar,com esses exemplos, é que a comunicação imagética (tanto pictografica quanto cênica) precedeu a comunicação verbal por ser mais condizente com o sentido da visão que predomina (dentro do padrão de sensorialidade presente em nossa espécie) por ser mais abrangente e comungatório visto que possibilita ao indivíduo e à coletividade participarem simultaneamente(não de forma idêntica obviamente) de uma ou várias experiências; sendo que essa ou essas experiências, quando se dão uma segunda vez para alguém,podem ser comunicadas e compreendidas seja imageticamente ou verbalmente por aqueles que as tiveram somente uma vez.Para ilustrar vejamos a seguinte frase que representa a verbalização de uma experiência:" O gato comeu o rato".Se quisermos compreendê-la não basta apenas aprendermos a pronunciá-la e memorizá-la, é necessário que tenhamos conhecimento dos objetos mencionados (gato e rato) e do ato de comer.Esse conhecimento imediato é dado através da sensação visual o que significa que se eu vi um gato comendo um rato, poderei memorizar a relação estabelecida entre a palavra gato e o objeto gato,a palavra rato e o objeto rato e entre a palavra comer e o ato de comer.Por outro lado,se tiver a sensação visual (conhecimento imediato) e representá-la desenhando um gato, um rato e esse gato comendo o rato, essa representação imagética da cena será suficiente para possibilitar a compreensão imediata se as pessoas que a virem tiverem tido a experiência visual de um gato comendo um rato.

Contudo ainda resta acrescentar que o sujeito não observa a cena relatada com a neutralidade de uma câmera filmadora pois,a sensação visual desencadeia a sensação emocional de satisfação(prazer),insatisfação(dor) e indiferença que por sua vez desencadeiam uma reação física involuntária quase sempre manifesta na expressão facial. Daí surgem três novas descrições da experiência que também podem ser dadas de forma verbal ou imagética. Na primeira descrição verbal teríamos: "O gato comeu o rato e eu fiquei contente". Na segunda: " O gato comeu o rato e eu fiquei descontente". Na terceira: "O gato comeu o rato e eu não me importei". Já na descrição pictografica teríamos as imagens das cenas acrescidas de rostos com expressões faciais que denotariam alegria, tristeza e indiferença. As expressões faciais referentes à alegria e à tristeza, são perfeitamente associáveis a essas sensações emocionais porque os bebês as produzem já nos primeiros dias de vida antes de qualquer experiência social, apenas física. Quanto à indiferença, geralmente,se caracteriza pela ausência de expressão facial mas não de emoção porque quando observamos uma cena,podemos sentir indiferença em relação aos acontecimentos da cena em questão mas não desinteresse pela mesma.Logo,o interesse demonstrado é uma modalidade emocional que capta a atenção. Outras expressões além dessas são questionáveis, em relação à sua procedência, porque carregam forte influência da mãe e do meio socio-cultural no qual os bebês estão inseridos.

Esses elementos tanto de caráter sensorial quanto emocional da experiência,são subjetivos porque se dão no sujeito.Entretanto,a inclinação do agente subjetivo para a constatação sensorial ou factual é uma inclinação para a objetividade enquanto que a inclinação desse mesmo agente para a constatação emocional é uma inclinação para o que denomino de pessoalidade da experiência.

Assim,podemos dizer que: 1-toda sensação visual,olfativa, tátil, gustativa e auditiva é experiência subjetiva de caráter objetivo para aqueles que se encontram dentro do padrão de sensorialidade predominante em nossa espécie. 2- toda sensação emocional de raiva,alegria,tristeza, desejo,interesse,inveja,paixão, etc,é experiência subjetiva de caráter pessoalista para aqueles que se encontram dentro do padrão de emocionalidade predominante em nossa espécie. Portanto,a comunicação de uma segunda experiência de mesma natureza(gato come rato) seja de modo verbal ou imagético, para aqueles que têm conhecimento prévio de tal experiência mas não participaram da segunda, envolverá elementos subjetivos tanto de caráter objetivo quanto pessoalista.

Pois bem,como consequência de tais distinções resulta a tendência à objetividade e a tendência à pessoalidade.Pessoas que são o mesmo que subjetividades e que na análise dos fatos tendem a deixar a pessoalidade de lado,também tendem em maior grau à objetividade e ao empirismo. Já aquelas que na análise dos fatos tendem a deixar a objetividade de lado, também tendem em maior grau à pessoalidade e ao racionalismo. Entretanto, como a nossa subjetividade de caráter pessoalista é constituída de emoções contraditórias não importa se primárias ou secundárias como o medo e o destemor;a calma e o nervosismo;a tristeza e a alegria;a paciência e a impaciência;a modéstia e a presunção; o ciúme e a indiferença;etc, acabamos tendo diversas tendências à pessoalidade que na filosofia resultaram em diversas tendências racionalistas de direita e de esquerda.

Enquanto o empirista busca e contenta-se com resultados através das operações presentes no pensamento,mas procedentes da experiencia, do tipo A+B=C, B+A=C, C-A=B, C-B=A e de outras que serão tratadas mais a diante, o racionalista,por outro lado,busca "verdades" ou um "algo a mais"das coisas como por exemplo: por que A é A ,B é B ou C é C? Por isso é correto dizer que o empirista submete o intelecto à experiência e o racionalista submete a experiência ao intelecto.Na verdade,o racionalista não admite que todas as nossas idéias, em todas as circunstâncias, são constituídas com elementos fornecidos pelos nossos sentidos.Descartes, por exemplo,nos fala de idéias inatas e Kant de idéias a priori.O empirista ,ao contrário, só admite o acionamento da mente e o consequente início da produção de idéias e pensamentos no momento do nascimento quando a exterioridade se faz presente para o sujeito através da ativação dos sentidos.

Essa busca persistente,mas em vão, do racionalista pelo "algo a mais", provavelmente já era conhecida muito antes desses filósofos,podendo muito bem ser relacionada a alguns episódios da mitologia grega e a alguns da mitologia judaico-cristã.

Na mitologia grega ,a exemplo,temos a estória de Sísifo. Numa das versões a narrativa é a de que Sísifo presenciou o rapto de Égina filha de Asopo por uma águia a mando de Zeus.Posteriormente ao ser interpelado por Asopo,revelou o destino de Égina em troca de uma fonte de água para a sua cidade.Quando Zeus soube,ficou furioso e enviou o Deus da morte Tânato para prender Sísifo e enviá-lo ao mundo inferior.Sísifo,no entanto,conseguiu ludibriar Tânato e o acorrentou.Como consequência,as pessoas deixaram de morrer.Foi então que Ares o deus da guerra comunicou a Hades(deus dos mortos) que não estava havendo mortes nas batalhas o que levou Hades a libertar Tânato e a ordenar-lhe que capturasse Sísifo novamente.Assim que soube,Sísifo pediu à sua mulher que não enterrasse seu corpo quando sua alma fosse levada por Tânato.Chegando ao inferno Sísifo ludibriou Hades ao dizer que sua mulher o traira ao não enterrar o seu corpo e pediu para voltar ao mundo dos vivos,apenas um dia, para vingar-se dela.Hades concedeu o pedido e Sísifo ao retornar ao mundo dos vivos fugiu com sua esposa. Os anos se passaram e Sísifo envelheceu,morreu e sua alma retornou ao mundo inferior.Como castigo foi condenado a rolar uma enorme pedra montanha acima sendo que à medida em que chegava às imediações do cume,ele perdia as forças e a pedra rolava montanha abaixo levando-o a recomeçar novamente.

Pelo seu caráter alegórico,resultante de um período histórico em que as pessoas ainda não expressavam suas idéias e pensamentos em um vocabulário específico,o mito de Sisifo deve ser entendido como possuidor de ampla significância,não podendo ser restringido a uma única interpretação. Aqui dou destaque à interpretação em que os deuses são entendidos como elementos da natureza que Sísifo (personificação do racionalista) tenta submeter às suas próprias regras e aparentemente é bem sucedido.Todavia,essa conquista é apenas ilusória voltando a prevalecer as regras intrínsecas aos próprios elementos.Nos termos de uma filosofia empírica,o ato de rolar uma pedra montanha acima expressa o esforço inútil do racionalista,seja ele de formação religiosa ou científica,para construir uma metafísica capaz de atingir o "cume" que nada mais é do que um fantasioso conhecimento absoluto e que sempre resulta numa contínua frustração dada pela pedra que rola abaixo.O castigo de Sísifo é uma alusão ao modo como viveu sua vida e à imanência que sempre predomina apesar da contínua aspiração humana a uma ilusória e inalcançável transcendência.

Na mitologia judaico-cristã vemos em Gênesis 11:1-9 a estória da Torre de Babel que relata o propósito dos homens de construir uma Torre que chegasse ao céu.Até então falavasse uma única língua.Deus, ao perceber o que estava sendo feito,resolveu criar outras línguas o que impossibilitou a comunicação entre os construtores.A partir daí,eles abandonaram o projeto e se dispersaram por toda a Terra.

A torre nesse exemplo é similar à montanha do mito de Sísifo e ,do mesmo modo,representa a tentativa dos racionalistas de adquirirem um conhecimento além da experiencia. O resultado é o afastamento dos parâmetros empíricos necessários à orientação e regulação do intelecto ao mesmo tempo em que se eleva a percepção pessoalista da realidade o que leva a um inconciliável relativismo que culmina em niilismo onde " vale tudo" e todos crêem estar com a verdade (a sua verdade).No mito em questão, isso é expresso através da proliferação das línguas e da dispersão dos homens pela Terra.

Com efeito,ainda resta esclarecer como é que se forma a idéia da possibilidade de um conhecimento transcendental ja que todas as nossas idéias resultam de nossas experiências.

Bem, conforme já foi dito,as experiências são o produto da totalidade de nossas sensações físicas e emocionais.Portanto,há que se buscar nessas sensações a idéia de transcendência.

Era muito comum na antiguidade associar-se o recebimento de um conhecimento,supostamente superior, à chegada ao topo de uma estrutura elevada.Vimos isso nos mitos citados e além deles podemos citar a estória de Moisés que recebeu as Tábuas da Lei no topo do Monte Sinai.

Partindo-se da premissa de que esses personagens fictícios foram criados por pessoas que possuíam, tal qual nós, uma constituição sensorial dentro dos padrões de sensorialidade da nossa espécie, é de se esperar que ao nos posicionarmos no topo de uma montanha ou de qualquer estrutura elevada,teremos as mesmas sensações que eles tiveram e poderemos compreender o que os levou à hipótese de um conhecimento transcendental.

Assim, quem já esteve no topo de uma montanha e ateve-se a pensar nas próprias sensações, sabe que é através do sentido da visão que obtemos -ao olhar o horizonte- as sensações de extensão e abrangência que desencadeiam (quando se dão nessa ordem) a sensação emocional de liberdade e de poder que combinadas causam sensações emocionais secundárias de entusiasmo,enlevo,pujança, etc. Em outras palavras, a sensação de estar no topo de uma estrutura bem elevada amplia a sensação visual desencadeando sensações emocionais mais intensas.Essa combinação de sensações produz um estado mental acima do habitual( muito similar à embriaguez e ao deslumbramento)o que faz com que aqueles que tendem à pessoalidade(racionalistas de direita e de esquerda)construam a idéia ilusória de transcendência passando a cogitar a possibilidade real de que " deve haver um algo a mais" que para os racionalistas religiosos significa " haver algo além "( inteligência superior) e para os racionalistas científicos( teorizadores ou analogistas como prefiro denominá-los) significa poder " ir além " que é o mesmo que compreender além da experiência .Sensações semelhantes à descrita mas, certamente, de maior intensidade,são aquelas resultantes do uso de drogas razão pela qual muitas delas estão associadas a cerimônias religiosas.

Hoje,por meio de estudos empíricos, sabemos que os estímulos sensoriais promovem a liberação de substâncias químicas denominadas de neurotransmissores que são os precursores dos Estados mentais associados à ideia de transcendência.

Se considerarmos o período da história posterior não só ao período historico-imagético das mitologias mas também àqueles em que houve uma maior vocabularização e especificação da linguagem como é o caso do platonismo e do tomismo,veremos que o racionalismo moderno surge com o filósofo René Descartes também conhecido por seu nome latino Renato Cartesius de onde deriva o termo cartesianismo.

Nas Meditações concernentes à primeira filosofia,Descartes da início ao seu projeto racionalista estabelecendo o princípio da dúvida sistemática ou hiperbólica que, resumidamente, consiste em só aceitar como verdadeiro aquilo que não possa suscitar a menor dúvida.

O primeiro argumento consiste em duvidar da fiabilidade dos sentidos.A esse respeito ele diz que " muitas experiências arruinaram pouco a pouco todo o crédito que eu dera aos sentidos.Pois observei muitas vezes que torres que de longe se me afiguravam redondas,de perto pareciam-me quadradas e que colossos erigidos sobre os mais altos cimos dessas torres pareciam-me pequenas estátuas quando os olhava de baixo,e, assim em uma infinidade de outras ocasiões achei erros nos juízos fundados nos sentidos exteriores". Depois estendendo essa dúvida aos sentidos internos prossegue:"aprendi outrora de algumas pessoas, que tinham os braços e as pernas cortados,que lhes parecia ainda algumas vezes,sentir dores nas partes que lhes haviam sido amputadas; isto me dava motivo de pensar que não podia estar seguro de ter dolorido algum de meus membros embora sentisse dores neles".

A seguir Descartes comenta " que apesar dos sentidos nos enganarem em relação às coisas pouco sensíveis ou muito distantes,encontramos muitas outras das quais não se pode razoavelmente duvidar embora as conheçamos por intermédio deles".Como exemplo ele cita a sua situação do momento em que se encontra sentado junto ao fogo,vestido com um chambre,tendo o papel que escreve à mão. Por ser uma situação bastante realista, ele não a coloca em dúvida mas usa o argumento dos sonhos para lançar dúvida ao seu estado de consciência, ou seja, se se encontra acordado ou dormindo.Diz ele a esse respeito: "Quantas vezes ocorreu-me sonhar,durante a noite,que estava neste lugar junto ao fogo,embora estivesse inteiramente nú dentro do meu leito.Pensando cuidadosamente nisso,lembro-me de ter sido muitas vezes enganado,quando dormia,por semelhantes ilusões.E detendo-me neste pensamento ,vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludente, nem marcas assaz certas por onde possa distinguir nitidamente a vigília do sono".Em outra palavras o que ele quer dizer é que por mais certas que sejam as informações que os sentidos possam nos fornecer,eles não nos garantem se o estado em que nos encontramos é de vigília ou de sono.Por não nos assegurar essa certeza absoluta isso,para Descartes,significa que os sentidos não são fonte de conhecimento indubitável.

Descartes ainda observa que certos elementos percebidos pelos nossos sentidos não são combináveis e nem alteráveis pela imaginação como acontece,por exemplo, quando imaginamos um ser misto como uma sereia que é metade humana e metade peixe ou como ocorre quando sonhamos que temos asas o que resulta da combinação de um ser humano com uma ave, dentre muitos outros exemplos.Aparentemente a percepção sensorial dos elementos não combináveis estaria acima de qualquer dúvida justamente por não conseguirmos pensá-los de um modo diferente daquele que eles apresentam.Seriam conhecidos por intuição. Assim se eu penso,por exemplo,no estado líquido, todas as coisas que eu puder imaginar nesse estado terão as mesmas características. Não consigo imaginar um estado líquido que me dê uma ideia diferente daquela que adquiro quando vejo a água, O metal, o sangue, etc, nesse estado porque em nossa experiencia nunca vimos outro modo de se apresentar o estado líquido. O mesmo é valido para o estado solido,gasoso e plasmico.Por isso os estados de uma determinada substância sempre serão os mesmos para nós não importa se estamos acordados ou sonhando.Descartes não nos fornece esse exemplo de conteúdo mais palpável, mas sim um da aritmética e outro da geometria.Diz ele: "Pois, quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo,dois mais três formarão o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados".Para demonstrar que até esses elementos básicos "intuitivos" de nossa experiência podem ser colocados em dúvida, Descartes agora admite o argumento do Deus enganador ou gênio maligno:"Suporei,pois,que não há um verdadeiro Deus,que é a soberana fonte da verdade,mas certo gênio maligno,não menos ardiloso enganador do que poderoso,que empregou toda a sua indústria em enganar-me.Pensarei que o céu, o ar ,as cores, as figuras,os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que se serve para surpreender minha credualidade".

No proximo passo ele procura estender ainda mais a dúvida ao considerar que o seu proprio corpo possa ser uma ilusão.Entretanto ao pensar-se como uma ilusão,que é o mesmo que colocar em dúvida a propria existência fisica,ele conclui que ainda deve ser alguma coisa caso contrario nao poderia produzir tal pensamento.Em suma é necessario que ele exista ao menos como coisa pensante.Daí a origem da celebre máxima racionalista: Cogito ergo sun,ou seja,"penso logo sou" ou,como é mais conhecida,"penso logo existo".Dito de outro modo o que ele reconhe é que não há dúvida sem que haja,previamente, um proponente da dúvida do qual não se consegue duvidar porque sempre que o colocamos em dúvida,isso nos remete a nós mesmos na condição de proponentes da dúvida.

Tendo colocado em dúvida tsnto a existência do mundo físico quanto a sua própria, ele agora admite a possibilidade de que essas idéias possam ter origem no pensamento desse ser imaterial e pensante que encontrou em si mesmo através do " cogito ergo sun".Constata, entretanto,que esse ser pensante,por ser capaz de aventar a dúvida não pode ser perfeito pois a perfeição reside naquilo que é indubitável.Sendo assim o questionamento que se segue é:De onde um ser pensante que é imperfeito,por duvidar,aprende a pensar em algo que seja perfeito e indubitável? A isso ele conclui que tais idéias teriam que ter sido colocadas nele por um ser que tivesse em si todas as perfeições que em uma palavra seria Deus. Ou seja:Deus é a causa da idéia de Deus que o homem- segundo Descartes -carrega em si.Desse modo,ele refuta para si mesmo a idéia do Deus enganador porque enganar é uma imperfeição e se Deus é perfeito,logo,não pode nos enganar.Daí inicia-se o processo de supressão da dúvida hiperbólica pois, se Deus é a causa da idéia de perfeição que encontramos em nós, ele também deve ser a causa das idéias claras e distintas "intuidas",que foram mencionadas anteriormente,como é o caso das idéias de aritmética, geometria,dos estados da matéria, do ser pensante que encontramos em nós pelo cogito e também da ideia que temos dele(Deus).Então, essas ideias por serem inatas provam a existência(material) do mundo como obra de Deus já que o ser pensante e ainda imaterial,que encontramos em nós, não as produz.Todavia aquelas idéias que podemos combinar e misturar como a idéia de sol,lua,árvore,livro,peixe,etc,são idéias adventícias que provam a existência dos sentidos e do corpo pois se temos a idéia da existência de ambos isso não pode ser uma enganação já que Deus é perfeito e não nos engana.Por fim,aquelas idéias que resultam da combinação das ideias dos sentidos como a idéia de uma sereia,centauro,hipógrifo,etc, são idéias factícias que provam a existência da imaginação e dos sonhos.Resumidamente,ao"provar" através do seu sistema racionalista a existência de Deus,Descartes também "prova" a existência do mundo e a existência corporal do ser imaterial pensante encontrado no cogito.

Entretanto,uma nova dificuldade se impõe pois se Deus é perfeito,como é que se da a imperfeição e o erro?

A resposta ele nos fornece no seguinte trecho das Meditações:"Sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimento,eu não a contenho nos mesmos limites,mas estendo-a também às coisa que não entendo;das quais sendo a vontade por si indiferente ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro.O que faz com que eu me engane e peque" Os erros,resumidamente,resultam de uma sobreposição da vontade sobre a razão na formação dos juízos. A razão é clara,segundo Descartes, quando não está obnubilada pela vontade porque é através dela que se chega ao cogito e à prova da existência de Deus.

Para refutarmos, por completo,o racionalismo cartesiano basta examinarmos detidamente o seu primeiro argumento da dúvida que é o da não fiabilidade dos sentidos sem o qual não se pode dar prosseguimento à dúvida hiperbólica ou sistemática.

Descartes não se ateve ao fato de que cada sentido nos fornece aspetos da realidade e que é da soma desses aspetos que se formam as nossas idéias da realidade quando os nossos sentidos estão em conformidade com o padrão de sensorialidade presente em nossa espécie. Não temos um conhecimento mais amplo e imediato da realidade porque não dispomos de outros sentidos -inimagináveis para nós- para captá-la,o que não exclui a possibilidade de que alguma vida extraterrestre possa tê-los. Se os tivéssemos faríamos menos questionamentos porque teríamos mais conhecimento imediato sobre as coisas.

As "ilusões" dos sentidos que ele menciona,referem-se mais ao sentido da visão e não podem ser consideradas ilusões porque uma vez que as soubéssemos com tal,essas se desfariam quando tivéssemos uma segunda experiencia e não é o que acontece. Aproveitando o exemplo fornecido por ele,podemos dizer que as torres que numa primeira experiencia, à distância, podem nos parecer redondas e de perto quadradas,numa segunda experiencia, mesmo após termos o conhecimento de que são quadradas,continuarão nos parecendo redondas quando as virmos à distância e quadradas quando as virmos de perto o que significa que não podemos explicar esse efeito como uma ilusão. Tal efeito se deve à plasticidade da imagem perante o sentido da visão. Como toda imagem é produzida pela luz,dependendo do ângulo de incidência resultante da posição do Sol em dado, momento, como também do ângulo e distância do observador e do tipo de superfície do objeto sobre o qual a luz incide, teremos imagens que apresentam maior ou menor conformidade com a forma e a consistência real do objeto. É muito comum,por exemplo,olharmos a superfície do asfalto num dia quente e nos parecer que tem água. Isso se deve ao ângulo de incidência da luz numa superfície lisa ou seja: A superfície da água é lisa e reflexiva e a superfície do asfalto também; então, dependendo do ângulo de incidência dos raios de luz no asfalto e da posição do observador,eles se comportarão do mesmo modo que se comportam ao incidirem sobre a superfície da água o que produz uma imagem semelhante.

Dependemos dos sentidos até para explicar os processos que ocorrem com os sentidos e tais explicações são resultantes dos diversos modos de ativação dos sentidos que é o que comumente denominamos de experiência.

No exemplo da torre,onde a experiência é dada a uma maior distância, a luz ativou a visão de um modo diferente do que o da experiencia dada a uma curta distância. Entretanto,apenas com base na experiencia visual não podemos deduzir qual é a verdadeira forma do objeto. Para satisfazer esse quesito, necessitamos da experiência tátil que nos dará o aspecto da materialidade do mesmo.

Identificadas pelo tato as quatro semirretas iguais que são unidas em suas extremidades para formar um objeto com quatro ângulos iguais de noventa graus,passamos a associar esta constatação tátil do objeto à imagem que vemos dele e o denominamos de quadrado. Surge assim a primeira experiência tátil e visual do que é um quadrado. Acontece que em certas circunstâncias, a idéia tátil do quadrado encontra-se dissociada da idéia imagética do quadrado como Descartes observa. É ai que os propensos à pessoalidade e ao racionalismo, ao invés de examinarem estas circunstâncias que modificam a imagem,partem para a conclusão precipitada de que,neste caso particular, o sentido da visão nos engana. Se tivessemos duas noções de quadrado sendo que em uma a quadratura constatada pelo tato estaria associada a uma imagem quadrada constatada pela visão e na outra a mesma quadratura constatada pelo tato estaria associada a uma imagem circular constatada pela visão, aí sim,poderíamos dizer que os sentidos nos enganam.

Um empirista, por outro lado,nos mostrará que toda análise de uma experiência relacionada a um determinado sentido deve ser feita com base na análise prévia de um maior número possível de outras experiências relacionadas a esse mesmo sentido. Portanto,há que se considerar que:

1- Toda experiência visual se dá na presença da luz porque na escuridão não vemos nada.

2- Algumas vezes os objetos vistos de longe parecem diferentes de quando vistos de perto.

3- Algumas vezes os objetos vistos de longe se mostram iguais quando vistos de perto.

4- Algumas vezes os objetos vistos de perto, sob todos os ângulos, quando tocados, apresentam o mesmo formato identificado por esses ângulos da visão.

5- Algumas vezes os objetos vistos de perto,mas não sob todos os ângulos,quando tocados,não apresentam o mesmo formato identificado pelos ângulos que tivemos acesso visual.

6- Na penumbra os objetos,na maioria das vezes,parecem ser diferentes de quando estão completamente expostos à luz.

7- Objetos com maior número de lados e superfície irregular tendem a ser confundidos,com maior facilidade,quando se encontram distantes.

8- Objetos que estão muito longe não são identificáveis pois há um limite na eficiência da visão.

9- Objetos que têm cores que se confundem com a paisagem tendem a ser menos distinguíveis a longa distância.

10- A visão nos fornece as características imagética dos objetos e os outros sentidos nos fornecem outras,mas não dispomos de todos os sentidos que seriam necessários para perceber todas as características do objeto e,certamente, nenhum ser vivo os possui.

Com base nessas informações sensoriais,o bom empirista irá considerar que: A- a luz é decisiva para que vejamos alguma coisa sendo que o que vemos através da luz é a imagem dos objetos. B- aumentando a incidência de luz sobre um objeto,melhor é a imagem que enxergamos e diminuindo essa incidência (como na penumbra),pior é a imagem que enxergamos.Portanto,o bom empirista entende que a imagem é um produto da luz e que a razão dessa imagem nem sempre corresponder ao objeto real se deve ao fato de que nem sempre ela é produzida com luz suficiente; de que nem sempre ela chega até nossos olhos de forma eficiente devido ao ângulo de incidência decorrente do tipo de superfície do objeto,de sua cor,do ângulo e distância do observador,etc. Isso significa que a imagem do objeto é sempre mais plástica do que o objeto em sua materialidade o que não corresponde a um engano do sentido visual. Além disso o bom empirista também considera que qualquer conclusão obtida pela experiência deve assentar-se na possibilidade de que novas experiências possam refutar essa conclusão já que nenhum ser humano é capaz de ter todas experiências possíveis à nossa espécie.

O fato de Descartes ter colocado os sentidos em dúvida criou uma imensa dificuldade para ele explicar a existência das coisas pois, se os sentidos nos enganassem não seria possível constatar essa enganação através dos mesmos a não ser que aquele que a constatasse tivesse uma existência à parte. Daí a necessidade de uma concepção dualista expressa na res extensa(corpo) e na res cogitans(alma) que é o "algo a mais" no homem de Descartes.

Refutado o argumento de que os sentidos nos enganam,torna-se supérfluo levantar o argumento de que podemos estar sonhando uma vez que os sonhos podem ser explicados como sendo provenientes dos elementos fornecidos pelos nossos sentidos o que significa que sem sensações não é possível sonhar. Os cegos de nascença,por exemplo,não sonham com imagens porque não têm a sensação visual.

O argumento do cogito que consiste em dar relevância à dúvida até constatar-se a própria existência individual como verdade indubitável, também deixa de ter importância visto que a existência ja é constatada no momento em que o sujeito se sente. Isso significa que sentir e saber-se sentindo ocorrem simultaneamente o que resulta em consciência que é existência para si. Não há um "sentir-se antes" para haver um "saber-se sentindo depois". O pensamento é uma mera tradução em linguagem de um conhecimento imediato o que significa que o sujeito existe para si no momento em que se sente e se,posteriormente,pensa ou não na sua existência para si através da linguagem imagética ou da verbal,isso não acrescenta e nem diminui em nada o seu conhecimento de sua própria existência porque ele já sabe que existe para si sentindo-se. Uma pedra,por exemplo,não se sente,portanto,não existe para si. Logo, sentir é saber-se existindo.

Talvez o argumento mais engenhoso quem Descartes usou tenha sido o da existência de Deus que,na verdade,não era seu e sim de Anselmo de Aosta que o precedeu. Chama-se argumento ontológico porque parte da idéia de que se podemos pensar em coisas como onipotência,onipresença,onisciência,eternidade, imutabilidade,absoluto,perfeição,etc,que não se encontram no mundo sensorial,então pensamos porque Deus os coloca em nós.Logo,Deus existe.

Apesar de tais idéias não existirem no mundo sensorial,não deixam de ter origem nas idéias provenientes da apreensão sensorial que são superlativadas de modo extrapolativo e desiderativo pelas operações presentes no pensamento. Entretanto,como essas operações também derivam dos processos da experiência sensorial,temos que buscar nesses processos a idéia de superlativar que está presente no pensamento.

Anselmo e Descartes não compreenderam que o pensamento,na verdade,é uma reprodução intencional dos processos imediatos. Tomando como exemplo o sentido da visão, vamos supor que estou abrindo os meus olhos pela primeira vez e que, dentro de um campo visual previamente delimitado, encontro um copo de vidro transparente e vazio e atrás dele um fundo branco. Obviamente não saberei que se tratam desses objetos porque nunca os vi antes. Contudo, no momento em que abro os olhos já se forma instantaneamente em minha mente a idéia visual desses objetos independente de sua denominação linguística e também idéias de presença, coexistência, contraste,comparação(copo e fundo branco),distinção( copo diferente de fundo branco),volume,superfície,cor,forma,quantidade,qualidade (branco e transparente), composição,distância,diversidade,relação,combinação (copo mais fundo branco),separação(copo menos fundo branco),etc. Então,quando fecho os olhos novamente tenho a ideia de ausência e de desaparecimento dos objetos que acabei de ver e quando volto a abri-los e os fecho em seguida,me vem a idéia de duração,etc. Todas essas idéias que se formam em minha mente e que ainda não tenho os termos linguísticos para denominá-las,são idéias imediatas ou espontâneas. Depois,à medida em que é ampliado o campo de minha visão,mais objetos verei o que significa que mais idéias se formarão em minha mente tais como a idéia de árvore,terra,água,cão,aranha,mesa,casa,multiplicidade ,associação,espaço(que se compara ao fundo branco) e uma série de outras idéias que seria moroso e irrelevante mencionar. Em seguida notarei que todas essas idéias ficam retidas na minha mente de tal forma que ao presenciar outras situações que envolvam os mesmos acontecimentos e objetos similares reconhece-los-ei imediatamente o que também gera em minha mente a idéia de reconhecimento e de retenção(memória). Prosseguindo,constatarei que todas essas idéias que provém dos meus sentidos e são retidas na minha memória -inclusive a idéia de como se formam as idéias- podem ser reproduzidas de modo volitivo na minha mente o que me leva à ideia de intencionalidade. Por fim,é da idéia de reprodução intencional ou volitiva das idéias retidas na memória que surge a idéia que denominamos de pensamento. Todavia,por ser a volição capaz,não somente,de reproduzir mas também de produzir no cenário da mente outras idéias com as idéias prévias provenientes dos sentidos e armazenadas na memória, essas outras idéias também são pensamento. Em suma podemos dizer que pensar é,em primeiro lugar,reproduzir intencionalmente em nossa mente as idéias imediatas provenientes dos sentidos que foram ou estão sendo retidas a todo momento em nossa memória; em segundo lugar,é produzir outras idéias com essas idéias prévias dos sentidos e nada mais.

De posse dessas informações já nos é possível entender como é que surge a idéia de superlativar de modo extrapolativo. Comecemos com a idéia de infinitude que é uma coisa que não tem começo e nem fim. Essa idéia pode resultar da idéia espontânea de se combinar outras idéias sendo uma delas de conteúdo tátil e visual que é a idéia de reproduzir intencionalmente a idéia de fragmentação, que ocorre na natureza,de uma pedra até o ponto de virar um pó muito fino e de dificil divisibilidade; e a outra uma idéia de conteúdo apenas visual que seria,por exemplo,a tentativa de ver os confins do universo. No primeiro caso a idéia espontânea de superlativação já se constitui a partir da idéia,também espontânea,presente nos numerosos processos divisórios onde constatamos que sempre que dividimos surge algo novamente para ser dividido mesmo que não consigamos dividir. A outra idéia espontânea de superlativação ja se constitui a partir da idéia,também espontânea,presente nas numerosas ampliações de estrelas,galáxias,etc,onde constatamos que sempre que ampliamos surge novamente algo a ser ampliado mesmo que não consigamos obter todas as ampliações possíveis. Então,através da combinação(que conforme já foi dito, também é uma idéia que procede dos sentidos)dessas duas idéias que reproduzem conteúdos sensoriais superlativos,passamos a produzir uma terceira idéia que é a idéia de infintude o que não significa que tal idéia seja "um algo a mais" pois jamais a produziriamos sem a constituição prévia das idéias de conteúdo sensorial que denotam constante divisão no caso da pedra e constante possibilidade de aproximação e ampliação no caso da observação do universo. No entanto,como todas as nossas idéias de conteúdo sensorial resultam na idéia de finitude,devemos considerar a idéia de infinitude apenas como uma idéia volitiva produzida na mente e que se detém na mente. Em outras palavras as idéias de pequeninez e imensidade que os sentidos nos fornecem,não produzem tal ideia de infinitude que é uma superlativação extrapolativa desiderativa. Por outro lado,não há como se constituir em nossas mentes a idéia de infinitude sem as idéias superlativas provenientes dos sentidos o que restringe a infinitude à finitude. Como acréscimo podemos dizer que: se não conseguimos constatar o começo e o fim de uma coisa,isso não significa que ela não tenha começo e fim mas que nossa capacidade de constatar esse começo e fim é limitada ou pode ser que seja limitada.

Resolvido o problema da infinitude fica fácil demonstrar que outras idéias supostamente colocadas por Deus em nossas cabeças originaram-se,na verdade,de nossa constituição sensorial. A idéia de "presença" conforme já disse anteriormente,se forma quando temos algo diante dos nossos sentidos principalmente diante do sentido da visão. É dela que deriva a idéia de onipresença que é quando vemos uma mesma coisa em vários lugares. O Sol,por exemplo,é um desses objetos que nos dá essa idéia já que pode ser visto em vários lugares ao mesmo tempo. O racionalista em sua busca obstinada pelo "algo a mais" promove através das operações do pensamento uma superlativação extrapolativa desiderativa dessa idéia de onipresença e ao mesmo tempo substitui a idéia sensorial de "Sol" pela idéia sensorial de "ser" criando assim a idéia de ser onipresente. Porém da mesma forma como acontece com a infinitude,que me referi,aqui,a idéia de um ser onipresente que está restrita à mente jamais se constituiria sem a idéia de onipresença finita que é dada pelos sentidos. O mesmo pode ser dito em relação a outras idéias produzidas na mente do racionalista como a idéia de perfeição,onisciência,absoluto,imortalidade,imutabilidade ,etc.

Havendo refutado Descartes ainda nos resta uma última questão sobre a qual devemos nos debruçar antes de dar prosseguimento ao assunto. É a seguinte: se buscamos "um algo a mais" isso não seria um indicativo de que necessitamos desse "algo a mais"?

Pois bem,essa busca pelo"algo a mais" se deve à insuficiência que cada um dos nossos cinco sentidos apresenta na captação de outros aspectos perceptíveis das coisas. Sabemos,por exemplo,graças à experiência, que o sentido visual de nossa espécie não nos proporciona a percepção de todos os aspectos de determinado objeto passíveis de serem captados visualmente por outras espécies. Se captassemos outros aspectos visuais,olfativos,gustativos,auditivos e táteis das coisas,possivelmente,diminuiria a nossa necessidade do " algo a mais". Portanto,o que se pode concluir é que a nossa capacidade de perceber,decorrente da experiência, nos adverte que não percebemos todos os aspectos das coisas passíveis de serem percebidos e que se fossem percebidos diminuiria a nossa necessidade de busca pelo "algo a mais" que simplesmente existe em razão da consciência de que outros seres vivos podem perceber outros aspectos das coisas que não percebemos normalmente e de que outros meios também podem ser usados para possibilitar essa perceção. A tecnologia ao ampliar alguns aspectos de nossa perceção,principalmente visual,também amplia o nosso conhecimento o que nos impõe novos limites e nos leva a novos desafios. Contudo,podem existir outros aspectos das coisas que para serem percebidos demandariam outros sentidos além dos que temos o que, para nós,está fora de cogitação.

Assim, se por esse "algo a mais" entendemos a incompletude que fica após a busca por resultados, novos resultados e somente resultados quando a mente, através do pensamento, se ocupa com os diversos processos da experiência então, de fato,temos uma necessidade. Por outro lado se por "algo a mais" queremos dar a entender que se trata da busca incansável por um conhecimento suprassensorial da realidade,então, estaremos apenas cavando buraco na água e fazendo o esforço inútil a que Sísifo foi condenado.

O próximo filósofo que deve ser colocado em evidência pela sua tentativa em dar um fundamento mais convincente ao racionalismo,após o inatismo de Descartes ter sido refutado pelos empiristas, é Immanuel Kant. Na verdade o propósito dele foi o de tentar unificar o racionalismo com o empirismo.

Kant teve uma formação acadêmica totalmente racionalista a qual foi parcialmente abalada em 1762 aos trinta e oito anos quando tomou conhecimento dos trabalhos do filósofo empirista David Hume que, segundo ele,teve o mérito de "despertá-lo do sono dogmático". Suas obras mais importantes são as três Críticas que começaram a ser publicadas a partir de 1781.

Apesar de ter produzido uma nova abordagem,não considero que Kant tenha sido bem sucedido em sua proposta unificadora pois,conforme já mencionei anteriormente,todos nós propendemos à pessoalidade e à objetividade mas não de forma equilibrada. Dizer que o racionalismo e o empirismo são unificáveis ou dizer que existe alguém que propenda cem por cento para a pessoalidade ou cem por cento para a objetividade é admitir uma falácia racionalista. O que pode ser dito sobre Kant é que ele nunca propendeu efetivamente para o empirismo. A leitura de Hume só serviu para ajudá-lo a se inteirar dos novos argumentos refutadores do racionalismo para,então,reformulá-lo de um modo que supostamente pudesse causar menor oposição ao empirismo.

No seu livro Critica da Razão Pura,Kant faz uma distinção entre conhecimento puro ou "a priori" e conhecimento empírico ou "a posteriori". Por conhecimento a priori,também denominado de transcendental,ele entende aquele que é dado "absolutamente independente da experiência" portanto, sem qualquer participação dos sentidos e que se refere ao nosso modo de conhecer dado pela intuição pura própria da sensibilidade ou do entendimento puro. Já o conhecimento a posteriori é aquele que se dá através dos sentidos e se divide em intuição empírica e entendimento empírico.

Por sensibilidade Kant entende as formas como conhecemos os objetos antes de qualquer sensação e que seriam o espaço e o tempo. Diz ele a esse respeito:" o espaço é uma representação a priori necessária que subjaz a todas as intuições externas. Jamais é possível fazer-se uma representação de que não haja espaço algum embora se possa muito bem pensar que não se encontre objeto algum nele". Quanto ao tempo,"nele é possível toda realidade dos fenômenos. Estes podem todos em conjunto desaparecer, mas o próprio tempo(como condição universal da sua possibilidade) não pode ser supresso". Em outra palavras o que ele quer dizer é que sem o espaço e o tempo que são nossas formas de sensibilidade,não ocorreria a experiência que é sensação. Portanto a sensibilidade(espaço-temporal) é condição inerente e não externa ao sujeito de modo que "se esse fosse suprimido,todas as relações dos objetos no espaço e no tempo e mesmo espaço e tempo desapareceriam". Assim, para Kant as coisas só podem existir para nós enquanto fenômeno e "O que há nos objetos em si(noumeno) e separados de toda essa receptividade de nossa sensibilidade permanece-nos inteiramente desconhecido". Segundo ele,pode haver outros seres que percebam as coisas não de forma espaço-temporal.

Ao estudo das estruturas da sensibilidade e ao modo como se forma o conhecimento sensível ele denominou de estética transcendental. Entretanto,a estética kantiana não se refere ao significado que usualmente é dado mas,sim,ao seu significado grego aisthesis que quer dizer sensação e percepção sensorial.

O outro tipo de conhecimento a priori refere-se ao entendimento puro ou intelectivo e faz parte da analítica transcendental de Kant. Segundo ele,pela sensibilidade os objetos nos são dados e apenas ela nos fornece intuições e pelo entendimento os objetos são pensados e dele se originam os conceitos. Intuições sem conceitos e conceitos sem intuições não produzem conhecimento.

Para Kant,a unidade da consciência reconhecida pelo sujeito através do "eu penso" é que o leva a buscar a unidade e a síntese fora de si a qual depende de conceitos puros ou categorias que justamente expressam as leis inerentes ao intelecto e ao pensamento. O número de categorias na sua visão seriam doze,divididas em quatro grupos:

No grupo da quantidade- unidade,pluralidade,totalidade.

No grupo da qualidade- realidade,negação,limitação.

No grupo da relação- substância e acidente;causa e efeito;reciprocidade.

No grupo da modalidade- possibilidade e impossibilidade;existência e inexistência;necessidade e contingência.

Só para se ter uma idéia mais clara sobre o que isso significa,tomemos a relação causa-efeito. De acordo com David Hume,só podemos estabelecer uma relação de causa e efeito quando essa relação ocorre inúmeras vezes através da experiência. Se vejo,por exemplo,fogo e depois fumaça, raio e trovão,uma única vez,isso não me leva a concluir que um irá suceder o outro da próxima vez que eu vir o fogo e a fumaça e o raio e o trovão. São necessárias inúmeras experiências com as relações citadas para se formar em minha mente a idéia de causa e efeito e a convicção futura de que quando vir um o outro se seguirá. Hume disse que essa idéia se deve ao hábito e costume e a convicção- que não deixa de ser uma previsão de que um sempre se seguirá ao outro- se deve à crença pois não ha nada na observação dessas experiências ou em qualquer outra experiência de causa-efeito que nos dê a certeza de que isso irá acontecer no futuro visto que não podemos fazer idéia do futuro em qualquer experiência porque o futuro não existe na experiência ja que esta é dada aqui e agora. Veja bem, Hume não nega a relação de causa-efeito produzida pela experiência mas nega que na análise da idéia de causa possa se descobrir a priori-(antes da experiência) o efeito.

Kant não adotou a posição dos empiristas e nem dos racionalistas em voga pois considerou a relação de causalidade como um dos modos ou categorias de funcionamento do pensamento. O que para ele significava que as carregamos em nós.

Não creio que seja necessário ir mais adiante na apresentação da filosofia kantiana para poder refutá-la. Resumidamente o idealismo transcendental,que é a denominação dada pelo próprio Kant ao seu sistema racionalista,tem como base a admissão do conhecimento a priori e a idéia de noumeno que é "a coisa em si" e que obviamente são idéias que não se coadunam com o empirismo.

Começando pelo que ele disse sobre o espaço,vemos que se trata de uma concepção bastante restrita. Para ele o espaço é o que contém e os objetos são o que está contido. Todavia,não é bem isso que a experiência nos mostra.Vejamos um exemplo:

Se eu tenho em minhas mãos um recipiente fechado,vazio e sem ar,isso significa também que eu tenho um espaço dentro desse recipiente o qual está aparentemente vazio. No entanto,o espaço dentro do recipiente está contido pelas paredes do mesmo e esse,por sua vez,está no espaço de um cômodo de uma casa sendo que tal espaço está contido pelas paredes desse cômodo e assim sucessivamente. Isso demonstra claramente que nossas idéias empíricas de espaço o caracterizam não apenas como contedor mas também como contido. Pensemos agora no espaço sideral que é a noção superlativa de espaço que a sensação ou sentido visual nos fornece. Vamos imaginar que tudo o que esse espaço contém seja removido. Será que dessa forma teremos uma ideia visual do que é um espaço vazio? Evidentemente a resposta é não porque ainda resta o negro que é alguma coisa perante o sentido da visão por ser sensação visual. Além disso, devido à ideia adquirida pelas vastas experiências de um espaço contedor e contido, cogitamos a possibilidade de que o espaço sideral possa estar contido em alguma outra coisa que desconhecemos o que não é uma superlativação extrapolativa desiderativa pois fundamenta-se na experiência.

Outro exemplo que demonstra que o conhecimento do espaço advém da experiência é aquele referente às pessoas que nunca enxergaram e que depois de muitos anos,em decorrência de alguma cirurgia,passaram a enxergar. Essas pessoas quando vêem pela primeira vez não têm noções de distância,profundidade, tamanho,etc que são noções espaciais e precisam aprender a tê-las. Aliás, é valido acrescentar que mesmo a noção de espaço de uma criança normal é diferente daquela que se adquire na idade adulta após inúmeras experiências. Por fim o que podemos dizer é que todo conhecimento e experiência iniciam-se com a sensação aqui entendida como o conjunto daquilo que é captado por todos os nossos sentidos como a sensação visual,a sensação tátil,olfativa,gustativa e auditiva. Então, quando temos sensação espacial já estamos tendo experiência.

No que concerne ao tempo, ao que tudo indica ,o entendimento de Kant tal qual o entendimento de Hume, baseava-se na concepção normativa que o divide em três momentos que sao o passado,o presente e o futuro e não numa concepção meramente empírica onde constatamos que a idéia de tempo é resultante das sensações genéricas de mudança,de repetição,de repetição na mudança e de mudança na repetição.

Hume não percebeu que quando concebemos a possibilidade,supostamente futurista de algum efeito decorrente de alguma causa,isso se deve ao fato de ter predominando em nós a sensação temporal de repetição em detrimento da sensação temporal de mudança. Portanto,o costume se deve à sensação de repetição mas a crença ferrenha na repetição denota uma compreensão incompleta da experiência temporal porque exclui a sensação de mudança que também é inerente à experiência.

Kant devido ao seu viés racionalista tentou separar o tempo da experiência e distanciou-se muito mais da compreensão de que a idéia geral de tempo resulta da sensação de mudança e de repetição. Como toda sensação ja é experiência,ao ter as sensações mensionadas significa que estamos tento experiência. Outra coisa que Kant não percebeu é que a própria idéia do "a priori" que se contrapõe ao "a posteriori",propostos por ele, só é possível após a experiência porque é através dela que adquirimos idéias de contraposição que é o mesmo que contradição, oposição,etc. Vemos ,por exemplo,o fogo que é contrário à água,o calor ao frio,o dia à noite,o claro ao escuro,o elevado ao profundo,a vida à morte,o duro ao mole e milhares de outros exemplos que,posteriormente,determinam o modo como iremos produzir nossas próprias ideias. Colocado de outra maneira podemos dizer que pensamos em contrários porque a experiência que molda nosso modo de pensar contêm contrários. E antes que algum racionalista atribua erroneamente a percepção dos contrários à presença de dois hemisférios em nosso cérebro e não à experiência, é bom lembrar que pessoas que fizeram hemisferectomia(remoção de um hemisfério do cérebro) são capazes de captá-los.Isso significa que independente de nossa percepção,as coisas são distintas umas das outras. Porém,até determinado ponto,temos a conformação necessária para captar essas distinções.

Apesar de possuirmos uma capacidade de pensar em contraposições e contradições que vão além das contraposições e contradições dadas na experiência,isso nao se constitui em evidência para sustentar que algo se da "a priori". Infelismente os racionalistas nao percebem que esses pensamentos são possíveis porque adquirimos das experiências idéias de superlativação e de extrapolação e que a nossa volição simplesmente as combina em nossas mentes produzindo assim ideias superlativas extrapolativas desiderativas. A própria idéia de combinar que é o mesmo que juntar,somar,misturar,etc,advém da experiência. Verificamos,por exemplo,a combinação de substâncias naturais como o sal com a água;também as que existem na composição das rochas, dos sabores, cheiros,cores,etc. Quanto à nossa capacidade de produzir novas contraposições,contradições e recombinações das idéias imediatas que recebemos dos sentidos na forma de sensação,ela é devida à consciência intencional ou volitiva que se manifesta de forma mais acentuada em nossa espécie do que em outras que talvez a tenham.

Kant também da muita ênfase ao adjetivo "puro" principalmente em sua Crítica da Razão Pura,com o intuito de estabelecer que se trata de um estado anterior à experiência. Só para se ter uma idéia do uso excessivo desse termo vejamos alguns exemplos além do que consta no título da obra: síntese pura,modo puro,conceitos puros,entendimento puro,intuição pura,matemática pura,sensibilidade pura,apercepção pura,conhecimento puro,pensamento puro,uso puro e possivelmente outros. O que ele,certamente,não entendeu é que essa idéia de pureza só se torna possível após a experiência. Vejamos um exemplo: Quando bebemos leite,água,suco de laranja,de uva,de limão,dentre outros, percebemos através de nossa experiência gustativa que se trata somente de leite,somente de água,somente de suco de laranja,etc. Então,sentimos a necessidade de um termo linguístico para designar essa unidade das sensação procedente da experiência gustativa. Esse termo,dada a convenção, é o "puro". Assim,se bebemos somente leite,água,suco de laranja,etc,isso significa que bebemos leite puro,água pura e suco de laranja puro. Portanto,a idéia do que é puro ou daquilo que,a princípio,é identificado de modo uniforme pelos sentidos,não nos remete a nada,supostamente,transcendental porque provém da experiência.

Falemos agora da "coisa em si" ou noumeno. Segundo Kant não sabemos o que as coisas são em si pois as conhecemos enquanto fenômeno. Explicado de uma maneira mais simples,para Kant isso quer dizer que qualquer objeto só pode ser percebido pelos sentidos como fenômeno e não como eles realmente são em sua essência. O primeiro problema que recai sobre esta conclusão é que ela não explica como é que podemos saber que há "um em si" quando só conhecemos as coisas como fenômeno. Na verdade Kant,como todo filósofo racionalista,era um apaixonado pelo seu "nous" por isso não percebeu que sua idéia de "em si" vem das próprias coisas que ele tratou como fenômeno. "Em si" remete à idéia de unidade que predominantemente é dada pela sensação visual quando afastamos os objetos de nossos olhos. Porém,quando os aproximamos e até os ampliamos através do microscópio ou do telescópio,surge a idéia de multiplicidade. Em suma,isso significa que perante os nossos sentidos todo objeto,considerado isoladamente,é sensação que produz tanto a idéia de unidade quanto a idéia de multiplicidade. Consequentemente,falar em "coisa em si" à maneira kantiana é o mesmo que separar a parte da experiência que nos dá a idéia dos objetos como unidade em detrimento da parte que nos dá a idéia dos mesmos como multiplicidade para depois atribuir absolutez à primeira o que é algo que não se coaduna com a experiência tratando-se apenas de superlativação extrapolativa desiderativa. Para um melhor entendimento sobre a idéia de unidade e de multiplicidade de um objeto,basta assistir na Internet os vídeos disponíveis sobre os fractais de Mandelbrot.

Dito isso,a conclusão mais acertada que podemos chegar sobre o pensamento kantiano é a de que não passa de uma versão mais aprimorada do cartesianismo e,naturalmente, uma nova variação dos paralogismos que ele tanto quis combater.

Os racionalistas sejam de direita ou de esquerda,não entendem que apesar da capacidade de pensar ser uma característica inerente à nossa espécie, as operações presentes no pensamento não o são ja que resultam de processos empíricos captados pelos nossos sentidos. Operações aritméticas como a soma,subtração,multiplicação e divisão,são na verdade idéias sensoriais regimentais gerais que subjazem em todas as ideias sensoriais específicas e que em razão de sua constante presença,moldam nosso modo de pensar.

Para os menos versados no assunto darei alguns exemplos que facilitarão a compreensão. Antes de mais nada temos que considerar que a sensação de dualidade é inerente tanto ao nosso organismo(sensação interna) quanto à exterioridade que presenciamos(sensação externa). Assim,as primeiras sensações de dualidade que temos, como um todo,provêm da organoconsciência. A sensação de estômago vazio e a sensação de estômago cheio,por exemplo,são opostas e nos dão as idéias que,posteriormente através da linguagem, passamos a denominar de fome e de saciedade. Acontece que para haver a transição do primeiro estado para o segundo é necessário adicionar alguma coisa,que nesse caso é o alimento e para passar do segundo estado para o primeiro é necessário subtrair alguma coisa,que nesse caso são os dejetos que eliminamos. Depois,observamos também que quando sentimos frio e queremos passar para um estado de ausência de frio,temos que colocar(que é o mesmo que adicionar) alguma coisa sobre nossos corpos e quando sentimos calor e queremos passar para um estado de ausência de calor,temos que retirar( que é o mesmo que subtrair) aquilo que colocamos para aquecer os nossos corpos ou para manter o calor. Externamente verificamos que quando o dia alterna para o estágio noturno,é porque o Sol se põe(subtrai-se da paisagem) e que quando a noite alterna para o estágio diário,é porque o Sol surge(soma-se à paisagem) e assim muitos outros exemplos.

Ora, como todas essas sensações apesar de provirem de sentidos diferentes produzem idéias que apresentam conteúdos análogos,surge em nós a necessidade de definir de forma genérica esses conteúdos,daí os termos adição e subtração que são universalmente empregados. O mesmo acontece com os termos divisão e multiplicação que são usados respectivamente para designar coisas que ,por exemplo,se rompem em vários pedaços ou que aumentam em número como acontece na reprodução.

Essas operações estão presentes na composição de outra idéias sensoriais como a comparação,a inversão,a representação,a interpretação,a síntese,a análise,etc.

Começando com a comparação,podemos dizer que é algo que se dá,primeiramente,em razão de nossa capacidade de distinguir que é o mesmo que separar ou subtrair uma coisa de outra. Em seguida,quando se trata da sensação visual,ao movimentamos os olhos sobre determinado objeto ou de um objeto para o outro,verificamos igualdades e desigualdades(diferenças). Se a soma das igualdades for maior do que a soma das diferenças, isso significa que o objeto guarda mais semelhanças entre suas partes ou,então,com aquele que está sendo comparado. Portanto,comparar é uma operação do pensamento derivada de nossas sensações e que envolve tanto a subtração quanto a adição. Acontece o mesmo com a inversão ou alternância. Verificamos milhares de vezes a sucessão entre o dia e a noite ou entre a noite e o dia. Isso significa que ao se subtrair o dia soma-se a noite e vice-versa. Já a representação é uma forma subjetiva de reproduzir o mais objetivamente possível as idéias sensoriais e por isso envolve as quatro operações mencionadas; e a interpretação apesar de envolver as quatro operações é uma forma subjetiva pessoalista de reproduzir as idéias sensoriais ou de produzir outras idéias. A síntese é uma idéia sensorial procedente das idéias sensoriais subjacentes de soma e de multiplicação e a análise é uma idéia sensorial procedente das idéias sensoriais subjacentes de subtração e de divisão. Em resumo,todas as palavras que criamos têm origem em idéias produzidas pelos nossos sentidos e em todas essas idéias subjaz um processo que molda nosso modo de pensar e que na matemática é expresso,de forma aproximada, através das quatro operações aritméticas. Dito de outra maneira isso quer dizer que essas quatro operações subjazem no nosso modo de pensar porque estão presentes em toda experiência sensorial.

Supondo que tenha ficado clara a falaciloquência do racionalismo,o que importa agora é demonstra suas consequências.

Descartes,em sua filosofia, colocou os sentidos em dúvida para estabelecer a certeza sobre a existência de Deus que,então,passa a ser o parâmetro racionalista de embasamento de nossas ações e de nossa conduta. Kant,por outro lado,refutou as provas racionalistas da existência de Deus o que foi uma atitude meritória e empirista. Porém,relativizou os nosso sentidos com sua conceituação fenomênica racionalista da realidade. Em outras palavras,ele suprimiu tanto o parâmetro racionalista de embasamento de nossas ações e conduta quanto o parâmetro empirista. Daí a necessidade do dever alto imposto como critério moral onde o certo e o errado não são mais definidos segundo os ditâmes dos fatos,que é um critério empírico,mas como princípios absolutos que o sujeito deve seguir de forma inflexível. O homem moral de Kant é um homem mutilado,lobotomizado. A consequência disso é dada no mundo pós kantiano em duas vertentes: Por um lado esse homem lobotomizado ou meio homem leva o dever até suas últimas consequências e é o que deu origem às ideologias e aos regimes sanguinários e totalitários. Por outro lado,o meio homem vendo-se incapaz de seguir à risca o dever devido à sua frágil fundamentação no desejo e na vontade,diferente do dever para o religioso que é fundamentado na esperança e do dever para o empirista que é fundamentado na necessidade,torna-se,tal qual Kant,um virtuoso dissimulado mais conhecido como hipócrita. A esse respeito vale a pena destacar um trecho do livro Justiça de Michael J.Sandel no capítulo em que fala sobre o referido filósofo:

" Alguns anos antes de debater suas idéias com Benjamim Constant,Kant teve problemas com o rei Frederico Guilherme segundo. O rei e seus censores consideraram que a opinião de Kant sobre religião depreciava o cristianismo e pediram que ele se comprometesse a não mais fazer pronunciamentos sobre o assunto. Kant respondeu com uma declaração cuidadosamente elaborada: "Como súdito fiel de Vossa Majestade,renunciarei a quaisquer palestras públicas ou comentários escritos sobre religião futuramente".

Kant sabia,ao fazer essa declaração, que o rei provavelmente não viveria muitos anos. Quando o soberano morreu,alguns anos depois,Kant considerou-se livre da promessa,já que a havia feito apenas "como súdito fiel de Vossa Majestade". Mais tarde explicou que havia escolhido aquelas palavras "com muito cuidado,para não me sentir privado de minha liberdade (...)para sempre,mas apenas enquanto Sua Majestade vivesse".

Como vemos nem o próprio Kant foi capaz de seguir à risca a sua frágil filosofia moral baseada em imperativos categóricos.Na verdade sua promessa foi feita ao rei numa linguagem capciosa, porque havia a intenção de enganá-lo com o intuito de preservar,o máximo possível,os seus próprios interesses. Evidentemente,aos olhos do empirista isso não seria nenhum problema pois a enganação,nesse caso,teria o proposito de manter a propria liberdade de expressão e desde que nao causasse nenhum prejuizo à propriedade corporal ou à propriedade extensível(privada) de ninguém,não consideraria motivo de condenação. O problema é que Kant acreditava em imperativos categóricos e na não contradição o que significa que não devemos enganar ninguém em nenhuma circunstância. Entretanto,na situação descrita ele se contradiz o que implica em auto-refutação.

Outra consequência nociva do fenomenalismo kantiano no mundo moderno foi a de aumentar a importância dos estados psicológicos ou mentais sobre os atos e fatos o que resultou no niilismo e também na crença de que gênero e espécie dependem de escolhas pessoais e não de determinações naturais.No sistema legislativo isso trouxe um acréscimo absurdo no número de leis supérfluas e lenientes. No âmbito científico as interpretações ou teorias pessoalistas de renomados indivíduos,passaram a ser institucionalizadas negando-se,no entanto,o acesso das massas aos experimentos que as originaram. Com isso,a ciência transformou-se em crença e nova religião onde os analogistas(teorizadores) são os novos sacerdotes.

Para encerrar minhas elucubrações nada mais apropriado do que a estória de Dédalo e Ícaro que são outros personagens da mitologia grega.

Pois bem, Dédalo foi condenado ao exílio em Creta junto com seu filho Ícaro. Estando lá,a mando do rei Minos,construiu um labirinto para alojar o Minotauro que era uma criatura híbrida metade homem e metade touro,fruto da relação de Pasifae esposa de Minos com o touro de Poseidon,que o próprio Dédalo ajudou a consumar ao usar sua engenhosidade para construir uma vaca de madeira coberta com couro sob a qual Pasifae se introduziu.

O Minotauro se alimentava de seres humanos e Ariadine filha de Minos se apaixonou por Teseu,filho do rei de Atenas,que seria colocado no labirinto para se tornar uma das vítimas. Ariadine então procurou Dédalo para ajuda-la a salvar Teseu.Esse deu-lhe um novelo de lã que Teseu deveria desenrolar quando entrasse no labirinto e,caso matasse o Minotauro,poderia seguir o fio para achar o caminho de volta. Teseu consegue matar o Minotauro mas Minos descobre que Dédalo o ajudou e o coloca no labirinto com seu filho Ícaro. Apesar de ter construído o labirinto,Dédalo desconhecia a saída devido à grande complexidade do projeto.Então, observando as penas dos pássaros caídas no corredor do labirinto,tem a idéia de construir asas para saírem de lá. De sua túnica tirou os fios de linho para juntar as penas e depois as colou com cera. Antes de partirem, Dédalo recomendou a Ícaro que o seguisse e que não voasse muito próximo do mar para que as asas não se tornassem úmidas e pesadas e nem tão alto pois o Sol derreteria a cera. Ícaro embriagado pela sensação de liberdade voou cada vez mais alto o que resultou no esperado derretimento da cera,no desmantelamento da asa e numa queda vertiginosa em direção à morte.

Os gregos,é importante deixar claro,tiveram o mérito de retratar através de suas narrativas mitológicas,os homens como realmente são, ou seja,seres movidos por necessidades e interesses e sem idéias inatas sobre o que é virtude ou vício. Seus deuses não são entidades idealisticas impassíveis desprovidas de qualquer traço de humanidade pois, apesar de possuírem maior poder do que nós é um poder usado para satisfazer seus apetites humanos. Não há desfechos com o propósito de dar uma lição de moral do tipo "fez a coisa certa e foi bem sucedido ou fez a coisa errada e fracassou". Há,é verdade,uma secessão de atos e conseqüências mas nem sempre boas para quem fez o bem e nem sempre más para que fez o mal. O objetivo maior é o de retratar tanto a pessoalidade quanto a objetividade presentes na subjetividade dos personagens ao longo de inúmeras situações.

Dédalo deixou-se levar pela inveja que era uma característica marcante de sua pessoalidade ao matar o seu sobrinho Perdix que adquiriu notoriedade junto ao povo ateniense após ter inventado a serra e a roda de oleiro. Por isso é que foi condenado ao exílio. Por outro lado,foi a maior tendência de Dédalo à objetividade que o transformou num grande inventor. Os conselhos que ele deu a Ícaro,sobre como efetuar o vôo ,denotam aprendizagem pela observação que é experiência visual. Ícaro,ao contrário ainda era jovem,inexperiente,destemido e arrogante o que condizia com a tendência à pessoalidade de sua idade. Então,desobedeceu o seu pai e elevou-se a uma altitude que acabou ocasionando o derretimento das asas e sua morte. Como vemos,inexperiência e pessoalidade se contrapõem à experiência e à objetividade.

Uma outra interpretação que pode ser dada a esse episódio particular do vôo é aquele em que a descida e a aproximação com o mar simbolizaria a propensão ao racionalismo de direita onde "as asas se tornam úmidas e pesadas" levando à queda. Cair no mar de uma baixa altitude não levaria Ícaro,necessariamente,à morte se soubesse nadar mas dificultaria o seu deslocamento pois quem já nadou sabe muito bem que na água a mobilidade fica mais difícil do que no ar e na terra. A relação como racionalismo de direita pode ser claramente estabelecida ja que a tendência à imobilidade,quando estamos na água,se assemelha à tendência à imobilidade causada pela dogmatização presente nas idéias pessoalistas dos racionalistas de direita. Já a elevação e aproximação com o Sol simbolizaria a propensão ao racionalismo de esquerda onde tudo é relativizado à medida em que se busca o "algo a mais" nas alturas. Dédalo previdente e experiente simbolizaria o empirista que não se deixa seduzir por uma coisa e nem por outra até alcançar terra firme que pode muito bem ser associada ao fato,à objetividade e à materialidade que é o que, verdadeiramente, importa.

 

Bibliografia:

1- Discurso do Método e Meditações - Descartes- (Os pensadores)- Edutora Abril S.A. Cultural-1983.

2-Criticao da Razão Pura- Immanuel Kant -Editora Nova Cultura-2006.

3- Justiça -O que é fazer a coisa certa - Michael J. Sandel- Editora Civilização Brasileira-2017.