Quem tem ouvido

Quem tem ouvido para ouvir, que ouça! Essa frase de Jesus não é só uma frase de efeito. É uma frase que reflete uma realidade: Existem pessoas que não são capazes de ouvir, apesar de nãos serem surdas. Têm ouvidos, mas não ouvem.

Pode até parecer exagero, mas existem surdos que ouvem melhor do que alguns com ouvidos perfeitos, mas incapazes de ouvir.

Mas, então, o que Jesus estaria querendo dizer com essa advertência?

Evidentemente não temos como saber com exatidão, mas podemos imaginar. Trata-se de uma advertência de Jesus, como aparece no Evangelho segundo Mateus. Mas também é uma referência a Isaías, lá no Antigo Testamento. E tem um eco no Apocalipse. No evangelho a frase aparece no contexto das parábolas de Jesus; em Isaías aparece quando Isaías é “convocado”. Lá no apocalipse o contexto é o da advertência às Igrejas... E sempre com a mesma indicação: a necessidade de se ouvir uma mensagem e entender o que ela representa.

Mas quais as implicações do “ter ouvidos”? Em possuir a capacidade de ouvir. É neste ponto que se esconde o nó da questão. Ter ouvidos deveria ser uma condição para ouvir. Mas nem sempre é isso que ocorre, pois existe muita gente que não ouve e, pior ainda, não desenvolveu a capacidade de entender. Por isso a necessidade da advertência: “quem tem ouvidos, ouça!”

Tem gente que até recebe a mensagem, mas não se interessa em entendê-la. Tem outros que se consideram ou se colocam acima da mensagem e, portanto, acreditam que a mensagem não lhes diz respeito. E tem aqueles que se comportam como se nem tivessem recebido a mensagem e, por isso, se fazem de desaviados... parecem surdos, mas apenas ignoram o que diz aquele poderia se um interlocutor.

Talvez referindo-se a essa situação é que alguém criou aquela imagem com três personagens fazendo gestos significativos de descompromisso. O primeiro deles usa as mãos para tapar os ouvidos; o segundo tampa os olhos e o terceiro tampa a boca, como a dizer: não quero ouvir, não quero ver, não quero falar. Na verdade, a imagem expressa a afirmação de quem diz: não quero me comprometer.

Piores ouvintes são aqueles que, além de não ouvir o que lhes é dito, especializaram-se em perceber, anotar, indicar e falar dos defeitos dos outros. São aquelas pessoas que, por se consideraram acima dos outros, vêm defeito em tudo e em todos. Não concordam com nada do que se lhes apresenta e sempre têm um defeito a apontar. Por se considerarem sempre com razão, não dão razão a ninguém.

O fato de alguém se portar com a firme atitude de não querer ouvir pode indicar a postura de quem só quer falar. E isso indica duas falhas:

A primeira: por não se posicionar como quem quer ouvir, indica que essa pessoa não aprendeu a aprender. Saber ouvir é a primeira condição para que haja aprendizado. Podemos dizer, sem medo de errar, que só sabe aprender quem aprendeu a ouvir. Um dos primeiros caminhos do aprendizado é aquele da audição. Não ouvindo o que é ensinado, a lição se perde...

A segunda: o querer só falar – sem ouvir – mata o diálogo. Quem só sabe falar, sem a capacidade de ouvir, não só se nega a aprender como, também, nega o outro. O principio do diálogo, da comunicação, da interação, do aprendizado... está na relação com o outro. Não existe possibilidade de aprendizado sem que o aprendente ouça as lições de quem ensina.

E aqui vale lembrar as lições de Paulo Freire: ninguém ensina ninguém. Ninguém aprende sozinho. As pessoas aprendem na relação, no processo. E, para isso é necessário ouvir... e fazer-se atento às lições que vem do outro.

Neri de Paula Carneiro

mestre em educação, filósofo, teólogo, histriador.

Rolim de Moura - RO