Num sábado preguiçoso, vi o filme “Coração de tinta”, baseado no livro homônimo que conta a fantástica história de um leitor que tinha poderes mágicos, sendo capaz de fazer as personagens saírem dos livros e viverem entre os mortais ou estes entrarem nos livros ao lerem em voz alta.  E foi assim que um malabarista saiu do livro e passou a viver perambulando pelas ruas com seu bichinho de estimação, lembrando sempre da mulher que ficou no livro e nunca mais encontrou. Ao mesmo tempo escapou do livro o perigoso bandido Capricórnio e seu bando que sequestraram a mulher do leitor. O pobre homem passa anos ao lado da filha procurando outro exemplar do livro para tentar localizar a mulher. Enquanto isso, é perseguido pelo malabarista que quer voltar ao livro e precisa que alguém o leia. Ele tem medo de ler o livro, pois não sabe o que pode acontecer.

Que história maluca! Fui para a cama pensando na possibilidade de entrar na história de algum livro. Pensei em vários do Machado de Assis, do Jorge Amado, do Milton Hatoum, Ernest Hemingway, Sommerset Maughan entre outros. Mas acabei por escolher o “Grande Sertão Veredas” do Guimarães Rosa, um livro relido há pouco tempo e que ainda está circulando preguiçoso pelos labirintos de minha memória.

E fiquei matutando como não seria fantástico entrar nas maravilhosas aventuras do jagunço Riobaldo e seu (ou sua) companheiro Reinaldo (Diadorim), pelos sertões das Gerais, cavalgando noite e dia, confrontando o tinhoso Hermógenes ao lado de Joca Ramiro.  Acabei dormindo e sonhando que estava no bando  de Riobaldo, conhecido como Tatarana ou Urutu branco. Cavalgamos emparelhados à sombra dos buritis, proseando, contando causos. E foi aí que ele me confidenciou sua paixão pelo Diadorim. Ele acreditava que o seu companheiro era homem, apesar de ser um rapaz bem apessoado, louro de olhos azuis como céu. Foi aí que me lembrei de que nos sonhos temos poderes mágicos, podendo fazer qualquer coisa que quisermos. Então me ofereci para transformá-lo numa mulher de verdade, pois não estando na história poderia contar o final do livro em que ele iria descobrir que o fruto de sua paixão era mesmo uma moça.

Mas ele não quis saber do final da história temendo que ele pudesse morrer ou mesmo o Diadorim. Queria mesmo viver a história até o final,  assim sua vida e a de seu companheiro estavam por conta do Guimarães Rosa. Ele poderia resolver a história do jeito que mais gostasse. Portanto, não queria se intrometer conhecendo o final. Ao lhe contar que a história já estava escrita e ele não poderia mais mexer no final, pois o escritor já havia morrido, Riobaldo entrou numa profunda tristeza, mas não quis saber o final da história. Chegou até a pensar em sair do livro com a minha ajuda, mas teria que ser junto com o Diadorim, que jamais concordaria em sair das páginas literárias, pois como filho de Joca Ramiro, tinha a missão de vingar a morte do pai. Saindo do livro, iria se perder pela vida e nunca mais encontraria o Hermógenes.

Contei-lhe que os tempos das lutas de jagunços pelas Gerais já havia acabado há muitos e muitos anos, os sertões estavam cortados por estradas asfaltadas com carros circulando por todos os lados. Polícia não faltava, os jagunços eram figuras do passado e não voltariam mais. Você terá de viver trabalhando em fazendas como peão, em fábricas ou no comércio. Como consolo poderia contar suas histórias nos serões, narrando as suas violentas aventuras pelas Gerais.

Riobaldo ficou ensimesmado, pitando seu cigarro de palha e observando o horizonte repleto de buritis. De repente esporou o cavalo e saiu em disparada gritando: “Jagunço não morre de véspera e vamos caçar a praga do Hermógenes” e sumiu no mundo. Acordei tentando gritar para que ele me esperasse para continuarmos a conversa. Mas como o dia já estava clareando, tive ainda a impressão de ter ouvido o barulho de patas de cavalo marchando pela minha rua.  Será que o Riobaldo veio atrás de mim?