Que as sementes fortes resistam e garantam novas semeaduras.

            Essa expressão tem feito eco no universo daqueles que plantam, que semeiam, que alimentam a vida por meio do trabalho de cuidar do outro. O recorte de uma fábula muito antiga traz uma reflexão sobre a semente, sua função, seus desafios e apoio de que dependem para melhor desempenhar o seu papal núcleo da vida, símbolo da renovação, promessa de vida e perpetuação das espécies.

            Em uma primavera de um ano qualquer, um trabalhador rural, habituado no seu mister de prover o sustento de sua ampla família, sulcou o solo, à mão, e foi semeando as sementes de que dispunha, sempre cuidando para que nenhuma ficasse à vista, no solo, correndo o risco de ser devorada por aves, levada pelo vento, perdida em si mesma, correndo o risco de não cumprir o seu primordial papel no processo natural da reprodução das espécies. Ele nem percebeu, mas três delas perceberam: caíram no mesmo sulco, sendo “obrigadas” a terem o mesmo destino, vivenciarem as mesmas experiencias, enfrentando as mesmas dificuldades, correndo os mesmos riscos, submetendo-se aos mesmos limites, percorrendo os mesmos caminhos, buscando, cada uma alcançar a maturidade. A primeira semente, a mais esperta, constatando a realidade a que estavam todas expostas, falou para as companheiras:

        - Será divertido, sentir e ver crescer nossas raízes firmes e fortes capazes de nos manter de pé, até alcançarmos os pontos mais altos, nos defendendo de ventos, tempestades, raios, secas e inundações. Seremos árvores respeitadas, belas, resistentes e produtivas que só daremos ao mundo, orgulho, sombras, flores, frutos e agasalho para tantos quantos se acercarem de nós. Somos saudáveis e tudo que forneceremos será do agrado e regalo de todos. Principalmente, se formos bem cuidadas regadas, podadas, olhadas e sobretudo, protegidas por aqueles a quem cabe a responsabilidade pela nossa segurança e bem estar. Assim, concluía aquela semente de boa lavra, de qualidade e coração puro, por nunca sido privada dos seus direitos de ser semente e continuar sendo da melhor espécie, já que a vida sempre lhe sorriu.

            A segunda semente, por seu turno, pensativa, começou a refletir sobre todas as questões postas pela companheira e, se sentiu no dever de contra-argumentar sobre alguns aspectos que lhe pareciam mais que oportunos. Já que a elas não restavam muitas opções, seria oportuno que se estabelecessem condições, análises, diálogos, mas sobretudo, compreensão dos pontos que compunham o caminho que deveria ser seguido pelas três. Para chegarem ao seu destino com o fiel desempenho de suas funções no processo natural e criação e evolução ou involução natural da vida, era ideal assumir posturas e definirem ações e limites. Ela estava preocupada:

             - E se a terra ficar muito fria, muito quente, muito dura, muito seca, muito molhada, e se nossas raízes forem finas, frágeis, grossas demais, finas demais, e se não existirem, e se não sobrevivermos, e se não crescermos, e se, ao alcançarmos o solo aberto e formos pisoteadas, arrancada, queimada pelo calor do sol, levada pelo vento, não regada pela omissão do homem e... diante de tantos “E SE?”, não temos razoes para estarmos felizes. Pelo contrário: sinto-me hesitante, insegura, frágil, prejudicada, infeliz. Vale a pena ser semente para ficar à mercê de tantas dúvidas, desafios e problemas? Não sei se foi uma boa termos caído todas juntas. Alguém deverá assumir a responsabilidade pelo nosso destino e desempenho. Que vida! concluía a segunda semente.

    A terceira semente, no entanto, não estava intimidada. Mas não estava confortável. De repente, ela se viu entre as duas que, por razoes adversas às suas vontades, viam a vida de semente por ângulos diferentes. Diferentes porque entenderam a vida a partir do seu próprio olhar, ou porque assim foram concebidas, criadas, desenvolvidas, em ambientes não saudáveis para uma boa formação de semente, em climas desfavoráveis ao desenvolvimento natural. Por onde passaram os devidos cuidados para que todas elas pudessem ver a vida como ela é e, que caminhos precisavam ser seguidos com segurança para todos?

            Prestigiar a primeira, pelo seu otimismo e confiança no futuro, seria motivador mas não deveriam ser ignorados os riscos que qualquer semente corre do início ao fim dos seus propósitos, dos seus compromissos, das suas propostas. Teria a vida sorrido mais eu suficiente para aquela primeira semente? Não seria ela despreparada para enfrentar desafios, porque na sua criação até ali, tudo teria sido muito fácil, tudo à mão, nada lhe faltara e dessa forma, ela não estaria apta a desvencilhar-se de quaisquer situações adversas? Ela saberia dar valor às mínimas coisas porque conhecia o valor de cada uma, de cada atitude, de cada gesto, de cada falta, de cada sobra? Não seria o caso de ela revê a máxima:  “nada falta a alguns quando nada basta a outrem”? Não seria o caso de convidar essa bem sucedida semente a refletir sobre a vida, sobre os limites do caminho e sobre o que se reserva a qualquer semente, enquanto promessa de vida.

            Não sei se devo me pronunciar sem julgar a primeira semente, nem de motivar a segunda. Essa sim, me parece assustada, frustrada, insegura, mas não posso julgá-la pois não sei de suas experiencias, que problemas ela enfrentou para formar esse complexo universo de medos. E quem sou eu? Interrogou-se a terceira semente. Não pedi para estar aqui, continua a reflexiva semente, não contribuí para estar diante dessas duas visões de mundo das sementes que dividem comigo o mesmo espaço. Respiraremos do mesmo ar, beberemos da mesma água, estaremos sujeitas às mesmas situações climáticas e sociais, teremos que prestar contas ao mundo, teremos que cumprir o nosso papel. E, independente da nossa escola de vida, da nossa escolha de vida, somos sementes e daí?

            Se censuro a primeira por sentir-se senhora de si, posso ser mal interpretada e, criarei um conflito que poderá se desdobrar em grandes desafios. Se levarmos e conta que ela pensa assim porque nunca lhe faltou nada, corro o risco de perder qualquer argumento porque ela dirá que não pode ser penalizada por ter tido tudo fácil, sem nenhum esforço. A natureza lhe fora favorável, simples assim. Se eu partir para o aconselhamento de que ela e todas as outras deveriam pensar que nem todos tiveram a mesma sorte de ser agraciados pelo bem, ela vai contra-argumentar que isso não é um problema seu....

            Se eu buscar refúgio para entrar na discussão com a segunda semente, a sugestão seria acalmá-la quanto aos seus dissabores, desencantos e o velado pessimismo com resultado das oportunidades que vivera, u que não as tivera. Estava desencantada, era pessimismo o sentimento mais presente em seu modo de ver a vida. Na verdade, ela pensava que tudo que lhe era devido, era igualmente natural no universo de qualquer semente que se preze. E, elas eram, teoricamente, todas iguais em estrutura, em dimensões, importância ou papel. Mas não é bem assim. Semente forte é aquela que sabe tudo. Semente sadia é aquela que é semente. Afinal, todas não são sementes? Nesse devaneio como forma de fugir do impasse em que se encontrava, a nossa terceira semente silenciou, relaxou, adormeceu e teve sonhos confusos. Por que a vida de semente é tão dura? A quem caberia encontrar soluções para que seus caminhos seguissem em frente? Quem as limitaria evitando que as mesmas tivessem que agir por si mesmas, mesmo sem terem tido as orientações necessárias para o melhor desempenho de suas funções? Quando ela acordou, estavam as três, em um avançado estágio de germinação que não deixava margem para conversas, diálogos, entendimentos ou até mesmo para saber como cada uma estava se sentindo...

            Analisando o recorte sobre as três sementes, deixemo-las naquele estágio e, saltemos para o plano humano, fazendo a seguinte analogia: As três sementes são três crianças postas em um ambiente novo, adverso às experiencias, onde precisem conviver, independentemente de suas origens, formação, equilíbrio, capacidade, dificuldades, limitações ou objetivos. A primeira teve todas as oportunidades para ser produto de um meio seguro, salutar e aconchegante, cercada por cuidados que, sem castrá-la, limitava-a mostrando os caminhos os desafios e as possibilidades de enfrentamento e superação. A segunda, resultante de outros valores que não aqueles que, sem máscaras garantem um bom seguir, um bom fazer, um bom aprender, um bom ser, sente-se fragilizada, confusa, insegura, incapaz de se impor para obter respostas seguras e completas. Não tem culpa de não haver recebido tais benefícios, mas traz em si, o peso do não ter aprendido a ser, porque o ambiente de sua formação era pautado em propósitos de aparência, de pouca visibilidade da realidade da vida que cada um deve assumir.

        A terceira criança, como a semente, dividida entre dois extremos: de um lado, a criança que teve todas as oportunidades, aprendeu a lidar com as facilidades mas não se preparou para dar valor a tudo o que se obtém, lutando por si mesma Teve tudo enquanto teve todos; sozinha, saberá dar continuidade aos seus próprios projetos? Do outro, aquela a quem a vida lhe negou tudo. Como agir pelas duas e por si mesma? Trazia ela, na sua bagagem, conhecimento das duas realidades? Uma, bem orientada; a outra nem tanto... e ela: dividida. Ajudar, criticar, ignorar, convidá-las para, juntas se fortalecerem em um amplo projeto de estudo e análise da realidade que precisa ser enfrentada?

            Para fechar um complexo emaranhado de expectativas, some-se às dificuldades das três crianças, as habilidades ou inabilidades dos seus pais, de meios e orientações diferentes; as dificuldades da escola em lidar com crianças de boa índole, como boa era a lavra das sementes. Dificuldade essa fundamentada no papel que a primeira escola que é a família, deixou de executar bem, podendo vir a comprometer a capacidade da segunda família que é a escola em cumprir o seu papel de escolarizar na sistematização de conhecimentos. Semente boa, bem plantada, bem cuidado produzirá bons frutos, com certeza! Criança bem nascida, bem criada, orientada com limites e respeito, sendo protagonista do seu tempo e dos seus atos, perpetuará a espécie humana, em benefício de todas as outras.

  • Sebastiao Maciel Costa