Data: 30.04.99, horário: 16:15 horas, “Sinal de Carvalho”:

Estava na “sala de reuniões” da Delegacia-Geral e recebi um telefonema do Gabinete do Secretário de Segurança Pública fazendo a minha convocação para estar na próxima segunda-feira para uma audiência às 14:30 horas com o Titular da Pasta. Fui informado de que participariam também do encontro o Delegado-Geral – Evaldo Moretto e o Diretor de Inteligência da Polícia Civil Delegado Optemar Rodrigues.

Apesar de não ter sido informado do que se tratava pude imaginar que o prato cheio deveria ser promoções e fiquei preocupado a respeito de uma possível convocação para presidir a comissão de promoções dos Delegados.

Senti que passaria o final daquela semana na expectativa, chegando a pensar numa prévia conversa com Moreto ou até mesmo Optemar para preparar o meu “sim” ou o meu “não”. O meu chamamento implicaria certamente em alguma responsabilidade. Aliás, já tinha percebido no encontro anterior que todas as vezes que fui chamado por Carvalho era porque estava sendo incumbido de alguma tarefa e nesse encontro não seria diferente.

Lembrei que a próxima deveria ser intensa pois na terça-feira tinha o jantar do grupo com a presença de Braga, nosso mais novo integrante. Contudo fui tomado naquele instante por um mar de incertezas. Lembrei da vinda do Delegado Natal para a Capital na terça-feira último, tendo me encontrado com ele no Largo da Alfândega – ao lado do Mercado Público – junto ao centro de Florianópolis, isso por volta de 18:00 horas, quando pude dar as boas vindas e informar que a reunião de quinta-feira havia sido cancelada. Para mim foi até melhor assim, isso porque ninguém sabia que eu tinha formulado um convite especial, uma surpresa, mas que eu teria que arcar com o bônus e o ônus.

Todos já tinham aprovado no último encontro do grupo, ou seja, que o Delegado Braga seria convidado para nosso encontro programado para a  primeira terça-feira de abril, à exceção de Krieger que não pode comparecer (mas que também concordou em participar). E Garcez, nosso bom, Garcez que  estava bastante indeciso, cheio de rodeios e “noves fora”, conforme já tinha conversão com ele via telefone, talvez teríamos que lhe estender o tapete vermelho, sei lá, definitivamente lidar com Garcez não era muito fácil, pois dizia que tinha resistências a nomes dentro do nosso grupo, pois e agora? Nessa onda de resistências a nomes, procurei até omitir a decisão do grupo de ter convidado Braga (certamente viriam mais resistências) e muito menos acerca do Delegado Natal de Chapecó. Lembrei de outra palavra chave: “tolerância”, não a”zero”, mas outra...

Também estava programado para aquela terça-feira de manhã a reunião do Conselho Superior da Polícia Civil, havia sido convocado na qualidade de suplente, realmente, não estava gostando nada de tantas responsabilidades e vinculação àquela gestão, já que fomos rifados, mas eram os ossos do ofício e o jeito era deixar vir.

Data: 03.05.99, horário: 14:30 horas, “Carvalhismo”:

Cheguei pontualmente ao Gabinete de Carvalho no horário. Ao me aproximar do elevador para acessar o quinto andar dei de cara com Vânio Bosle, acompanhado de mais alguns, aquele comentarista político que fazia  comentários ao meio-dia na Rede Record. Vânio falava com desenvoltura, era fã do “Xerife Alcione”, ’como já o denominavam e pude ligeiramente fitá-lo nos olhos, percebendo uma certa magnitude, aquele ar de quem estava entretido em animadas conversas.

Ao penetrar no quinto andar,já na sala ao lado onde ficava a Chefia de Gabinete avistei Moretto e Mário Martins conversando. Fazia sentido, porque os estudos encomendados pela Adpesc via Delegado Thomé tinham a aprovação da nossa entidade e do próprio Secretário. Sem dúvida, o prato do dia deveria ser mesmo promoções. Em seguida apareceram os Delegados Rachadel e Optemar.

Pude sentir naquele momento que vicejava uma receptividade além do normal com relação a minha presença, como se havia trazido bons fluídos, tranquilidade, segurança e me animei interiormente, como quem era bem vindo. Certamente que os dois tinham uma vibração idêntica, o equilíbrio e o cavalherismo, em que pese o jogo de cintura, a excessiva contemporização e, em alguns casos, até o pragmatismo que conduzia à manutenção do “status quo”.

Mário Martins passou a questionar sobre minha posição acerca da suspensão das promoções de 1996, 1997 e 1998. Argumentei o que já havia expendido na reunião do Conselho, ou seja, era inteiramente favorável, inclusive, acrescentando que as promoções que seriam realizadas no próximo 10 de maio de 1999 também já deveriam ser suspensas porque estariam  comprometidas. E Mário Martins, acreditando que mais fazendo o papel de advogado do diabo (isso porque ele próprio havia encaminhado as propostas de Ricardo Thomé) perguntou sobre o direito adquirido daqueles que deixaram de ser promovidos, especialmente, dos Delegados de Polícia que se aposentaram confiando nessa condição? Respondi que quanto às promoções no serviço público todos deveriam saber que não se trata de direito adquirido e sim de “expectativa de direito”.

Cid Goulart – Consultor Jurídico estava presente e puxava, inclusive, questionou sobre a nossa aposentadoria, sempre me chamando de Fernando Genovez, meu primo poderoso e rico lá de Tubarão (logo imaginei que ele deveria ter atuado naquela cidade como Promotor de Justiça):

“(...)

  • Sim é verdade que vocês ficaram de fora das mudanças na aposentadoria? (Cid)
  • Sim, a própria Emenda Constitucional n. 20, quando estabeleceu nova redação ao art. 201, da Constituição Federal excepcionou aqueles que desenvolvem atividades sujeitas a risco... (Felipe)
  • Mas tem uma Portaria, parece que é do Ministério da Justiça... (Cid)
  • Do Ministério da Previdência... (Felipe)
  • Isso...!

(...)

E Cid me perguntou quanto tempo ainda falta para que eu me aposentasse, dando a impressão pelo seu semblante  um misto de ar de deslumbramento, satisfação e de quem gostaria muito de embarcar nessa de aposentadoria especial (depois descobri que Cid tinha sido Delegado de Polícia juntamente com o Promotor Grazziotin...). Cid deixou transparecer ser uma pessoa muito educada e gentil, de berço, chegando a lembrar um comportamento medieval do período mais baixo, quase que um “Lancelotiano”, com seu fidalguismo galante, apesar de um pouco disperso quanto à percepção do ambiente.e ao desenvolvimento de ideias (um indício material dessa observação veio da troca de nomes de pessoas, quando por exemplo me chamava de Fernando e era o “Felipe”..., percebia nitidamente uma certa “esclerose” ou uma fixação... Nisso fomos surpreendidos com a presença do Secretário Carvalho seguido de seu pupilo Delegado Paulo Koerich. Ao entrarem na sala onde estávamos aguardando passaram aos cumprimentos formais e o convite para nos dirigirmos ao seu gabinete.

Sentei entre Rachadel e Optemar, na ponta da mesa, já Mário Martins sentou na frente do Secretário Carvalho, Moretto e Cid. Antes de começar a reunião tocou o telefone de Carvalho e logo soubemos que se tratava de tiscoski, Secretário de Transportes, logo pensei no Julio Teixeira, seu Adjunto.

Antes disso, Carvalho já havia distribuído para os presentes cópia do material da Adpesc, era o estudo sobre o encaminhamento a ser dado às promoções e fui lendo o material do qual já tinha algum conhecimento.

Enquanto isso, Carvalho advertiu sua secretária que não era para passar ligação alguma, mas como se tratava de Tiscoski iria atender e ouvi seus lamentos pelas preocupações, que teria um compromisso no Palácio por volta de dezesseis e trinta, parecia que para participar da recepção do Embaixador dos Estados Unidos e ouvi, ainda o Secretário desabafar:

  • Já tomei neosaldina para aliviar a minha dor de cabeça...!

Logo que escutei o nome da “Dona Neusa”, uma velha conhecida, lembrei da Delegada Lúcia Stefanovich, quando estava à frente da Superintendência da Policia Civil, no final da década de oitenta, quando submetida à altas  tensões, me disse que chegava a ingerir duas drágeas desse analgésico poderoso e viciante, á  base de dipirona sódica e cafeína anidra. Agora ouvia Carvalho desabafar que já tinha ingerido uma “baga” daquelas... pude observar sinais de advertência quanto a sua saúde e passei a perceber seu estilo gelado, engessado, rosto pálido e mumificado... Sim, como estava bem próximo, pude sentir sua palidez, seu esforço para manter uma certa pose altiva forçada, um estilo que denotava segurança e que procurava externar controle da situação, de quem estaria num patamar mais acima, contrastando com Moretto sempre com aquela feição de preocupação, fadiga, Rachadel no estilo durão e “Xerifão” de filmes americanos; o “manezinho Optemar da ilha” meio que perdido; Mário Martins sem uma definição mais marcante, porém, presente e expectante, um excelente equilibrismo e, também, pude constatar que enquanto durava aquele telefonema Carvalho havia engordado, o que poderia ser uma outra dor de cabeça:

(...)

  • Senhores, eu quero sair hoje daqui com uma definição sobre essa questão das promoções da Polícia Civil!

(...)

Convocado a externar minha posição, procurei reiterar minha posição sobre o encaminhamento que se deveria dar ao processo de promoções, concordando em parte com as propostas da Adepsc. Percebi que havia um impasse entre o Titular da Pasta e o Delegado-Geral sobre quem deveria assinar a Portaria suspendendo os processos de promoção. Carvalho já tinha levantado essa questão na reunião do Conselho e parecia que cada qual fugia dessa missão como o diabo fogia da cruz. A preocupação aparente era com possíveis mandados de segurança e comecei a refletir um pouco mais sobre as consequências desse conflito:  

(...)

  • Senhores, eu entendo que se o doutor Moreto aqui assinar essa Portaria,  se alguém entrar com mandado de segurança vai cair na Vara da Fazenda  e se entrarem vários mandados, todos vão cair lá, com o Volnei Carlin. E nós temos chance de conversar mais facilmente com o juiz para que não seja concedida a liminar, eu tenho condições de resolver por telefone isso, agora se eu assinar, a competência passa para o Tribunal de Justiça e lá são vários desembargadores e nós não poderemos ter controle da situação, basta um desembargador dar a liminar que está tudo emperrado, então por isso que eu acho que o doutor Moretto deveria assinar a portaria, mas não tem problema algum eu assinar... (Carvalho)

(...)

E Moretto dava a impressão que queria rebater os argumentos do Secretário Carvalho, mas optou em ouvir os outros falarem. Estava claro pelos movimentos de seu corpo na cadeira, pela sua face, seus gestos, seu olhar que denotam claramente que estava atento a tudo e que queria afastar aquela batata quente de suas mãos, mas não sabia como fazer, a não ser que...:

  • Mas Secretário, eu não vejo nenhum problema no senhor... (Moretto)
  • Eu não vejo nenhum problema se tiver que assinar a portaria, mas então vamos ouvir o jurista... (Carvalho)

(...)

“Na Raia”:

Sim, o jurista a quem Carvalho se referia era justamente eu que fiquei numa saia justa, se soubesse do que se tratava aquela reunião teria me preparado antecipadamente... (interiormente preferia um ambiente sem aqueles excessos de formalismos...), senti que o foco estava totalmente direcionado para minha manifestação, a quem parecia competir quase que funcionar como não só um parecerista, mas um árbitro na celeuma entre os dois “grandes”. E pude verificar mais uma vez a habilidade de “Carvalho” não querendo entrar em choque e buscar uma outra consulta, buscava ainda um caminho alternativo e entendi por quê Moreto teria me consultado previamente na “sala de reuniões” da Delegacia-Geral sobre esse assunto. Moreto já me conhecia e tinha certeza que defenderia minha posição sem querer agradar ninguém:

  • Olha Secretário o meu entendimento é que ambos podem assinar a portaria, tanto um como o outro, o Delegado-Geral porque é ele quem deflagra todo o processo e o senhor por um princípio de hierarquia, quem pode o mais... (Felipe)
  • Sim, claro que existe a hierarquia, evidente que eu posso assinar pelo princípio da hierarquia, mas eu entendo que o doutor Moretto é quem deva assinar a portaria porque como já disse antes... (Carvalho)

E novamente vejo Moretto se mexer na cadeira, dando a impressão que estava se m. para dar um “pulo do gato”, talvez argumentar alguma coisa, porém, não deveria fazê-lo naquele momento, e prevaleceu o seu instinto, ou seja, se recolheu e eu retomei a palavra:

  • Bom Secretário, eu fui chamado aqui para ser ouvido, então gostaria de dar minha opinião sobre o seu questionamento... (Felipe)

E pude observar um certo suspense no ar, especialmente, por parte de Carvalho que aguardava com certa ansiedade minhas palavras, ficou imóvel  como se em fração de segundos tivesse sido congelado:

  • Sinceramente Secretário, devido a realidade das promoções, eu acho que é o senhor que deveria assinar essa portaria, isso considerando a complexidade da matéria, a repercussão que poderá ter, além do que isso decorreu de omissão da sua antecessora, trata de provimento de cargos...

E sinto um certo alívio por parte de “Moretto” que chegou a relaxar no encosto da cadeira, olhando de solascio para o lado enquanto Carvalho arrematava:

  • Eu volto a dizer que acho que o doutor Moretto é quem deveria assinar essa portaria, mas não vejo nenhum problema em assinar.
  • Olha Secretário e depois tem uma coisa, se alguém entrar com algum mandado de segurança no Tribunal de Justiça como o senhor disse, se conseguir uma liminar ficará muito fácil, simplesmente a administração estancaria todo o processo e aguardaria uma decisão de mérito, como já ocorreu no passado, assim tudo estaria resolvido, seguiríamos os ditames da Justiça com segurança... (Felipe)

(...)

Já quase no encerramento, Carvalho pediu para que Cid Goulart e eu fizéssemos uma proposta sobre “portarias”. Mário Martins insistiu para que eu colaborasse. Concordei, porém, fiz questão de mencionar que os “considerandos” propostos pelo Delegado Thomé fossem utilizados apenas como fundamento doutrinário, pois naquelas circunstâncias era necessário algo mais factível, como se fazer referência a relatórios das comissões de promoções, documentos assinados pelos Delegados-Gerais, deliberações ão do Conselho Superior, no que todos concordaram. E coube ao Delegado  Optemar ficar com o encargo de levantar as informações sobre os processos de promoções dos últimos anos.

  • Genovez, me passa aqui o que tu queres que eu já vou anotando... (Optemar)
  • Optermar, depois eu converso contigo, tá bom?
  • Ah, sim!

E todos instantaneamente se levantaram, enquanto que o Secretário denotando um certo amargor, contrariedade, decepção ou preocupação, antes de minha saída fez questão de observar:

  • A minha preocupação é com os atrasados dos policiais, me preocupa eles ficarem tanto tempo sem promoção... (Carvalho)
  • Mas Secretário o senhor sabe que uma decisão de mérito em mandado de segurança pode não ser tão demorada assim... (Felipe)

E fui saindo de fininho, pensando nessa minha última observação, pois claro que não tardaria tanto assim se ele também fizesse contatos com a Presidência do Tribunal de Justiça, mesmo porque se o Secretário tem tantas amizades assim e além do “status” do cargo certamente que se pedisse  celeridade na tramitação de uma decisão de mérito... Pensei no efeito da “Dona 'Neusa'” e me preocupei com a saúde de Carvalho, sua cefaleia nervosa, tudo isso poderia comprometer significativamente sua capacidade cognitiva.

E próximo ao elevador ainda encontrei o Secretário Carvalho de saída conversando com um Oficial da PM, passei por trás pensando em não ser notado, preferi as escadas, procurando o caminho mais rápido. Ao deixar o prédio fiquei pensando no estado de tensão do Secretário Carvalho, do mexe e remexe do Delegado-Geral Moretto durante a reunião, todos sob estado de tensão por uma questão que se apresentava tão banal quanto a forma (quem deveria assinar o ato...), mas complexa no que dizia respeito ao conteúdo e seus reflexos... enquanto eu, o jurista, de volta para o meu refúgio: "a sala de reuniões"!