Data: 23.04.99:  

Logo pela manhã na “sala de reuniões” da Delegacia-Geral fui ler os Diários Oficiais dos meses de janeiro/99 e uma das coisas que mais me chamou a atenção foram os últimos atos da gestão anterior, referentes  a Delegados de Polícia, grande parte em total afronta à legislação em vigor. Várias portarias de nomeação, lotação, remoção, designação lançadas para tão somente atender interesses pessoais.. e para não melindrar colegas “beneficiados” e “apadrinhados”, resolvi não nominá-los, mas estavam lá para quem quiser conferir.

“Pau que nasce torto”:

E não pude deixar de lembrar um dos últimos contatos que tive com a Delegada Isabel Bez Batti, quando ela vaticinou sobre a possibilidade de ter quer ir para o interior e assumir a comarca para qual foi promovida:

“(...)

- Felipe eu só espero que a lei seja para todos e não só para alguns, eu só aceito a minha remoção para o interior se a coisa for para todos...!”.

(...)”.

E eu não pude deixar de concordar na íntegra com Isabel, só que caberia ao Titular da Pasta deflagrar esse processo,  aliás, já deveria ter sido acionado muito bem antes, logo que a legislação começou a vigorar. No entanto, passaram os governos, cada qual se curvando às ingerências políticas, aos pedidos de nossos Delegados por meio de políticos, politiqueiros, restava saber se o “homem do bigode”, Secretário Carvalho, também fiscal da Lei, iria  mudar esse estado de coisas? Pelo início, tudo levava crer que não, simplesmente baseado no princípio de que o que nasce errado..., mas havia uma ponta de esperança depois da minha conversa com Moretto sobre a questão do cumprimento da legislação das entrâncias.

“Damásius, Bodões e Outros”:

E baseado na máxima da Delegada Isabel Bez Batti, fiquei contente por Damásio, colega de Faculdade de Direito e também Delegado de Polícia. Foi um dos beneficiados, conseguiu a sua remoção no apagar das luzes de Porto União para Laguna. Menos pior, muito embora não tivesse havido concurso de remoção horizontal, ambas comarcas eram de mesma graduação, compatíveis com a sua entrância (Portaria n. 0070/GAB/GEARH/SSP, DOE 16.099, de 03.02.99, pág. 9).

E não pude deixar de lembrar do Delegado Alcino Silva, pobre Alcino, corroído pelo tempo, não teve forças para reverter seu destino e, também, não tinha conchavos e nem rabo preso de ninguém,  acabou servindo de “bodão” e estatística.

Data: 26.04.99, horário: 10:30 horas, “A Chave?”

Tinha acabado de conversar com Jorge Xavier por telefone, a reunião do grupo para a terça-feira estava para ser transferida. Braga tinha sido convidado pelo para participar dos nossos encontros, mas justamente nesse dia teria compromisso, era o aniversário de sua filha. Coincidentemente, na outra terça-feira anterior também não pôde ir porque era o aniversário de sua mulher. Também, tinha convidado o Delegado Natal para participar do nosso encontro, estaria durante esta semana em Florianópolis para participar do encontro do grupo. Considerando os compromissos de Braga, a nossa pretensão era transferir o nosso encontro para quarta ou quinta-feira, só que Jorge Xavier havia mudado o rumo das coisas:

  • Alô!
  • Alô. Jorge é o Felipe.
  • Fala Felipe!
  • Tudo bem?.
  • Tudo bem!

Jorge Xavier estava com uma tosse que lembrava os tempos que estava no comando da Delegacia-Geral, quando ficava debilitado de tal forma aparecia uma tosse aguda e seca, às vezes intermitente, às vezes incessante e sua resistência ficava baixa, além disso, envolveu-se emocionalmente tanto com as coisas que o corpo começou a falar... E o pior, é que mesmo passado alguns anos, agora essa tosse de vez em quando aparecia e isso poderia ser um mal presságio, alguma coisa ruim, tipo uma “bomba relógio”... E ele começou a tossir no telefone, lembrava minha mãe quando estava nas últimas com aquele tumor consumindo seu pulmão..., ele queria falar e a voz saia esquisita e tinha que se conter,  tossir... até passar:

  • Tudo bem agora, esta semana está uma loucura, estou envolvido com pagamentos lá no restaurante do Geraldo, tenho uma audiência e tenho que me preparar, é a última semana para apresentar a declaração de imposto de rendas e ainda não fiz, estou com os problemas com a família e se não bastasse  tudo isso tem um cara lá rondando a casa do “Cesinha”,  já estive na polícia, tenho que ir para lá à noite, sabe como é, tenho que dar uma de policial, ele tem criança pequena, além disso esta semana o “Cesinha” tem aquele concurso federal para fazer, então imaginas!

(...)

Senti que Jorge Xavier queria descartar a reunião do grupo naquela semana:

  • Pois é Jorge temos a reunião de terça.
  • Ah sim, mas vamos ter que mudar, esta semana não tem condições.
  • Sim... tudo bem, mas é que o Braga não poderia ir na terça e eu pensei em propor a mudança de data.
  • Bom, tu que sabes.
  • Não Felipe, esta semana não dá, vamos deixar para a semana que vem.
  • Certo, mas deixamos em aberto?
  • Não. Já fica marcada a data, tem que conversar com  o pessoal, tu poderias fazer o favor de conversar com o pessoal e avisar, tem  que avisar o Cláudio, o Kriguer não foi a última.
  • Deixa que eu aviso.
  • Tu avisas o pessoal?
  • Sim, pode ficar tranquilo, terça-feira da outra semana, no mesmo horário.
  • Alguma novidade?
  • Depende.
  • Parece que o Secretário de Segurança vai acumular mesmo a Justiça?
  • Não sei, estou meio por fora, que eu sei parece que o PSDB está reivindicando a Pasta.
  • Ah, é?
  • O Celestino Secco é que andou dizendo que o Carvalho acumularia as duas Pastas.
  • Eu te falei lá da audiência com o Amin?
  • Não.
  • Despacharam o meu pedido de audiência para que eu fosse atendido pelo Amaro.
  • É?
  • Ai não dá!
  • Bom Jorge eu acho que a coisa já está toda acertada, em termos de cargos e projetos, o governo já está definido, não há mais lugar para nós e o jeito é a gente trabalhar noutra direção, montando aquele escritório aqui no cento, reunindo pessoas, defendendo ideias, tu sabes que a coisa funciona assim, o que resolveria uma audiência com o Amin nestas circunstâncias?
  • Eu queria que ele pedisse desculpas para nós.
  • O quê? Jorge em política a coisa não funciona assim, enquanto eram candidatos e tinham interesses em nós era uma coisa, agora é bem outra,  hoje eles falam inglês e nós estamos ainda falando alemão, não vamos nos entender, certo?
  • Dissesse tudo, a palavra certa é interesse.
  • Pois é, eu demorei muito tempo para entender isso, e hoje vejo que em política é assim mesmo, somos descartáveis agora, se estão falando inglês nós temos que falar essa mesma língua também e de que forma? Com  liderança, inteligência, ideias, pessoas aliadas, é isso que vai pesar, nada vai adiantar o isolamento, a divisão, vai?
  • Tens razão! É isso aí mesmo!
  • Pois isso é que nós temos que trabalhar nos nossos encontros, é a chave.

 (...)”.

Horário: 10:40 horas, “É César ou É Krieger?”

Imediatamente telefonei para a residência de Garcez que tinha faltado o nosso último encontro, apesar das suas duvidosos promessas, contudo, soube que não estava em casa.

Em seguida liguei para Krieger:

  • Alo!
  • É o Cesar?
  • Sim. Quem é?
  • É o Cesar Krieger?
  • Sim.
  • Aqui é o Felipe.
  • Fala Felipe, e daí tudo bem amigo?
  • Pois é, não fosses o nosso último encontro, o que foi?
  • Eu tive reunião lá na faculdade e não deu, não deu!
  • A gente já sabia, fique tranquilo. E como estão as coisas contigo?
  • Está indo, já vistes como é que é!
  • Sim, mas tu tá lá no Gabinete com o Secretário?
  • Não sei  se tu soubeste? Quiseram me mandar para Canasvieiras.
  • Pois é, para a Academia, não foi?
  • Não. O Secretário quis me deixar próximo da Academia por causa desse negócio de Mercosul, mas não lá, sim na Sétima Delegacia, já pensou?
  • O quê? É verdade mesmo?
  • Sim, eu não quero mais nada com este governo, estava pensando, há uns tempos atrás o Delegado-Geral era o mesmo, o Diretor da Academia da Polícia Civil continua o mesmo, não mudou nada, então Felipe que governo é este?

(...)

Parei para pensar e logo veio a imagem do Delegado Natal que estava muito chateado..., especialmente, com o “Homem do Bigode” porque o pessoal do PMDB continuava nos cargos...

  • Sim, mas é lamentável,  justamente contigo fizeram isso?
  • É, estou muito decepcionado e tu onde andas?
  • Eu estou no lugar de sempre, na Delegacia-Geral, de vez enquanto faço um parecer para o Delegado-Geral, para o Secretário. 
  • Estais como assessor jurídico então?
  • Não!
  • Mas então como é que está a tua situação?
  • É aquilo que eu já tinha te dito, só aceitaria alguma coisa se o pessoal concordasse, lembra? Trabalhamos em propostas e não iria abrir mão delas só porque me ofereceriam um cargo, mesmo se não fosse Delegado Especial não aceitaria.
  • Sim!
  • Mas segundo consta o Asessor Jurídico continua sendo o Braga, eu faço uma assessoria especial, até jurídica também, mas estou trabalhando naqueles meus livros, agora estou terminando um sobre história e estou me dedicando integralmente ao Estatuto Anotado que quero ver se publico uma nova edição, só que falta apoio.
  • Ah, sim.
  • Só o Estatuto já consome todo o meu tempo.
  • Eu sei.
  • Mas eu estou te telefonando para informar que o nosso encontro de amanhã não vai ser mais possível, então vai ficar para a terça-feira da semana que vem, esperamos  contar com a tua presença, o Braga também irá participar.
  • Puxa, que bom!
  • O pessoal pediu para que ele fosse convidado, mas gostaríamos que tu vá  também no nosso próximo encontro, a luta continua, vamos em busca do  tempo  perdido.
  • O quê?
  • É isso aí, a luta continua, vamos em busca do tempo perdido, parafraseando “Proust”.
  • Ah, sim!
  • Então vamos nos encontrar, esse é o caminho!
  • Estarei lá!
  • Certo. Um abraço.
  • Outro.

Parecia que tínhamos o Cesar Krieger de volta  e que viesse melhor. e que o poder não fosse para nós um fim obstinado, mas um meio, para tanto, deveríamos pensar como um bloco em formação que continua sendo rumo certo para se atingir um grau de amadurecimento e credibilidade institucional, especialmente, onde se possa respirar liberdade, autoconhecimento e crescimento espiritual.

Horário; 11:05 horas, “A face do poder: Entre tupiniquins e raposas”:

Ao descer as escadas, encontrei na portaria da Delegacia-Geral o Delegado Celio Nogueira Pinheiro:

  • Ôôô, doutor Felipe!
  • E daí Celinho, por onde andas?
  • Estou em Mafra.
  • Mafra?
  • Sim, faz tempo.
  • E no que eu posso te ajudar?

Celinho meio surpreso passou as mãos na cabeça:

  • Qualquer hora eu vou pedir uns pareceres jurídicos, certo!
  • Ah, sim, pode deixar amigo.

E permaneci a fitá-lo e em frações de segundos lembrei do Celinho de antigamente, da nossa época da Academia no início do ano de 1977, quando juntos fizemos o curso de formação na Acadepol Dos anos seguintes,   daquele Celinho, seu estilo humilde, simples, cristalino e sincero de ser. Depois, veio o Doutor Celio, após várias tentativas e reprovações nos concursos para Delegado, justamente foi reprovado inúmeras vezes nas provas orais, mas parece que ele não se entregou. Porém, algo aconteceu no último certame, especialmente naquele em que obteve êxito, pois adotou uma nova postura, de simplório passou a um quê de altivez, de cristalino passou a ser mais enigmático no novo cargo, da sinceridade passou para o plano do cometimento nas palavras e gestos, enfim, parecia adotar uma dialética que envolvia mais estética e um quê de status. E nisso, fui tomado de súbito, pois abriu-se a porta do elevador e apareceu Maurício Eskudlark, Diretor de Polícia do Interior e Doutor Celinho, ou melhor, Celinho que se esforçava para ser o outro e que estava ainda postado à minha frente,  num salto ágil e rápido,  convergiu em direção do “chegante”, seus olhos passaram a ter um brilho diferente, ao invés do olhar calmo e sereno como antes transparecia, mudou de face e se transformou, um sorriso perdido e direcionado no espaço, gestos desarticulados tomado pelo súbito, a voz embargada, músculos retesados e volviam o corpo feito borracha fresca numa única direção, seus olhos encontram enfim o grande “Diretor” que de longe percebia aqueles movimentos o que fazia transparecer um brilho misto de satisfação, superioridade e domínio territorial. Pensei comigo: “Pobre Celinho, um verdadeiro sobrevivente no sentido literal da palavra!” Apesar de tudo conseguiu vencer!!!

  • Doutor Maurício!!!

Celinho permaneceu do lado de dentro do balcão da recepção, sendo cumprimentado pelo Diretor já do outro lado. Imediatamente me posicionei na sua frente e recebi os cumprimentos, sem saber por quê, coisas do Maurício que sempre me respeitou, acho que conhecia muito bem a minha história dentro a instituição, ou talvez pela manifestação do Secretário Carvalho na reunião do Conselho e pelas minhas manifestações...

  • Bom pessoal, já estava de saída, vocês me dão licença!

De saída, imaginei que Celinho tão ofuscado nem havia ouvido o que falei,  estava entorpecido com a presença de seu Diretor e da minha pela acolhida inicial.

Caminhando em direção ao terminal de ônibus a imagem de “Celinho” não me saia da lembrança, um estilo mais para “tupiniquim”, indo ao encontro do seu senhor e do outro lado alguém bastante traquejado, experiente, preparado....  Porém, enquanto uns vão ele já deu a volta em todo o quarteirão.

No caminho, não deixei de pensar também quantos policiais tupiniquins nós tínhamos na Polícia, tão limitados em seus mundos e nos seus horizontes, e também pensei nas “raposas” que cuidam dos seus rebanhos, que alimentam espíritos de ingenuidade em seus habitat, fazem-nos correr atrás de sonhos e utopias voláteis e que nos conduziam a pensar como “são pequenas as nossas conquistas!”.