Data: 28.09.98, horário: 23:00 horas, “Requiém”:

Inicialmente telefonei para a residência de Garcez em Biguaçu e soube por meio de sua esposa que ele estava escalado naquela noite para trabalhar na Central de Plantão Policial – CPP que funcionava no Bairro Trindade – Capital. Liguei para lá em seguida veio a resposta:

  • Alô, Delegado Garcez, boa noite.
  • Fala Delegado Garcez! (Felipe)

Em seguida deu para visualizar virtualmente aquele sorriso característico:

  • Como é que está o plantão aí? (Felipe)
  • Por enquanto está tranquilo.
  • Mas eu não disse, isso aí é moleza e depois tu vens dizer que estais cansado.
  • Não. Por enquanto está bom, mas depois começa o movimento, o telefone começa a tocar e não pára!
  • Sim mas até que horas que tu trabalhas?
  • Eu pego às dezoito horas e largo às oito da manhã do dia seguinte.
  • Tá aí, eu não te disse que isso é uma moleza?
  • Ah é,  tu porque nunca tiraste plantão.
  • Não, Garcez, eu já tirei muitos plantões na Polícia Civil.
  • Quando?
  • No passado.
  • Só se quando tu eras Comissário?
  • Sim, e então?
  • Ah, bom,  é mais não é fácil, eu estava lendo aqui um livro sobre estelionato, dá de tudo.
  • Eu sei, é clínica geral, e o que achaste da festa?
  • Estava boa, mas tu achas que tinha umas trezentas pessoas lá?
  • Não Garcez, no máximo umas cento e cinquenta a duzentas pessoas, o pessoal se perdeu na carreata, a coisa foi muito mal organizada, mas no final deu quase tudo certo..
  • Sim, eu também achei que estava boa.
  • O Wanderley manipulou a festa do jeito dele e nós ficamos fazendo papel...
  • É mesmo?
  • Mas serviu de lição, deixamos uma porta aberta e não soube aproveitar a oportunidade, foi para a gente se unir, mas e aí como é que está o pessoal?
  • Tu falas politicamente?
  • Sim.
  • Eu não sei, não tenho falado com o pessoal. Ah, mas eu conversei aqui com as duas Escrivães, elas não gostam de ti?
  • Quem são?
  • Uma é a esposa do G., a  H., tu conheces?
  • Claro Garcez, mas então e daí?
  • Eu falei da lei complementar cinquenta e cinco, que foi tu fizeste e que os Escrivães passaram para nível superior e ela disse que isso nada adiantou porque o que adiantava passar e  continuar a perceber salários de nível médio, disse também que tu foste responsável por aquela junção de todas as gratificações em uma só, a de atividade policial, tu sabes disso, é verdade?

(...)

(Parei para pensar um pouco, meio que surpreendido, e lembrei que inicialmente os Escrivães percebiam salários fixados em lei e que minha irmã que é Especialista em Educação e também trabalha no Estado percebia remuneração de cerca de seiscentos reais, salário este quase que relativo ao nível médio da Polícia Civil, evidentemente que se o Escrivão quisesse se comparar com um motorista da Assembleia Legislativa que ganhava mais de mil reais aí a coisa seria muito diferente. Pensei também na redação que dispôs sobre a indenização de atividade policial nessa lei complementar citada por Garcez, na verdade ela foi resultado da incursão de Sidney Pacheco que desejava realmente acabar com o festival de reivindicações dos policiais civis. Na época em me contrapus a Pacheco, mas entre um Delegado e um Deputado e Secretário de Segurança, enfim, tive que retroceder Mas, depois que foi aprovada essa legislação pude com mais calma interpretar o dispositivo e verificar que não houve junção alguma, ou seja, o que o legislador quis foi conceder uma retribuição pecuniária ao policial pelo fato de ter que se expor a situações como risco de vida, insalubridade, horas extras, horário noturno, sobreavisos e etc. Isso tudo transformava a atividade policial em especial. Entretanto, uma vez o policial civil tivesse sido convocado para fazer horas extras ou noturnas, tinha também que receber a respectiva retribuição pecuniária. E, finalmente, liguei os fatos, como H. era  Escrivã de Polícia e o dispositivo mencionava a palavra “sobreaviso”, condição inerente à situação funcional dos servidores policiais que atuavam nos cartórios e que poderia  ser chamados a qualquer momento para os serviços de polícia judiciária, estava ali então a explicação em parte para tal crítica, só que ela se esqueceu de que nada obstava a concessão de uma gratificação específica para o sobreaviso, inclusive, podendo ser estendida a hora extra para esses policiais que ficavam designados oficialmente. No entanto, resolvi deixar assim e nem entrar em detalhes com Garcez a respeito dessa sua crítica infundada, não valia a pena naquele momento. Mas, também, lembrei que quando seu esposo, Delegado G. teve a sua condenação confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça e teria que cumprir pena em regime fechado, o Delegado Braga que era Diretor de Polícia do Litoral me telefonou em nome da Secretária Lúcia Stefanovich, pedindo que eu providenciasse uma cela especial na Penitenciária de Florianópolis para que ele pudesse ter uma cela especial. Preparei a cela, só que ele nunca veio, pois a Secretária Lúcia, segundo soube, negociou com o Governador Paulo Afonso e com o Comandante-Geral da Polícia Militar para que o mesmo cumprisse pena numa cela no Quartel Geral da PM, no centro de Florianópolis, mais, ainda, acertou com o Governador a sua aposentadoria com efeito retroativo para que não fosse a sua aposentadoria cassada, conforme a decisão judicial e, ainda, de quebra, para que não ficasse preso durante o dia, acertou uma função gratificada de Delegado Distrital para que ficasse trabalhando na Diretoria de Polícia Técnica e Científica. Acreditei que a crítica da Escrivã H. se devia a outros motivos de ordem pessoa, já que trabalhamos juntos na 4ª DP de Coqueiros, quando eu ainda era Comissário e ela talvez não pudesse assimilar a minha ascensão profissional enquanto seu marido patinava, só poderia ser isso, despeita, mas inicialmente resolvi não comentar nada disso com Garcez).

  • Ela disse ainda que você é um esperto, chegou rápido a Especial. (Garcez)
  • Pois é Garcez, quando eu ingressei na Polícia Civil como Comissário em 1977 o marido dela já era Delegado e eu acabei chegando a Delegado Especial por primeiro e porque isso talvez..., é só olhar a minha folha de serviço prestado à instituição, os meus antecedentes disciplinares, diferentemente...
  • Sim, eu sei disso, Felipe.

(Veio a lembrança o ano de 1989, se não me falha a memória. Nessa época  estivemos eu e Arno na residência de G. e H., quando eles estavam residindo em São Francisco do Sul. Naquela época ele como Delegado de Polícia estava sendo responsabilizado por práticas de torturas e que segundo as informações extraoficiais noticiadas pela imprensa levaram, inclusive, uma pessoa a ficar deficiente física para o resto da vida, cujas matérias tiveram repercussão até em revista de circulação nacional.  Como presidente da Federação Catarinense dos Policiais Civis o Comissário Arno que trabalhou com G. me convidou para ir até a residência do mesmo para emprestar nossa solidariedade, entendi que era meu dever procurá-lo, com o  fim de colocar a sua disposição os serviços da nossa entidade. E qual não foi a minha surpresa, durante o tempo todo que estive em sua residência praticamente fui ignorado o tempo todo, como se não estivesse lá, dava para perceber como o casal estava sintonizado, e somente conversavam somente com Arno, sem se dignarem a me dirigir a palavra... G. e H., principalmente ela, faziam questão de adotar uma atitude que denotava pouco caso, afronta, humilhação e, então, estranhando toda a situação, procurei me manter em silêncio e apenas passei à condição de ouvinte das trocas de amenidades.  Fiquei imaginando naqueles momentos que tinha viajado com o meu carro até ali para prestar solidariedade por intervenção de um amigo e, em troca estava sendo tratado com desdém e só me restou o arrependimento de ter aceito o convite  e lembrei naquele momento da “Maga Lenin(nha)” e sua teoria sobre o olhar das pessoas (o espelho da alma), estava ali a explicação porque não olhavam nos meus olhos, me evitavam... Imaginei que depois que deixamos a residência do casal devem ter dado boas gargalhadas do mico que fizeram em passar, mas como dizem que Deus escreve certo com linhas tortas, só me resta meditar por eles com grandeza de espírito...).

  • Mas Garcez  e qual é a posição política do G. e dela?
  • PMDB, o que tu queres, inclusive ele está aposentado e ocupa cargo em comissão

(...)

(E, pensei: “devem tudo para a Lúcia Stefanovich, para o Governador Paulo Afonso e para o Coronel Valmir Lemos) pelo que fizeram por eles, estavam devendo as calças e tudo mais, mas coitados dos pobres mortais que não têm compadres, padrinhos... Enfim, foram mais de sete anos de reclusão em regime fechado, sem mais grau de recurso...).

  • Bom, nem poderia ser diferente, depois de tudo que fizeram por ele, mas eu conheço a H. e trabalhei com ela quando era Comissário de Polícia na Quarta Delegacia de Coqueiros, certamente a trajetória de minha carreira deve ter perturbado especialmente ela, só que se eu cheguei onde cheguei foi por muita luta (Felipe)

(...)

  • Mas Garcez eu estou te telefonando é para te avisar que amanhã à noite vamos ter aquela reunião lá no Restaurante Candeias, vamos acertar o restante da despesa com a festa.
  • Sim, além do que nós já demos vamos ter que dar mais?
  • Sim. Não vai chegar a trinta reais, mas tudo bem.
  • O Felipe, o Júlio não tem um mapa, um levantamento da situação dele aqui no Estado?
  • Bom, tu sabes... a Perfil publicou a pesquisa lá da região dele... e só em Rio do Sul ele sai com uns dezessete mil votos... depois tem o restante da região e ainda os outros locais.
  • Sim, e o Sché?
  • Olha, segundo a pesquisa lá em Rio do Sul ele está em quinto lugar, deve fazer de seis a sete mil votos.
  • Mas parece que aqui na Capital ele está bem?
  • Bom, segundo essa pesquisa que tu sabes é suspeita, ele estaria em quarto lugar, acho que aqui ele pode fazer no máximo uns três mil votos, no extremo oeste com o Maurício Eskudlark deve fazer mais uns dois mil votos, no norte do Estado uns mil, no sul também uns mil e no planalto e restante mais uns mil, o que deve totalizar na melhor das hipóteses uns dezesseis ou dezessete mil votos, podendo deixá-lo numa suplência se tiver sorte. Mas não está descartado que ele venha também a se eleger.
  • Sim.
  • Agora Garcez, o Júlio certamente vai se eleger e isso depois você vai me cobrar, só se houver uma zebra muito grande, o PFL deverá fazer de nove a dez deputados e ele estará dentre os eleitos e, até o Heitor tem chances.
  • Bom se você está dizendo isso, eu confio na tua avaliação.
  • O pessoal aqui na Capital, segundo informações, a maioria está com o Júlio, na Primeira Delegacia o Walter e o Rachadel, na Segunda a Ester, na terceira o Renato está com o Heitor.
  • Não. O Renato está com o Júlio e o Douglas está com o Heitor.
  • Como é que tu sabes que o Renato está com o Júlio?
  • Ele mesmo me contou.
  • Tu vê, eu pensava que não e não sabia que o Douglas está com o Heitor.
  • Bom, no Quarto me parece que o Moacir está com o Pacheco, são muito amigos, mas o Valkir está com o Júlio, no Quinto ...
  • No Quinto, o Pedro Fernandes está com o Júlio.
  • Sexto parece que a Ana Paula está com o Júlio, no Sétimo tem um tal de Carlos que eu não conheço que está com o Júlio.
  • Mas o Jair deve estar com o Heitor.
  • Não sei,  não conheço a posição do Jair,  na Oitava...
  • No Oitava está a Sandra.
  • É, parece que esta também está com o Júlio, na Nona estão o Wanderley  e o Carlos Andretti que estão com o Júlio e na Décima está o Evaristo.
  • Teu amigo. (risos)
  • O quê? Teu!
  • Em São José eu não sei, a Sandra Andreatta está com o Júlio, eu mesmo falei com ela, a Ed eu não sei. Mas Garcez é isso aí, amanhã a gente continua a conversa,  tenho que dormir, digo, ainda ler um pouco.
  • Eu também, estava lendo, aí tu me interrompeste.
  • Até amanhã.
  • Até!

E fui para cama com aquela imagem da Escrivã H. que não saia da cabeça, será que seria só inveja... E lembrei daquele seu Fiat 147, cor azul marinho, aquele seu corpo esguio e a sua alta estatura, pescoço comprido, cabelos castanhos armados até o pescoço,  cintura e ancas salientes, pernas longas e que dentro do seu carro acabava por fazer  um estilo desengonçado, mas havia o seu andar harmônico e elegante, na maioria das vezes era  silenciosa, atenta, poderia se dizer que se tratava de uma mulher territorial, dominadora …, demonstrava um misto de habilidade e cordialidade que combinava com a sua voz  grave que chegava a ser suave e bem colocada, sempre trajando roupas mais largas e soltas. Já G. fazia um tipo ágil, esperto, olhar aguçado, lembrava uma mistura com serrano, com seu bigode cheio, certamente dotado de um temperamento explosivo, apesar de deixar transparecer oficialmente uma certa calma, tranquilidade aparente, sempre se mostrando uma pessoa educada, porém, com presos a situação poderia ser bem diferente, como no caso de São Francisco do Sul.

E não tive como deixar de pensar naqueles relógios de Dalí, retorcidos e distorcidos sobre o apoio da janela, da mesa, de um recinto qualquer e de como ficaria a inserção pelo gênio desse casal naquela pintura. De comum, a excentricidade de seus bigodes? E depois dessa elipse, veio como um vulcão, uma censura: “aos diabos eu novamente com essas dualidades, analogias...”,  e olhei-me no meu espelho interior,  invocando àquela máxima de Carlyle: “O maior defeito é não perceber nenhum deles”.