Data: 24.09.98, 15:20 horas, “Quilates e Quilantes”:

Enquanto meu carro passava por uma lavação rápida convidei Garcez para tomar um café no interior do Shopping Itaguaçú. Já debruçado no balcão, iniciamos uma conversa sobre nossos a nossa rotina nos últimos dias em função da festa de Júlio Teixeira.

“(...)

  • Mas tu disseste que o Bahia (ex-Superintendente da Polícia Civil, cargo em comissão transformado em Delegado-Geral – 1989) te convidou para ser Chefe de Gabinete dele, olha Garcez, se um dia eu viesse a ocupar um cargo importante e te convidasse para ser meu chefe de gabinete poderias me considerar teu inimigo, jamais te colocaria para um cargo desses, você é um jurista, um filósofo, um estudioso (pensei, mas não disse: “sinceramente, além de muito esforçado e idealista, apesar de às vezes querer complicar as coisas, além da sua exponencial  insegurança...”).
  • Eu sei, tu falas que não deveria ser colocado um Delegado? (senti que Garcez ficou meio sem jeito depois que fiz meu comentário, aquilo certamente que lhe tocou fundo, mas ele se esforçou para que não fosse notado, sua voz ficou trêmula e chegou a gaguejar de emoção, como se procurasse buscar o fio da meada,  coordenar as palavras, era um reconhecimento de uma pessoa que certamente ele estimava e que com certeza estava lhe dando o devido valor e lhe dizendo a verdade!).
  • Nesse cargo que o Bahia queria te colocar deveria ser colocado um administrador, sei lá, menos um Delegado como você.

(...)

  • A gente não sabe até que ponto dá para acreditar nas pessoas, além do mais teve aquele episódio com a mulher do Wanderley, tudo isso veio ao conhecimento público. (Garcez)
  • Realmente.
  • Tu não foste ao encontro dos Delegados?
  • Não!
  • O Paulo Matte foi, ele é uma pessoa que dá para se contar, se bem...
  • Mas Garcez eu queria te dizer, não, não, deixa prá lá, não vou falar...
  • Eu já trabalhei com o Paulo Matte na Corregedoria,  ele e o Lipinski tiveram um problema sério, brigaram, mas tu querias me dizer algo?
  • Eu pensei até que tinhas esquecido, mas já que tu lembraste eu vou dizer...

Relatei à Garcez a informação que Wanderley havia passado sobre o Wilmar Domingues e frisei que não acreditava em nada, que achava impossível... E, Garcez fez os seguintes comentários:

  • Eu na época vi a matéria no jornal, nem me lembro direito, mas o Jorge achou que era coisa do passado, parece que houve algum problema no início da década de setenta, mas nada ficou provado e o Wilmar – até prova em contrário – não tem envolvimento com bicheiros aqui da Capital.

(...)

  • Mas Felipe eu também queria te dizer algo, naquela época que estávamos trabalhando na equipe para formular as propostas para o “Plano do Governo” o Quilante várias vezes telefonou lá para casa direto, não sei se mandado, queriam que eu participasse das reuniões deles. Numa delas eu fui e até te telefonei no dia seguinte te dando ciência, lembra? Mas o Quilante tentou me cooptar para ir para o lado deles.
  • Não brinca Garcez, foi assim mesmo?
  • É. Cooptação mesmo, eu até notei que o Wanderley na hora que cheguei lá no Candeias me tratou com alguma indiferença, assim sabe, e deve ser por isso que  não me procuraram mais, antes ele brincava comigo, mas depois que me viu lá com vocês...
  • Acho que é impressão tua, mas comigo ele é assim também, bem tranquilo.
  • Não, é verdade! Tu vê, o Quilante chegou a dizer que o Wanderley  tem mais força do que tu perante o Júlio. Ele chegou a dizer que o Wanderley tem um ‘trunfo’ com o Júlio, não sei o que é, isso ele também não disse.
  • Claro que tem, é certo que tem.
  • Mas eu disse para o Quilante que fui convidado por ti para participar dos trabalhos, apesar de que bem antes o Wanderley já tinha falado comigo, mas ficou só nisso. Disse a ele que estou no grupo graças a ti, mas era visível que ele estava tentando me levar, nem sei bem explicar porque não foi explícita, a coisa foi sub-reptícia.
  • Mas tu vê Garcez outro dia o Jorge veio me perguntar se deveria convidar o Quilante para participar das nossas reuniões, disse que estava gostando muito da postura dele, especialmente quando comentou o nosso “Plano” a ele que depois de ouvir teria dito que achou muito bom, excelente. E eu disse para o Jorge não fazer isso porque não era ético, daria a impressão que nós estávamos querendo cooptar o pessoal do Redondo, e no final Jorge concordou comigo. Agora tu vens me contar uma coisa dessas. Tem que ver até que ponto o Quilante não vai dar uma de Paulo Matte,  muito diplomata, político, habilidoso, mas...hummm!
  • Isso é verdade, mas por exemplo, o Lipinski  já é uma pessoa muito leal, ele se tem alguma coisa para te dizer ele diz, pode até ofender porque não tem muita diplomacia, mas é leal.
  • Olha Garcez, esse aspecto de lealdade eu vejo dentro de uma outra perspectiva,  se um dia eu vier a ocupar algum cargo importante gostaria que as pessoas que estivessem comigo fossem leais não a mim, mas a instituição.
  • Não Felipe, mas não é bem assim.
  • É sim Garcez, veja bem e se eu for uma pessoa corrupta...
  • Não! Aí é outra coisa, eu não sou obrigado a permanecer no cargo.

(...)”.

Horário: 16:40 horas, “o fator Pietro Blando”:

E já de retorno, próximo do carro pronto e limpo,

“(...)

  • Garcez, o nosso grupo tem objetivos, tem um “Plano”, nós temos a cara desse “Plano”, somos sonhadores, idealistas, você é assim, eu sou assim, o Jorge também é, Krieger, o Cláudio... Agora, o Grupo do Wanderley eu não sei se se identifica com o nosso projeto, só o tempo dirá, não se sabe quais os reais interesses do Wanderley, ele nunca colocou abertamente nada, e nisso só o tempo é que revelará os reais interesses, eu tenho as minhas dúvidas, mas caberá ao Júlio, dependendo do seu cacife político, decidir para onde vai pender, e isso só depois das eleições porque também tem o fator “Heitor Sché” que já é outro grupo que pode vir com força total, e os espaços vão ter que acabar sendo divididos,  pode ter certeza que a minha situação não está nada definida, vai depender muito de como as coisas serão encaminhadas depois das eleições.
  • Vai ser muito difícil se isso acontecer...
  • Pois é, concordo com você que a gente não pode ser radical no que diz respeito à implementação de um plano de governo com tantas pessoas, mas temos que  fazer o que é possível.
  • Mas Felipe, com relação ao Wanderley eu tenho sérias dúvidas, é incrível o relacionamento que ele tem, como é articulador, como se dá com todo mundo. Outro dia eu estava na frente de um supermercado e fiquei quase duas horas conversando com ele, tu não imaginas com quantas pessoas ele conversou durante esse período que ficou conversando comigo, tu não fazes ideia de como ele conhece gente, e de todos os níveis, na hora apareceu o Pietro Blando, pai da Débora Blando, ele é dono de uma empresa de telecomunicações e atua nessas licitações do governo que é um rolo,  tem uma fazenda lá para aqueles lados de Biguaçu, agora tu vê, ele é conhecido do Wanderley.
  • Bom Garcez, como já te disse, só o tempo é que poderá revelar quem é quem, essa é a nossa condição, temos que esperar, por enquanto temos que acreditar e ajudar o Júlio.

(...)”.

Horário: 17:10 horas,  “Seria a Grande Crítica de Garcez?”

No trajeto para o centro Garcez fez questão de frisar que o nosso “Plano” não teria sido discutido, foi feito a quatro mãos e que essa era a sua “grande crítica”. Repliquei  que se não tivesse sido conduzido assim nós ainda estaríamos fora do processo discutindo ideias, que o “Plano” continha linhas gerais e era importante para o Júlio e para nós na medida em que ganhou força política pelas nossas mãos e que assim não  perdemos o bonde da história. Além desse fato, tentei fazer ver a Garcez que graças a isso é nós estamos dentro do processo político, no que ele acabou concordando comigo. No final da nossa conversa disse a ele que o “Plano” poderá ser revisto, não é definitivo, e que dependeria de muita coisa na sua implementação. Se ele viesse a vingar o Júlio poderia ser o Procurador-Geral. Nessa questão Garcez discordou por ele ainda não ter chegado ao patamar de “Delegado Especial”. Argumentei que em política não dá para ser radical, isso poderia ser revisto porque a “Procuradoria” seria  uma coisa (a atual Secretaria de Segurança Pública, no mesmo nível da Procuradoria-Geral do Estado...) e a Delegacia-Geral seria outra bem diferente, operacional..., mas nada estava definido e comentei que o nome do Jorge teria que ser trabalhado para ser Procurador Adjunto ou Secretário Adjunto, no que ele concordou.

Sobre a Ponte Pedro Ivo olhei para Garcez e lembrei de Phillipe Ariès... (o historiador que participou do início dos trabalhos na elaboração da “História da Vida Privada”). Tive que me conter para não lhe dizer que o nosso “Plano” abriu novas oportunidades, nos deu visibilidade, que era importante não só para agregar e fortalecer laços de amizades, mas que também propiciava a escrita de “Uma História Privada da Polícia Civil”, só que diferentemente de “Jules Michelet” questionadora do porquê que tinha que se investigar os que já morreram..., enquanto eu, inserido no cenário como agente ativo, ao mesmo tempo historiador dos acontecimentos e inspirado nos “anales”, procurava reconstituir pedra a pedra os fatos, entender a teia viva das relações que vão permeando o imaginário policial, as estratégias de grupos na luta pelo poder e a conduta dos políticos na concepção de num ano eleitoral serem receptivos a “planos” de governo, tendo como plataforma as facções e seus diversos matizes. Havia uma preocupação em se contribuir para o estabelecimento de uma visão total desses movimentos e quais seriam as estratégias adotadas pelos grupos mais fortes, com maior cacife, sem desprezar a observação do quotidiano policial e a periferia no plano da concepção das ideias, do jogo do poder. Essa era uma grande oportunidade, quase que imperdível no curso da nossa história que poderia resultar em contribuição bastante salutar para leituras e releituras e, acima de tudo, na descoberta do real e de como as coisas funcionam no universo policial. Infelizmente, naquele momento o olhar estava limitado a uma visão dentro de outros níveis, pois tínhamos interesses em partir para a nossa vitória: a escrita da história vista por várias perspectivas.

Horário: 17:20 horas, “… a morte... e o ‘terminal”:  

Estacionei meu carro na Rua D. Jaime Câmera (centro de Florianópolis) e dali miramos a Nereu Ramos a pé. Garcez estava preocupado porque teria que carregar sua sacola preta cheia de livros e teria que assumir o seu plantão da Central de Polícia (CPP) às dezoito horas. Perguntei a ele se preferia levar a minha sacola e ele brincando propôs trocar os conteúdos (o meu notebook por seus livros, já que meu amigo ainda estava longe dessas tecnologias).

E Garcez fez uma observação recomendando que eu deveria voltar a estudar Direito,  pois nos últimos anos só queria saber de História (não era bem assim, também estudava Direito, mas menos do que antigamente e bem menos de sua compulsividade por livros jurídicos e sebos).

Durante a subida da ladeira tive que reduzir a marcha porque ele já estava com dificuldades de respiração (lembrei que Garcez não fazia exercícios e estava um pouco obeso, sedentário e que seu pai havia falecido com cinquenta e poucos anos do coração):

  • Felipe tu vê como é que eu estou com dificuldade para respirar, e tu nem sinal,  como tu tens um bom preparo físico.
  • Tens que cuidar também da tua saúde, olha os meus avós estão chegando aos cem anos e estão ainda bem vivos,  eu pretendo chegar lá.
  • É.

Garcez novamente falou de sua visita à OAB e da organização em que se encontra essa instituição e também da sua preocupação com o futuro da Polícia Civil. Sobre isso comentei que o Delegado Paulo Matte havia comentado que um Delegado da Federação Brasileira de Delegados (um tal de Moraes) esteve palestrando no encontro do final de semana e alertou a todos para que se mobilizassem, inclusive, amigos, parentes e esposas a falar com parlamentares para defenderem nossos espaços. Segundo o Delegado Moraes a coisa realmente estaria preta em Brasília e que estaríamos em situação de perigo e sujeitos a ficar subordinados ao Ministério Público. Disse a Garcez que desde na época que fundei a Fecapoc (Federação Catarinense dos Policiais Civis) procurei mobilizar a classe e tive pouco retorno, nos encontros que participei em nível nacional via sempre aqueles representantes classistas dos principais Estados desfilando com ares de superioridade, desarticulados, sem  elegerem prioridades e que aquela preocupação era coisa já é antiga.

  • Tu vê, nós temos que aproveitar que o pessoal da OAB gosta da Polícia Civil,  eles nutrem uma simpatia pela nossa instituição, são nossos aliados.
  • Mas evidentemente Garcez, a Polícia Civil é uma instituição civil e tem muitos pontos de contatos com eles (formação jurídica superior...).

Na esquina da Rua Tenente Silveira com a Praça XV Garcez  ainda comentou que estava levando livros para ler durante o plantão e eu fiz o seguinte alerta:

  • Garcez, de nada adianta ler tanto e depois morrer na praia, essa é uma das minhas broncas com os filósofos, mas vê se cuida da tua saúde também.

E Garcez – já com seu sorriso que rapidamente se emudece e se perde no a, a face emudecida se vai em direção ao “terminal” de ônibus, rumo até o Bairro Trindade, o que poderia lhe proporcionar grandes reflexões, esperava que aquela minha frase o atingisse de cheio, se espraiasse pelas sinapses, se protraísse infinitamente no pelo seu sistema límbico até o córtex frontal... (só que já havia feito essa advertência noutras oportunidades e...).