Data: 24.09.98, 15:20 horas, o “gozador e a Águia”:

No caminho para o ginásio da “Cassol” situado às margens da via expressa, na BR 101, município de São José, como estava demorando um pouco e Jorge Xavier nos perdeu de vista, como percebi que já havia acionado o celular uma vez para saber por onde nós andávamos,  procurei acalmar o ansioso Garcez que ficou preocupado porque havíamos entrado num beco sem saída. Resolvido em parte esse problema, já estávamos próximos do nosso destino,  quando tocou o celular:

  • Felipe, onde é que tu andas?
  • Estou aqui em Barreiros ainda, fui dar na BR 101 que está toda interditada.
  • O quê? Vocês se perderam mesmo, não quisesse vir atrás, eu tenho um caminho excelente que vai dar direto.
  • Tudo bem, eu vou voltar e vou tentar achar um caminho...
  • Escuta tu faz o seguinte....

Enquanto Jorge se prolongava na conversa, esforçando-se para me orientar a tomar o melhor caminho, já estávamos dentro da Cassol – na guarita – quase atrás dele, e pude ver que Jorge Xavier estava sentado no banco traseiro, quando Krieger deve ter anunciado que estávamos ali atrás. Todos riram da situação cômica de nosso interlocutor (digo, Krieger e Geraldo, e para acompanhar esse quadro Jorge teve que achar graça também).  Garcez deixou  escapar aquelas frases repetidas e soltas: “como o doutor Jorge gosta de ti, sempre te quer do lado dele”, enquanto isso procurei argumentar que era amizade antiga, muita história juntos, confiança mútua e agora o nosso “Plano”. Seguimos em direção ao ginásio por dentro da Cassol (porque a rua da frente estava ainda interditada) e um verdadeiro lamaçal nos esperava (lembrei que na volta teria que lavar o carro naquele posto de gasolina de sempre, o que me daria oportunidade de conversar um pouco mais com o Garcez). E, logo que saltamos do carro Jorge Xavier veio ao nosso encontro e lançou esta:

  • Eu não sabia que tu eras um gozador.

Pude notar naquele seu semblante aquele sorriso nervoso e forçado, um som grave, comedido e breve (evidente que estava querendo mostrar descontração, seu lado esportivo, isso já que os outros dois que estavam com ele deveriam ter dado algumas boas gargalhadas (eram pessoas bem descontraídas). De um lado o Jorge Xavier formal, sério, meticuloso, numa grande empreitada, mas era um festeiro e, do outro lado, eu arranjando tempo para invocar o espírito “volteriano” ou “voltaico” com aqueles gracejos para um momento tenso...). Mas, sem deixar o assunto sequer tomar corpo, na verdade fiquei preocupado, pude fazer uma leitura dinâmica e compreender a reação do amigo que se fosse noutros tempos certamente teria uma reação bem diferente. Mas, também, isso demonstrava uma superação (como aquela bem viva ainda (Lembrei do último jantar do grupo, quando falei sobre os títulos e Jorge que acompanhava atentamente minhas palavras... Naquele momento pude ler seus pensamentos: “não concordo (ou não concordava no passado, mas era uma forma de impor respeito, deixa para lá”, e preferi não levantar a lebre naquele momento, mesmo porque estava ali o Krieger e nós, eles cheios de títulos, de fato eram outros tempos) em que no passado Jorge entendia que um Delegado tinha que ser chamado de ‘doutor’ só porque tinha um curso de “pós-graduação” em Criminologia fornecido pela Academia de Polícia (o que revelava uma exacerbada preocupação em valorizava aquele estabelecimento e os respectivos cursos) o que me dava enjoos (não o curso em si, mas a forma como Jorge Xavier se posicionava frente a esse assunto) , no entanto, como isso vinha acompanhado por um discurso, ninguém se atrevia contrariá-lo (e o ridículo a que ele se expunha, dos risos e gozações, era muito sério mesmo,  e chegava às vezes a dar pena, porém, todos o chamavam de doutor Jorge como uma reverência intestinal, e aquilo parecia ser o máximo, lembrei da Leninha, das suas crenças, dos seus dos valores, do sagrado, do profano e como se deveria se sentir perto do nosso “doutor”). Agora são outros tempos, de descontração, dava para ser mais descontraído, e pude notar que a idade, o sofrimento e a aposentadoria realmente lhe caíram bem. Certamente os abalos sofridos naqueles últimos tempos durante e após a sua gestão á frente da Delegacia-Geral infundiram uma visão crítica sobre o mundo, sobre as pessoas e, principalmente, acerca dos verdadeiros amigos, . muito mais crítica e, também, agora eu sou Especial estamos num mesmo patamar.

Argumentei que aquela nossa conversa era para descontrair, mas no meu íntimo sabia que tinha que me conter com aquele meu jeito irreverente de ser e às vezes de brincar com coisas sérias, podendo até magoar pessoas amigas com verdades e “mentiras”. (sim, era aquele meu lado com um misto de espírito infantil e provocativo. Imaginei que era por isso que as crianças talvez gostassem tanto de estar na minha companhia.

Lembrei de dizer para a "Dinha" que outro dia se reportando a “Clarinha” (filha da Cilene Meirelles), Vitor, Raisa...(meus sobrinhos) procura descobrir ainda qual o segredo e era só deixar o lado criança aflorar na companhia delas, ter sensibilidade,  dar valor ao que dizem, respeitar seus espaços, compartilhar e entender os seus valores...) e nesses pensamentos sou surpreendido com Jorge Xavier:

  • Olha esse Wanderley  Redondo é uma águia.
  • Isso todo mundo sabe. (Felipe)
  • O Júlio que se cuide, tu não vês o que ele fez com esse negócio da festa.
  • Mas Jorge, o Júlio para tolo também não serve.
  • O quê? Ele é dez vezes mais águia do que o Júlio.
  • Não é assim Jorge.
  • Rapaz, esse negócio dos trezentos reais é tudo história, ele pegou duzentos com o Gervásio...
  • Não Jorge, não visse ele dizendo que foi das férias dele, depois ele vai tentar reaver.
  • E tu acreditaste nisso?
  • Sim. Não foi o que ele disse?
  • Queres saber de uma coisa, ele pegou duzentos com o Gervásio e cem reais com o Júlio.
  • Não pode ser, eu acabei de falar com o Júlio no telefone e eu disse a ele que é por conta dos amigos.
  • Bom, vamos ver.

Depois disso fomos inspecionar o ginásio e tratar com o zelador o preço da cerveja e outros detalhes. Krieger novamente colocou em evidência o problema da vala que dava acesso à entrada do ginásio e que tinha sido aberta pela prefeitura para evitar que se colocassem lixo naquele local. O problema era acertar com Gervásio Silva ou com alguém na Prefeitura de São José para resolver o problema, mas Krieger reiterou que se caso isso não ocorresse ele mesmo viria com uma pá para fechar parte dos buracos. Fiquei sensibilizado com sua humildade e me dispus a ajudá-lo, no final,  quando estávamos já de saída, Jorge Xavier fez o seguinte comentário derradeiro:

  • É, vai ficar bom, vai dar para fazer uma boa festa.

Eu e Garcez deixamos a Cassol e nos dirigimos ao Posto de Gasolina em frente ao Shopping, em cujo local deixei meu carro para lavação.