Chamada para Sandra:

Dia 14.09.98, por volta de 16:00 horas telefono para Sandra Andreatta e inicio:

- Lembra da minha voz... (risos do outro lado), fiquei de te ligar no dia seguinte..., infelizmente não deu...?

- ...fala amigo Felipe...

Sandra era velha conhecida, desde os tempos de Faculdade de Direito, quando fui devolver-lhe uma carteira de identidade que encontrei no interior de um livro na Biblioteca da UFSC. Mais tarde ela lembrou essa passagem que eu, inclusive, já tinha até esquecido, mas isso também serviu de base para que vicejasse nossa amizade.

Quando havia indicado o seu nome para Jorge Xavier e Cesar Krieger  (no nosso primeiro encontro no Restaurante Candeias Velho),  os mesmos torceram seus narizes. Sandra havia sido vetada e tive que me render naquele momento à decisão dos companheiros. Sandra ao longo dos anos havia forjado uma espécie de perfil que, digamos, poderia ser traduzida com pitadas do seguinte enredo: “Contos e Causos de Uma Delegada Controvertida e Dada a Aventuras Muito Perigosas”. Coloquei o nome da Delegada Ana Paula a quem sempre também tive em boa conta, e não houve qualquer contestação do grupo. Mas Sandra – apesar de seu jeito nordestino despachado e de se mostrar uma profissional demasiadamente envolvida com a “tiragem” e com o serviço de campo – tinha garra e aquele seu primeiro embate no caso do filho do “Procurador de Justiça”, acabou lhe rendendo perseguições e numa condenação pelo nosso Judiciário. E, ainda, teve que arcar com o completo estado de abandono por parte da direção da Pasta (e da Associação dos Delegados) que preferiu ficar do lado dos mais fortes, determinando que a Corregedoria-Geral  procedesse a abertura de procedimento disciplinar (lembro que na época telefonei para Sandra, hipotecando solidariedade e colocando-me a sua disposição). Também, sensibilizou-me muito as “perseguições” que sofreu por parte de algumas pessoas na Policia Civil ao longo dos anos, sem contar o processo de “esteriotipação” e “execração” midiática.

Voltemos ao telefonema:

“(...)

- Sandra precisamos conversar. Estais muito ocupada no momento. Podemos...

- Ah, sim. Estou dirigindo. Estou entrando no meu condomínio. Como está a política?

- Bom, é bem sobre isso que precisamos conversar. Já tens algum posicionamento?

- Não. Até agora não fui convocada por ninguém.

- Então tá, eu agora estou te convocando. Não sei se tu sabes, eu tenho uma amizade muito antiga com o Júlio Teixeira.

- Pois é, o Wanderley  Redondo já esteve conversando comigo aqui na Segunda Delegacia de Polícia de São José e me entregou uns santinhos.

- Sandra, se o Wanderley  já conversou contigo tudo bem, mas de qualquer maneira seria bom se conversássemos pessoalmente.

- Olha eu estou sozinha na Segunda DP. A Ed está de férias. Liga amanhã pela manhã.

- Seria bom a gente conversar fora da repartição.

- Não tem problema. Liga amanhã pela manhã.

- Certo. Até lá.

Em seguida, antes de sair para a Delegacia-Geral tocou o meu telefone residencial e do outro lado era Jorge Xavier que perto de meio-dia havia proposto a transferência do jantar no Restaurante Candeias de terça para quarta-feira. Solicitei a ele que conversasse com os Delegados Garcez e Wilmar sobre a transferência da data desse evento já que essa era a sua iniciativa. Jorge Xavier aproveitou para avisar que os vencimentos sairiam na quinta-feira (“muito bom!”, pensei). No cardápio constava ainda o assunto relacionado ao Delegado Mário Martins.  Segundo Jorge Xavier o presidente da ADPESC teria lhe sacaneado ao ter afirmado que os vencimentos iriam atrasar.  Procurei argumentar que Mário Martins era uma pessoa com quem possuía uma amizade muito antiga, desde 1977, quando fizemos a Academia juntos...

O Menestrel velho homem:

Dia 16.09.98, por volta das 09:30 horas, uma mistura fina de trocadilho Shakespeariano com um ‘revival’ do escritor Edgar Allan Poe, embalado por aquele épico de Allan Parsons que mais parece descrever uma cruzada medieval, sob os acordes de uma cítara que nos traz uma mistura com o  determinismo de Hemingway naquele célebre livro escrito em Havana (1952): “Há algo de podre no ar...”, traduzida pelo velho escrivão ou pelo o escrivão velho.

Osnelito – que tentou por mais de dez concursos ingressar na carreira de Delegado de Polícia - como às vezes fazia, entrou na sala onde eu me encontrava todas as manhãs (trazia na parede a Galeria com as fotos dos ex-Delegados-Gerais). A bem da verdade, aquele era o seu local preferida para a sua matinal “borrada”, já que havia um banheiro no local, bem ao lado da porta de entrada.  Lembrei em dizer para ele manter o banheiro limpo quanto ao uso do papel higiênico. Imediatamente veio a imagem da lixeira com aqueles papéis escancarados e cheios de dejetos ainda frescos, na cor terracota, bastantes salientes, expostos para quem quisesse ver e cheirar. Como o local era utilizado principalmente pelas silenciosas psicólogas da sala da frente, andava preocupado porque o pessoal poderia pensar que eu seria o responsável por aquele panorama... Mas o isolamento que me foi imposto (e também tinha o fator cúpula da Polícia Civil seguindo ordens da Secretária Lúcia e de seu Adjunto Lourival) fazia represar uma necessidade de ter algum contato exterior...

Com nas outras oportunidades que recebi a visita de Osnelito, após o seu “feito”, com a determinação que mantivesse a porta do banheiro fechada, chamei o mesmo para mais um breve bate-papo e para tomar conhecimento das “boas novas” na área, aproveitando que havia liberado uma carga de adrenalina. Osnelito aceitou a minha chamada e veio na minha direção meio que a passos cambaleantes e trôpego, senta-se bem ao meu lado, começando com a seguinte frase:

- A novidade é que o Eduardo Pinho e o pessoal do PMDB do sul do Estado resolveram aderir à campanha do Paulo Afonso...

- É mesmo?

Completei com ares de arremedo, afirmando que isso era ruim porque o rompimento de Pinho Moreira com o PMDB de Paulo Afonso era importante na medida em que credenciaria os históricos a disputarem o Governo do Estado em 2002. No que Osnelito observou que o candidato seria Luiz Henrique. Concordei. Tanto um como o outro poderiam concorrer na majoritária. O importante era que fossem os históricos, e não aquele pessoal do PMDB contemporâneo. Comecei com a seguinte indagação:

- Osnelito, e esses carros novos que chegaram para a Polícia Civil?

- Olha tá todo mundo com carro novo por aí para baixo e para cima, é uma vergonha.

- Mas afinal de contas, aqui no prédio quem é que tem carro?

- No Segunda andar eles tem carro, lá onde trabalha o Prates (Delegado Aldo Prates), mas eles estão sempre passeando. Lá embaixo o Carlos da Jogos e Diversões tem carro oficial e estão direto para baixo e para cima, levam os filhos para a escola, vão fazer compras, carregam as esposas...

- Mas eu tenho visto esses Corsas Sedans novos e, afinal de contas quem é que tem?

- Todas as Delegacias receberam um desses carros, e eles só passeiam. Aqui em cima o Jamilson também tem um e é direto. Olha lá na Costeira tem um policial aí de uma Delegacia, ele mora perto da minha casa, nos finais de semana ele vai para casa com o Corsa e o carro fica umas três quatro horas na garagem, já vi ele passeando diversas vezes lá no Campeche, principalmente nos finais de semana.

- Mas Lito espera aí, será que eles não estão a serviço?

- Não, não tão não!

Osnelito - na época da Federação Catarinense dos Policiais Civis (Fecapoc) também chamado de ‘Lito’, um de seus apelidos, de frente para os quadros dos ex-Chefes de Polícia, não se conteve e passou a registrar as seguintes pérolas:

- “Tentei ontem uma carona para o comício do PMDB lá em Criciúma, mas não consegui. Devia ter ido, mas como é que eu iria com o meu Fiat 147.  Naquela época da Fecapoc eu era um..., mas hoje já não sou mais a mesma pessoa. Conversei com o Coimbra e ele disse que iria com o Trilha. Depois falei também com o Schmith e com o Acácio Sardá e não consegui nada. Acho que o Trilha e o Coimbra foram com aquele carro oficial (Chevrolet – Blazer). .A minha mulher me aconselhou a ir, tu sabes né, quinhentos reais fazem diferença para mim, até o final do ano eu estou endividado, mas se eu fosse Delegado eu iria lá na Lúcia e entregaria o cargo na hora, não passaria por essa humilhação”.

Na sequência, sem perder aquela acidez, um outro inaudito desabafo, digno de registro para a posteridade:

- “...É tudo uma turma de safado, esse L. é outro safado, manipulou todo o último concurso...”.

- “...Quando algum desses aí morrer eu não vou sentir mais do que a morte do meu cachorrinho...”.

- “....No último concurso a Lúcia havia prometido para mim e para mais dois policiais que no próximo nós iríamos passar e olha no que deu? É por isso que eles não me exoneram, se eu fosse Delegado eles me tratariam na palma da mão, porque o tratamento dispensado aos Delegados é diferente, eles sabem que como Delegado amanhã eu posso estar por cima...”.

- “...Esses quatro aí (Longo, Jucélio, Luiz Darci e Manoel dos Santos Dias) eu ainda respeito...”.

- “...O Bahia é uma geladeira...”.

- “...Aqueles quatro lá são todos uns s. (Jorge Xavier, Oscar Peixoto, Ademar Resende e Evaldo Moreto)...”.

- “...A Lúcia e o Bahia ainda fizeram um concurso de ingresso sério, mas a maioria desse pessoal aí entraram não sei como...”.

- “...O F. é um corrupto...”.

- “...O Pedrão foi outro s....”.

- “....O Heitor foi ainda uma pessoa boa...”.

- “...O Bado foi outro safado f.  Um dia entrei na sala dele, quando me tiraram do Parque São Jorge, a fim de saber a razão da minha saída e ele passou a fazer f. de um monte de gente, dizendo que estava sendo perseguido...”.

- “...Nenhum desses aí tem uma cultura geral que pudesse despertar qualquer inveja...”.

- “...Outro dia encontrei o Alípio e ele me contou que no concurso para Delegado o A.  tinha entregue a prova para ele fazer. O Alípio me disse que respondeu as questões e devolveu a prova para ele..., mesmo assim foi reprovado. Chamei ele de burro, porque pior era a minha situação pois não davam qualquer chance e ele teve todas e as desperdiçou...”.

- “...O Moreto, logo no início do governo, tentou me tirar do cargo, andou falando com a Lúcia, com o Trilha também, mas nada conseguiram. A Lúcia não aceitou que eu fosse exonerado, sei que ela agiu assim por motivos políticos porque também não gosta de mim desde aquele Parecer do Detran que eu dei na época em que eu estava na Procuradoria-Geral e ela era a Superintendente da Polícia Civil...”.

- “...A minha vontade era botar fogo em todos esses quadros. Já pensei até em quebrá-los, mas não fiz isso porque...”.

- “...Para mim o cupim podia comer todos esses quadros aí...”.

- “...Mas uma coisa eu já fiz, cuspi na cara de todos eles..., bando de s...”

(...)”.

Depois desse vendaval e do gosto amargo de fel no nosso menestrel, passei a me fixar nos espaços vagos ainda existentes naquela galeria. No meu íntimo veio o sinal de que o próximo quadro com foto oficial seria do Delegado Trilha e, talvez a seguir o meu... Seria? (lembrei do que o Delegado Braga havia me dito dos comentários na reunião do Conselho Superior).

Encerrei nossa conversa dizendo a Osnelito que ele rezasse para  que o nosso “Plano” viesse a ser executado, caso Amin vencesse o Governo e Júlio Teixeira viesse a se eleger. Reiterei a estratégia de se fazer o concurso na Polícia Civil  com provas e títulos, enfim, uma das formas seria valorizar o tempo de serviço e fazer valer também como titulação, dentro de critérios... Quanto mais antigo o policial, sem punição e satisfeitos outros requisitos, mais valiosa a sua titulação e, assim,  melhorariam as possibilidades de passar no certame. Essa era – a meu ver - uma das formas mais justas de se valorizar e respeitar nossos policiais mais velhos e experientes. Entretanto, frisei que Isso não implicaria que ele obrigatoriamente tivesse que  passar porque o conhecimento também era importante... Finalmente, lembrei que no final da década de setenta dois delegados foram aprovados legalmente em um concurso relâmpago de acesso, sem concurso público, cuja legislação vigorou por pouco tempo, beneficiando os Delegados PBB e AF, tudo dentro da moral e dos bons costumes para a época...

Vendo ainda a exaltação de Osnelito e o furor de sua revolta, como já conhecia seus pensamentos externados noutras ocasiões (pensei comigo: “É cria de uma instituição que sempre desconsiderou o ser humano que serve de instrumento para os poderosos na escalada pelo poder..., o que acabava resultando em profissionais doentes irremediáveis”...). Tratei de mostrar para meu visitante o jornal “Folha de São Paulo” do dia anterior que estava sobre a grande mesa, recomendando a leitura. Osnelito, enfim, deixou o local, deixando para trás aquele cheiro impregnado que contaminava  todo o nosso ambiente.

Depois disso, fiquei remoendo as palavras do Delegado Trilha no nosso último encontro em seu gabinete no ano passado:

“(...)

- “....Então Dr. Felipe nós temos que nos cuidar dos inimigos...”.  (Trilha)

- Mas Dr. Trilha, inimigos onde? Será possível que nós temos inimigos na Polícia Civil?

- Sim, nós temos doutor.

- Eu acho que não, se o senhor me disser que nós temos que nos unir para enfrentar interesses antagônicos externos representados por outras instituições.

- Ah, o senhor quer dizer Polícia Militar? É mais... (completou Trilha)

Isso me fez pensar no que seria uma adaptação moderna da versão de Cervantes em sua epopeia que contava a história dos ‘intrépidos’ D. Quixote (e sua Dulcinéa...),  Sancho Pança e seu burrico, os moinhos de vento...,  tudo temperado por aquele derradeiro final de “Les Miserables” de Vitor Hugo..., quando “Jean Valjean”, depois de tanto encalço por parte do Inspetor de Polícia Javert, perseguidor, às margens do Sena invocou o “odo Poderoso”...

O edil e garboso infante:

O Delegado Trilha sempre pareceu ser um profissional muito educado e cordato. Fiquei imaginando porque as pessoas seriam tão ferozes nas críticas contra o mesmo que nunca me negou nada, então me veio àquela dúvida: “será que por trás daquilo se esconderia um oceano agitado, um homem raivoso, cheio de tormentos? Como poderia saber... Mas o fato era que ele nunca tinha me feito qualquer mal (pelo menos não tinha conhecimento). Pensei que só poderia haver muita bondade dentro daquele seu coração infante. Lembrei da primeira edição do meu “Estatuto da Polícia Civil Comentado – edição 1993”, quando uma psicóloga policial havia feito uma citação do meu nome em petição dirigida à Corregedoria que nessa época era o Trilha do órgão e ao despachar o documento teria ridicularizado a citação ao meu nome: “... segundo o jurista Dr. Felipe Genovez...” (essa passagem trouxe à tona o calvário de Luis Pasteur - também ridicularizado e perseguido implacavelmente pela classe médica de Paris,  até que conseguiu provar que suas experiências com germes, que conseguiu salvar muitas vidas; depois aquele seu famoso discurso perante à casta de branco, enfim, um reconhecimento...). Também lembrei que no ano passado quando fui levar três volumes do mesmo trabalho atualizado da edição 1997 para o novo Corregedor-Geral – Dr. José Guaianaz de Lima, o Comissário Vilmar Carlos Alves que recebeu o material comentou que usavam muito o Estatuto na Corregedoria, à exceção do Dr. Trilha. Mas até aí tudo bem, se isso fosse verdade e já que toda unanimidade é burra como professava o sensacional repórter e dramaturgo Nelson Rodrigues... E, também, acabei por recordar que  o Delegado Mário Martins em agosto de 1997 – na sede da ADPESC - perguntou-me se eu estava comparecendo diariamente na Delegacia-Geral? Respondi que sim, mas que chegava muito cedo - às sete horas da manhã, antes de tudo mundo, e me dirigia direto para meu confinamento: “ A Sala dos ex-Chefes de Polícia”, conforme tinha acertado com o Delegado Evaldo Moreto, quando este era ainda o Delegado-Geral. Mário Martins contra-argumentou: “Mas parece que ele está mandando cortar o teu ponto, toma cuidado com o Trilha, todo mundo sabe que ele é um l., tu vê rapaz ele está cobrando até que eu cumpra meio expediente, vai lá e te apresenta para ele”. Recordei também que naqueles dias encontrei o Delegado Lauro Braga na escadaria do terceiro andar da Delegacia-Geral dizendo que estava preocupado comigo porque o Delegado Trilha estava querendo me perseguir me perguntou se eu já tinha me apresentado para ele. Respondi que sim, mas havia pensado o seguinte: ‘se todos os policiais civis tivessem que se apresentar sempre ao novo Delegado-Geral, tudo bem, se isso também fosse verdade, talvez ele deveria ter me chamado”. E veio à lembrança o que diziam Walter da portaria e o Escrivão Carlos da Jogos e Diversões, alto e em bom som, para todos que quisessem ouvir várias vezes teriam ouvido o “Chefe de Polícia” vaticinar: “ Eu sou mesmo um c...”. Depois disso lançavam a seguinte indação: “Como é que um homem desse conseguiu chegar a esse cargo...”. Não pude deixar de lembrar o que me relatou o Comissário Vilmar Carlos Alves num dia de inverno -  na frente da Catedral: “... o Dr. Trilha quer voltar para a Corregedoria Geral. Enquanto ele esteve lá queria que as Corregedoras o acompanhasse nas diligências, mandava que o motorista fosse  chamar as suas g...’; durante os finais de semana e à noite o doutor Trilha se trancava em seu Gabinete para destruir todos os processos e sindicâncias que encontravam-se ocupando espaço naquela repartição...’ como é que ele estava ocupando aquele cargo...’; e lembrei também da Jô que um centro dia do ano passado me procurou nesta sala para tirar uma dúvida qualquer... e sobre não sei mais o quê e desabafou: “... estou indignada... entrei no elevador com o Dr. Trilha... e ele perguntou se eu não tinha medo de embarcar sozinha com ele... se não tinha medo de ser estuprada... ora já se viu uma coisa dessas...”. … Aquele dia de junho de 1998 quando eu e Leninha (esposa de Jorge) encontramos o Trilha quase em frente do Ceisa (na esquina) e ele gentilmente (como era o seu estilo) parabenizou por Cesinha ter passado nas provas escritas para Delegado e comentou, ainda, que ‘... ele já está passado... a prova oral não deveria nem existir... e o rapaz já poderia se considerar aprovado...’ (… um sinal de bons presságios e uma demonstração de bom coração...) e fiquei em dúvida... será que isso tudo não é invenção desse pessoal... e veio a lembrança daquele episódio amplamente divulgado na imprensa  há alguns anos atrás na Beira Mar Norte... em que Trilha num incidente banal de trânsito, portando uma arma..., mas como eu nunca vi absolutamente nada de anormal... e Jorge havia comentado que Trilha não pode ir ao casamento do Cesinha (filho de Jorge), mas que fez questão de mandar um presente... então como é que podem falar tudo isso por aí...

Passado algum tempo, fazendo uma revisão desse diálogo, tive a oportunidade de arrepender-me várias vezes (como fazia naquele instante) porque não havia concluído, dizendo a Trilha que esse negócio de se criar inimigos imaginários internos... talvez denotasse impotência... fuga... para não se enfrentar realmente os verdadeiros problemas externos: a corrupção nos órgãos públicos... no sistema financeiro... a questão do menor... a criminalidade latente... a lentidão da Justiça... a necessidade de mobilizar segmentos macros para implementar reformas constitucionais...os grandes figurões do serviço público e da sociedade... a imprensa marrom... os investimentos na polícia científica... a especialização dos policiais civis... os crimes contra os consumidores... os juros extorsivos... a sonegação fiscal... o problema do menor... E, lembrei, ainda, que se infligir perseguições a supostos  ‘inimigos ditos internos’, destituídos de poder, para quem tem a caneta na mão é muito fácil... porque além de ocupar o tempo... proporciona aquela sensação de cumprimento do dever... Infelizmente agora era tarde... pois isso tudo passou ‘batido’... Mas, de qualquer maneira estava eu ali confinado àquela  Sala da Galeria com seu carpet vermelho, e há mais de um ano com minha ‘maquineta eletrônica’ sobre a imensa mesa envidraçada com um tecido vermelho real por baixo...,  sem um lugar específico para ficar... convivendo diariamente com a imagem daqueles ex-Chefes de Polícia... o que volta e meia suscitava novas imagens... e aqueles artefatos ‘históricos’ todos coletados na época que Jorge Xavier era ainda o Delegado Geral e que inaugurou aquela dependência. No outro lado da sala: … uma caixa de madeira contendo carvão em pedra... uma motocicleta (recordei ainda Jorge emocionado com a forma como recebeu aquele brinquedo de uma criança... corria aqueles tempos tumultuados em que ele estava bastante vulnerável... e quase chorou no dia da inauguração...), várias estatuetas, um pilão pequeno em metal amarelado... um barco... todo material trazido a seu pedido pelos Delegados Regionais das diversas regiões para formar aquele acervo.

Nos instantes seguintes, ao dar uma chegada no andar térreo, surgiu a imagem da eficiente Escrevente Policial loira lá do andar térreo da Delegacia-Geral. A impressão foi que o Delegado-Geral Trilha havia acertado em cheio quando colocou essa policial para botar ordem no setor do Escrivão Osnelito. Ela sem dúvida passava ares de refinamento no ambiente. Dava para perceber que era eficiente, discreta, segura e muito esforçada, porém, deixava um misto de Comandante ‘Picard’ na versão feminina (de uma das séries do filme de Jornada nas Estrelas) e  de messianismo que contrastava com aquela realidade deixada por seu antecessor: assumir de fato a Gerência lá pro lado do “Canal da Mancha” (segundo informaram, mediante o pagamento de diárias), ficando o coitado sentado no cargo e na cadeira (no ambiente um cheiro de coisa estranha, todos pareciam ridicularizá-lo frente ao novo comando de fato, enfim, um Escrivão Velho ou um Velho Escrivão?). Mas,  eles tinham que engoli-lo já que os Deputados Andrino e Blasi eram seus padrinhos políticos. E,  na sala maior, a toque de caixa encontrava-se talvez uma “salvadora da pátria”. Lembrei que o “porteiro” Walter (Auxiliar Administrativo do Quadro Geral dos Servidores Públicos do Estado, figura jurássica,  apesar dos cinquenta e poucos anos, apresentava porte atlético, há anos na Polícia Civil, cabelos grisalhos e longos nos ombros, lembrava uma mistura daqueles infantes da Idade Média, camisa social meio aberta mostrando os pelos grossos do peito até o pescoço, corrente grossa dourada, todas as manhã cedo e à noite pilotando a central telefônica para fazer contatos com figuras fantasmagóricas solitárias, usando como ferramenta as suas verdades que trazia na ponta da língua, disposto a falar sobre  tudo e de todos, evidentemente, a quem se dispusesse  a ouvir, fanático do Senador  Amin e do Delegado Sché... Na semana anterior, quando estava ainda no andar térreo, próximo a máquina de ‘xerox’, Walter disse que havia comentado que quando mudasse o governo o Delegado Trilha tinha prometido que levaria a “loira” (Rosângela) e mais a Delegada Ana Rothsal – Chefe de Gabinete - para trabalharem com ele na Corregedoria-Geral da Policia Civil, completando cheio de autoridade: “onde já se viu,, o que ele está pensando, será que ele não sabe que o governo vai mudar?”

De volta ao ‘Salão’, surgem reflexões inconfessáveis, tipo: “como nossa Polícia é um campo muito fértil no campo da História e para se registrar nossas memórias de casernas...? Pensei, também, no tal poder messiânico, começando a compreender que estava no lugar certo e no momento certo, inclusive, me perguntei se seriam os desígnios superiores que me atribuíram essa missão?