Dia 02.09.98, eram quase quatorze horas e eu ainda estava no trânsito em direção ao Hotel Castelmar quando toca o celular e do outro lado aquela voz que nos últimos dias já tinha ouvido algumas vezes - o Cel Backs diz:

- Felipe estão todos aqui no hotel. O nosso convidado já está por aqui. Estamos te aguardando. Vamos iniciar agora a palestra. Tu estais a caminho?

- Sim, estou chegando.

No hotel ninguém sabia de nada e fiquei esperando alguns minutos até que resolvi telefonar para o Redondo:

- Alô Redondo. Escuta tu estais na palestra?

- Não.  Eu ainda não pude ir, mas daqui a pouco estarei aí.

- É no Hotel Castelmar?

- Sim, claro que é.

- Então a gente se vê.

Já no subsolo do hotel pude avistar umas vinte pessoas: Os Coronéis Backs, Souza e o Delegado Jorge na primeira fila. Os Delegados Krieger, Pedrão, Sell, Lenio Fortkamp logo em seguida. Mais atrás o Delegado Lauro Braga me fez um leve aceno e observei que o Delegado Rubem Garcez mais uma vez deu o cano. Resolvi sentar do lado do Delegado Mário Martins enquanto o jurista D’Urso palestrava sobre a privatização do sistema penitenciário, coisas que já tinha algum conhecimento. Durante sua explanação pude verificar que éramos da mesma opinião: privatização relativa, ou seja, não adotar o sistema norte americano (que seria para nós inconstitucional, pois implicaria em passar a iniciativa privada tudo). Mas simpático a nós seria o sistema francês onde o Estado privatiza parte dos serviços e não perde o controle. A certa  altura Mário Martins ao pé do meu ouvido sussurra:

- Esse cara é maluco. O que ele está pensando? Como é que podem trazer uma pessoa dessas? Quem é ele?

Respondi no mesmo nível:

- É advogado criminalista de São Paulo. Se não me engano ele é ex-Presidente da OAB ou membro da Diretoria.

Mário devolveu:

- Mas ele está  totalmente fora da realidade.

Concluí:

- É, isto aqui é Brasil.

Como já imaginava, Mário estava meio impaciente e isso era um sinal. Quando me dei conta, da mesa do café ele traçou uma linha direta em direção a porta de saída. E, mais a seguir,  lá vou eu também. Havia confidenciado a Jorge Xavier que não poderia me expor muito. Tinha que marcar presença na Delegacia-Geral (em razão das reações...) e mesmo porque estava cheio de tarefas pois tinha que buscar meus relatórios relativos à Comissão Histórica para no dia seguinte encaminhar ao Delegado-Geral (Trilha).

Ainda no trânsito escutei  tocar o celular, era Jorge Xavier:

- Felipe tu saístes e eu bolei um plano: vamos levar o D’Urso ao aeroporto. Vamos estabelecer um contado com ele. É importante.

- Sim, ótimo!

- Nós vamos levar o D’Urso no aeroporto, mas tem que ser às dezesseis horas. As dezessete ele pega o avião para São Paulo. Tu não queres ir junto?

- Tudo bem. Mas isso ainda vai demorar um pouco, quando ele estiver pronto tu me telefonas.

- Tá certo, mas nós já estamos quase encerrando. O cara é espetacular, hein?

- Muito bom! Mas me liga.

Estava no interior de uma loja de encadernações próximo ao “Ceisa Center” (centro de Florianópolis) quando tocou novamente o celular:

- Felipe é o Jorge. Nós estamos prontos.

- O advogado já está pronto?

- Sim, inclusive estamos aqui na frente do hotel só te aguardando.

- Então estou indo.

Ao chegar na frente do “Castelmar” diviso o advogado Luiz Flávio D’Urso, Jorge Xavier, Walmor Backes, Cesinha (filho do Jorge) e mais distante um pouco o Delegado Ademir Serafim que dava a impressão que fazia uma observação atenta e externa sobre os personagens ao seu lado. Estacionei meu Omega Suprema bem rente ao grupo e abri a porta do passageiro quando Jorge Xavier se aproximou dizendo:

- Oi, este aqui é o Doutor  Felipe de quem já lhe falei. Ele é quem vai levá-lo até ao aeroporto. É a companhia ideal. Vocês têm muito que conversar. Eu tenho um outro compromisso.

Com o seu tamanho descomunal, rosto grande e inchado, cabelos negros e ralos penteados para traz, terno escuro, D’Urso acomodou-se ostentando um sorriso nervoso e colegial. Fomos em direção à nave que o esperava, aproveitando o momento para um diálogo:

- Que coisa linda esta ilha. Olha o mar, isso aqui é um paraíso (D’Urso).

- Realmente, principalmente se compararmos com São Paulo.

Já no Bairro Agronômica, contornando à  Beira Mar Norte apontei:

- Ali é a Penitenciária. Fui Diretor lá.

- Ela é bem central.

Acabei falando da rebelião ocorrida em maio de 1997 e que aquele acontecimento até aqueles dias estava atravessado na minha garganta. Acabei fazendo um resumo do que aconteceu. Fiz um comentário sobre o mundo maniqueísta e a eterna luta entre o bem e o mal que acompanha os humanos. Argumentei que chega um Diretor que quer fazer alguma coisa e do outro lado outros que não querem que ele faça nada para contrariar seus interesses. Falei dos puxa sacos, daqueles que querem ficar próximo do rei e, também, dos que não querem dizer ou fazer aquilo que o rei espera (politicagem barata, sem enfrentamento da realidade caótica que envolve o sistema prisional brasileiro como um todo).  D’Urso atendo escutava e ao mesmo tempo fez um comentário reducionista talvez oportuno para o momento:

- Como é difícil, né?

- É aquilo que você falou com relação por exemplo do policial militar na sua palestra, quando disseste que em São Paulo existiam cinco mil PMs no sistema penitenciário cuidando de presos e não era para isso que tinham sido preparados... (...). Depois que houveram os problemas na “Ala Máxima” prevendo que iria ‘estourar o Fechado’ porque já havia sido informado pelo Chefe de Segurança, fiz contato com o Oficial Comandante da Companhia da Polícia Militar e pedi que fosse reforçado o policiamento externo e prestassem apoio interno. O Oficial me perguntou: “Mas Diretor, o senhor ainda não respondeu aquele nosso pedido de doação da área do galpão para a cavalaria da  Companhia”. 

- Não vai me dizer que nessa hora o oficial fez essa provocação?

- Juro por tudo que é mais sagrado e para completar  o Oficial disse que além do mais seus policiais já haviam dobrado serviço quando houve o problema na Máxima. Mas eu insisti e disse a ele que mandaria um ofício para que fosse então  solicitado  reforço ao Batalhão, mas não adiantou. Na manhã seguinte, por volta das dez horas, fui avisado do rebento.... No corredor pude ver os presos trancando as grades e se isolando com os reféns. Olhei para trás e vi chegar dois policiais com carabinas na mão e quando viram a coisa feia bateram em retirada. Eu e mais alguém ficamos no corredor, distantes alguns metros da outra grade e percebi àquela altura que nada mais podia ser feito. Então, realmente é isso, o problema da duplicidade de comando. O oficial diz que só recebe ordens do superior e assim por diante. Existem pessoas valorosas que pensam num comando único para as polícias, outros que defendem uma polícia única. Estamos trabalhando nesse sentido, num projeto pioneiro que é a criação da Procuradoria-Geral de Polícia, a unificação dos comandos das polícias, respeitando as respectivas tradições históricas de cada instituição, mas as reações ainda são muito grandes.

Luiz Flávio D’Urso, parecendo cansado e ansioso para chegar no aeroporto, novamente de forma reducionista, respondeu:

- Como é difícil.

Continuei minha interlocução, quase como um monólogo:

- Imagine o que representa em termos de custos para o poder público, para a Polícia Civil, prédios baratos, não existe uniforme pago com recursos do Estado. Não há alimentação paga com dinheiro público.

Sem a mesma batida o jurista apenas deixou escapar um lamento reducional:

- É, realmente...! (D’Urso).

Continuei:

- Pelo que você articulou partilhamos das mesmas ideias, mas nem todos pensam assim. Um exemplo: Enquanto você palestrava um companheiro chegou ao meu ouvido e exclamou:  “...esse cara...”.

Meu carona agora pareceu cutucado e reagiu aceso:

- É mesmo? Puxa vida!

- Mas eu tenho acompanhado um pouco do teu trabalho pela Folha de São Paulo.

- É? Eu também sou professou da PUC e  escrevo.

- Eu também tenho escrito algumas coisas.

Com algum esforço, peguei atrás um volume de meu “Estatuto da Polícia Civil Anotado – Edição 1998” que havia recém apanhado na Loja e mostrei a D’Urso que surpreso imediatamente passou a manusear o material. Procurei manter a calma, sem me deixar levar pelo seu entusiasmo enquanto D’Urso exclamava efusivamente:

- Mas isto aqui é muito bom. Nós temos que publicar isso.

Surpreso com a sua manifestação argumentei:

- É, eu já fiz a edição de 1993.

D’Urso ao verificar a biografia do autor perguntou:

- Você também é formado em História?

- Sim, aqui pela Universidade Federal.

- Olha Felipe eu tenho alguns contatos muito bons lá em São Paulo, com a Saraiva. Se você quiser eu posso tomar a iniciativa. Podemos colocar isso em circulação nacional?

- Não sei, estou tentando aqui no Estado. Mas qualquer coisa eu falo contigo.

- Eu gostaria de ter um exemplar desse teu trabalho. É  possível?]

- Mas com prazer, apesar de eu ter ainda poucos volumes.

- Não precisa ser agora. Você pode até me mandar se não tiver disponível?

- Você pediu e vai levar. Pode considerar esse como seu. Eu tenho mais outros volumes.

- Puxa que bom!

Já em frente ao aeroporto disse a D’Urso que iria estacionar o carro para lhe fazer companhia até o momento da partida. Ele fez questão de dizer que isso era desnecessário, porém, antes da despedida:

- Mas eu gostaria que você fizesse uma dedicatória.

Surpreendido com a sua solicitação, tomei imediatamente a caneta e preocupado em  escrever somente ‘Urso’, lancei a pergunta:

- Mas o D’Urso como é mesmo o teu nome todo?

- Luiz Flávio, Luiz Flávio D’Urso!

E simplesmente escrevi: ‘Ao Dr. Luiz Flávio’[1] (data e assinatura). Ele puxou um cartão com seus telefones em São Paulo e disse que a hora que quisesse fazer contatos estaria a minha disposição e assim se foi o nosso grande “D’Urso”.

Agradeci em silêncio Jorge Xavier por ter me proporcionado aquele momento e nunca mais mantivenis qualquer contato. 

 

[1]              “Criminalista defende o inquérito policial – para o criminalista e professor de Direito Penal da USP Luiz Flávio Borges D’Urso, o inquérito policial é um instituto secular em nosso Direito e peça fundamental na Justiça Criminal, na medida em que tem atribuição legal de colecionar as provas referentes a um delito. ‘Eu tenho preocupações quando ouço falar na extinção do inquérito policial, pois, a par da formação profissional, muitos vocacionados à atividade policial, que é a investigação’, argumentou. A investigação, segundo D’Urso, além de ser uma ciência especialista, tem limitações de ordem técnica e financeira que levam as autoridades policiais, em razão de serem vocacionadas para isso, a fazer um bom trabalho e a superar tudo isso. ‘Realidade diferente do 1o Mundo, onde os recursos disponíveis são gigantescos’, observou. ‘Eu não vejo , fora dos quadros da Polícia, qualquer outra instituição que possa Ter contingente para realizar a investigação. O policial vai à rua, entra na favela, conversa com bêbados e alcança lugares que outros não atingem. A vocação o motiva a buscar uma prova e até a se arriscar para consegui-la’ explicou (...). Na opinião de D’Urso, afastar o inquérito policial do procedimento criminal é um desserviço à sociedade.  ‘A proposta tira a principal atividade da Polícia Judiciária e pode haver algum interesse não revelado aí’ sugeriu. Para o criminalista, o desafio de aperfeiçoar a Justiça Criminal não passa pela extinção do inquérito policial, mas sim por maiores investimentos, primeiro no homem e depois na máquina. ‘Homem motivado e preparado supera a ausência de tecnologia’,  ensinou. Entregar o inquérito policial para o Ministério Público é uma preocupação para o criminalista. ‘O MP é parcial e a investigação policial tem que ser imparcial. O presidente do inquérito tem de relatar as provas colhidas, sem fazer nenhum juízo do caso. As partes têm de ser iguais. Se o MP puder, o advogado também pode, o que é um contrassenso. Não se fabricam provas, mas sim as colhem’ comentou (...)” (Texto publicado no Jornal do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, edição especial n. 8, de fevereiro/2000).