Data: 22.10.98, horário: 08:40 horas, “Momento de Reflexão”:

Lendo o artigo de Elio Gaspar ((um aditivo ao artigo publicado na "Folha de São Paulo, Opinião, 1-2, de 20.10.98: "O Perigo da Polícia"), não pude me conter e reeditá-lo quer pela maestria com que o jornalista e escritor (cronista) tratou um assunto de relevância máxima a respeito da recente História do Brasil quer pela força de seu conteúdo (sem contar que trazia embutido uma advertência ao nosso país) que poderia contribuir para que nosso futuro Governador Amin fizesse uma reflexão mais profunda a respeito do nosso “Plano” que pretendia modernizar o modelo policial existente, a começar pelo Estado de Santa Catarina:

"O VOTO E A FAMÍLIA DO LANTERNEIRO

Há eleitores que já decidiram seu voto e estão convencidos de que escolheram o melhor. A eles, parabéns.

Há outros eu escolheram, mas guardam uma ponta de dúvida, ou estão verdadeiramente indecisos. Este artigo destina-se a influenciar-lhes o processo que os levará a decidir em quem votar. São dois os ingredientes deste convite à reflexão. 

O primeiro é uma coincidência  cronológica: os eleitores irão às urnas no dia 23° aniversário da morte do jornalista Vladimir Herzog, preso numa cela do DOI –CODI do 2° Exército, em São Paulo.

Depois de Herzog, morreria, na mesma carceragem, o operário Manuel Fiel Filho. Todos os dois teriam se suicidado, enforcando-se nas celas.

Os supostos suicídios ocorridos nos porões da ditadura foram motivo de vergonha para toda uma geração de brasileiros. Envergonhavam alguns dos generais que acobertavam os crimes políticos do regime e envergonhavam até mesmo bravos como o cardeal Paulo Evaristo Arns, que os denunciava.

Com a morte de Herzog, a vergonha se transformou em protesto. Com a de Manuel Fiel, o acobertamento teve um preço, e o general Ernesto Geisel demitiu o comandante do 2° Exército, sob cuja guarda estava o preso. Ao fazer isso, em fevereiro de 1975, começou a restabelecer o primado da Presidência republicana sobre a anarquia militar que se estabelecera no país a partir de 1964.

Hoje, o nome de Vladimir Herzog lembra um momento em que os brasileiros tiveram vergonha de continuar com medo.

O segundo ingrediente deste convite à reflexão relaciona-se  com o que aconteceu ao lanterneiro carioca Sidney Vieira Lima desde a noite de Sexta-feira, dia 16, quando sua mulher, Cristina Maria Gomes Rangel, começou a sentir as dores do parto de um menino que deveria se chamar Michael. Como não tinham com quem deixar  os outros dois filhos (Erica, de 6 anos, e Felipe, de 4), entraram todos num velho Passat e saíram para a maternidade.

Fizeram 200 metros de percurso e foram metralhados por uma guarnição da PM. Felipe morreu com um tiro na cabeça, e Cristina e o bebê morreram no choque do carro, desgovernado, com um poste. Sidney sobreviveu a três tiros, um no pescoço.

Os policiais dizem que não dispararam contra a família, mas contra um carro  que tentara alvejá-los. Alguns moradores do bairro pobre onde se deu o episódio negam essa história. Por medo, não querem se identificar. (Muitas das testemunhas do que acontecia nos porões do DOI só contaram o que viram anos depois.)

É possível que a perícia balística conclua que as balas encontradas no Passat não saíram  das armas dos PMs. (As autópsias de Herzog e de Fiel Filho, ambas assinadas pelo médico Harry Shibata, concluíram que eles haviam se enforcado. Fiel, com uma meia.)

O delegado encarregado do inquérito interrogou o lanterneiro quando ele se recuperava de uma cirurgia que lhe reconstruiu parte do esôfago. Ele contou que não podia  assegurar que os policiais foram os autores dos disparos. (Centenas de presos da ditadura asseguraram que prestaram seus depoimentos sem qualquer tipo de coação física ou moral.)

Antes que se saiba como terminará o inquérito do metralhamento do Passat do lanterneiro, vai um lembrete: os inquéritos feitos no Exército, e presididos por generais, asseguram  que Herzog e Fiel Filho suicidaram-se.

O que aconteceu à família do lanterneiro Sidney faz parte da rotina da vida dos cidadãos que vivem nos bairros pobres das grandes cidades brasileiras. Teria sido um acidente (os policiais os confundiram com traficantes), assim como teriam sido acidentais as mortes de Herzog e Fiel (os torturadores exageraram na dose).

Dava vergonha ter eu acreditar que os presos se suicidavam no DOI, assim como dá vergonha ver o que aconteceu à família do lanterneiro. A vergonha aumenta quando se percebe que o Estado reagiu ao episódio como se estivesse diante  de uma banalidade, à frente da qual nada mais há a fazer.

Passando  o tempo,  as vítimas da ditadura receberam satisfações, ressarcimentos e aposentadorias. (Clarice Herzog, viúva de Vladimir, nunca tocou um tostão.) Contam-se nos dedos as vítimas do mundo de Sidney que receberam amparo. A anistia que gorjeou nas universidades nunca chegou aos marinheiros.

Nenhuma autoridade (do governo ou da oposição) deu palavra de conforto ao lanterneiro Sidney. A Polícia Militar nem sequer lamentou o episódio.

Talvez seja difícil conseguir que a PM pare de espingardear cidadãos. Talvez seja  impossível obrigar os marqueteiros a se preocupar com uma família massacrada. Mesmo assim, é possível que se possa conseguir um ajuste social, forçando-se  o Estado a pagar caro, em dinheiro, por episódios como esse.

Quem ainda não decidiu em quem vai votar, pode pensar em Sidney, na mulher e nos filhos que perdeu, e tentar responder à seguinte pergunta: Qual o candidato que, uma vez no governo, pode evitar que casos como esses se repitam? Ou, numa formulação mais branda:Qual o candidato me passou a sensação de que procurará evitar a repetição de casos como esse?Respondida a pergunta, seja qual for o nome do candidato, o eleitor terá uma certeza: votou pelo motivo certo".

(Folha de São Paulo, 1-8, Quarta-feira, 21.10.98)